quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Dar a morte não é matar


Acherontia atropos ou Borboleta-caveira

A memória é como um rio com muitos afluentes e defluentes, que não tem pressa de chegar e que vai por aí sem nunca contar a mesma história da mesma maneira. Hoje a memória contou-me a história de como conheci Saramago, o José de quem por um triz não fui homónimo. O afluente foi a polémica sobre a eutanásia, que o escritor pensou n’As Intermitências da Morte.

Como a polémica não me entusiasma, depressa tomei outro rio e lembrei-me que conheci Saramago há precisamente 40 anos. Foi-me apresentado pelo Begonha, um dos meus grandes amigos com o nome Manuel.
 
Nesse tempo tínhamos o hábito de fazer um exercício pós-almoço a que chamávamos Optrex. Partíamos da Praça do Município, subíamos até à Brasileira pelas ruas Nova do Almada e Garret e regressávamos ao ponto de partida pela Rua do Carmo, Rossio e Rua do Ouro. 
Fazíamo-lo com o nosso saudoso amigo Manuel, o Serrano, e, sempre que as fainas do Conselho da Revolução lhe permitiam, com o outro amigo Manuel, o Guerreiro.

Para além da lavagem da vista, o percurso tinha o aliciante de encontrarmos gente interessante. Encontrávamos políticos e militares revolucionários, contra-revolucionários e nem uma coisa nem outra, encontrávamos actores, músicos, escritores, pintores, todos intérpretes de um passado ainda próximo que era recordado nas conversas com os três Manuéis

E permitia também o ritual da paragem nas livrarias para bisbilhotar as novidades literárias.
 
Foi numa dessas paragens que o Begonha me recomendou o Levantado do Chão, de um autor que não conhecia. Gostei de tal maneira que nunca mais me cansei de ler os seus livros e de os recomendar aos amigos. As personagens que neles criou tornaram-se para mim referências, desde logo a Blimunda do Memorial do Convento mas, também, o Cão das Lágrimas do Ensaio sobre a Cegueira.
 
Não sei se alguma vez agradeci ao Manuel Begonha por me ter apresentado o Saramago mas para que a dívida fique definitivamente saldada, aqui fica o meu agradecimento público.

Quanto à eutanásia, julgo que a melhor reflexão já foi feita por Saramago n’As Intermitências da Morte: matar é uma coisa, dar a morte é uma coisa bem diferente. 

Dar a morte não é matar.

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