Já aqui escrevi que a memória é como um rio com muitos afluentes e defluentes. Hoje a memória trouxe a peça de Sttau Monteiro, “As mãos de Abraão Zacut”; o afluente foi o judeu de Salamanca do “Almanach Perpetuum” que fugiu da Inquisição no século XV e o defluente foi a personagem homónima que Sttau Monteiro pôs num campo de concentração nazi a motivar os outros prisioneiros a tentar a fuga para depois morrer na evasão de David Levi.
Vi “As mãos de Abraão Zacut” em 1970 no Teatro Vasco Santana, no espaço da antiga Feira Popular de Lisboa, em Entrecampos. Foi levada à cena pela companhia Teatro Estúdio de Lisboa da actriz Helena Félix e da encenadora Luzia Maria Martins, sob a direcção desta. Para além da Helena Félix, faziam parte do elenco Joaquim Rosa, Jorge de Sousa Costa, Isabel de Castro, Luís Santos, Margarida Mauperin, Filipe de La Féria, José Raymond, Amílcar Botica, Ermelinda Duarte e José Manuel Osório.
Sttau Monteiro contou que a sua peça sobre a infâmia, o medo e a esperança foi escrita em 1967 no isolamento da cadeia de Caxias, nas costas dos maços de cigarros que fumava, e que saiu "cá para fora" metida no fundo falso duma moldura feita de fósforos, queimados expressamente para esse efeito. Embora todas as seis peças anteriores tenham sido alvo da censura, com as editoras responsáveis pela sua publicação invadidas, os exemplares apreendidos e a representação proibida, “As mãos de Abraão Zacut” foi autorizada e estreou com poucos cortes em 18 de Dezembro de 1969, numa aparente demonstração de abertura do regime de Marcelo Caetano.
O processo de autorização foi, contudo, longo e complexo e mostra como funcionava a censura do regime. Depois de uma reprovação em Agosto de 1968, Luzia Maria Martins insistiu e acabou por obter a autorização para a representação um ano depois, em Novembro de 1969. A peça foi lida por vários membros da Comissão de Censura que apontaram muitas razões para a reprovação, como por exemplo, a linguagem obscena, as ofensas à religião cristã e instituições militares, a desadequação da temática à realidade portuguesa e à história nacional, a instigação à violência e o tom de contestação política e social, o aparecimento, demasiadas vezes, de palavras como “liberdade, perseguição e cadeia”.
Mas a questão que de facto assustava os censores e que os levava a manter a proibição da representação da peça era outra bem mais subtil: se o Abraão Zacut, uma personagem vulgar igual a qualquer um de nós, motivava as outras personagens da peça, não seria ele capaz de motivar um público que também se sentisse descontente e coarctado na sua liberdade? No entanto foi o argumento de um dos censores, Geraldes Cardoso, que prevaleceu e desbloqueou a autorização. Segundo ele, ao proibir aquela peça estar-se-ia a validar a identificação entre a estrutura da peça e as instituições portuguesas; quando se queria mostrar que em Portugal havia uma democracia e não havia repressão política, devia-se sim autorizar a representação da peça. O censor acreditava que, ao ser apresentada ao público, ela perderia o seu valor de contestação.
Não sei que efeito a peça teve na generalidade das pessoas que a viram no Teatro Vasco Santana. Posso apenas falar por mim e confesso que senti as palavras de uma personagem que acusou as outras de não terem feito nada enquanto o mal não lhes tocou de perto, que apontou directamente para o público e perguntou às outras personagens: “Vêem alguém capaz de arriscar um dia de vida seja por quem for? Não, não! Só quando chegar a vez de eles serem presos é que abrem os olhos!”
Há 50 anos, estas palavras abriram-me os olhos.
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