segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

O jogo da bola


Jogar futebol, ou melhor, jogar à bola na rua ou no adro da igreja foi uma das minhas escolas na infância. Nela aprendíamos tudo sobre relações sociais: que havia habilidosos e aselhas, magros e gordos, pepe-rápidos e pés-de-chumbo; que uns jogavam calçados e outros descalços porque não tinham botas ou sapatos; que uns escolhiam e lideravam as equipas e outros eram escolhidos; que uns assumiam as consequências dos estragos nas casas dos vizinhos e outros fugiam; e que havia sempre o dono da bola, o tipo que tentava impor as regras!

Depois, à medida que o futebol passou a ser apenas negócio e competição entre adultos, sejam eles jogadores, adeptos, dirigentes, agentes e até pais de crianças candidatas a craques, desinteressei-me.

Hoje, quando o futebol é também uma fonte de instabilidade social instigada por dirigentes e meios de comunicação social irresponsáveis, voltei a interessar-me pelo fenómeno.
Desta vez para o censurar.

domingo, 3 de dezembro de 2017

O Pé-Leve




A imagem que guardo dele é de um homem muito grande e afável, de um bom gigante. Fez parte do meu universo de criança até aos 9 anos. Apesar da perna disforme, consequência da elefantíase, caminhava quilómetros com grande agilidade. Aliás essa característica valeu-lhe uma das alcunhas dadas pela minha avó: o Pé-Leve.

O Pé-Leve era o homem dos setes ofícios e das mil manhas. Por isso a minha avó também o chamava de Manha-Manha, talvez o tratamento que mais usava. A relação do Pé-Leve Manha-Manha com ela, e depois com o meu pai, merece uma explicação mais detalhada.

O Pé-Leve era natural de Inhambane e foi trazido para Lourenço Marques, como cozinheiro, pelo vizinho dos meus avós, ainda na casa da Anchieta. Mas para além da culinária, tinha muitos outros misteres, incluindo o de homem de Deus, pastor de uma igreja protestante. Estivesse onde estivesse, o Pé-Leve não passava despercebido, sempre activo e empreendedor, e talvez por isso criou laços afectivos muito fortes com a minha família paterna. Quando os meus pais foram para Inhambane, tinha eu poucos meses, pediu que o levassem. Apesar da incompatibilidade com as manhas do Pé-Leve, o meu pai fez-lhe a vontade e arranjou-lhe um cargo na repartição de agricultura que foi chefiar.

De vez em quando o Pé-Leve, ou melhor, o Manha-Manha, pregava uma partida. Um dia, na véspera do meu pai se deslocar à estação experimental que tinha instalado na Mahalamba, perto de Inharrime, com cerca de uma centena de trabalhadores, o Manha-Manha pediu boleia para ele e para a família, porque o Primo que lá trabalhava, está por esclarecer se Primo por parentesco ou nome próprio, tinha falecido. O meu pai disse que sim e indicou-lhe o local e a hora da partida.

No dia seguinte lá estava ele, não com meia dúzia de familiares mas com um numeroso grupo que sobrelotou a caixa aberta da carrinha. O meu pai fez os cento e tal quilómetros por estradas e picadas miseráveis até à Mahalamba com um cacho de gente a dar cabo da suspensão da carrinha que tanto estimava, e mais tarde assistiu, zangado, aos festejos do funeral, bem regados com muita aguardente. Foi por isso que o Pé-Leve, ou melhor, o Manha-Manha, teve de penar muito até que o episódio fosse esquecido. 

Quando alguns anos depois o meu pai foi transferido para Quelimane, o Pé-Leve quis acompanhá-lo. Apesar de não dominar o Chuabo, o dialecto da região, criou de imediato uma rede de contactos. Pediu autorização para usar a garagem da nossa casa para as suas celebrações religiosas e o que é certo que ali pregava para muitas dezenas de crentes que o iam ouvir.

E cedo criou nova família e descendência na terra do rio dos Bons Sinais. Quando o novo rebento nasceu, o Pé-Leve, ou talvez o Manha-Manha, baptizou-o, em honra do meu pai, de Engenheiro Aníbal Jardim Bettencourt. Assim mesmo, com título académico e tudo a que tinha direito!

O Rameloso


Aeroclube de Inhambane, 1951

Sempre que não engraçava com alguém, era certo e sabido, punha-lhe uma alcunha. Acontecia com todos mas muito em particular com os representantes do poder colonial. O governador-geral de Moçambique era o Fadista, o governador de Inhambane era o Rameloso, assim como mais tarde o de Quelimane foi o Narciso. Era assim que se referia a eles nas conversas com a mulher e os mais próximos.
Os amigos não estranhavam mas a mulher, cautelosa, avisava:
– Habituas-te a usar alcunhas e um dia ainda te sai sem quereres!
E de facto, o inevitável aconteceu.
Passeavam na marginal com um casal recém-chegado a Inhambane e ele, entusiasmado com a descrição da actividade profissional, começou a referir-se ao Rameloso para aqui, ao Rameloso para acolá, sem se lembrar que os interlocutores não faziam ideia de quem era tal personagem.
Até que um deles perguntou a medo, não fosse a pergunta ser interpretada como demonstração de ignorância:
– Mas quem é o Rameloso?
– É Sua Excelência o Senhor Governador – respondeu com toda a naturalidade, e continuou a conversa.

A foto de 1951 foi a única que encontrei com as duas personagens. O 1.º da direita, em pé, é o protagonista, o meu pai, e Sua Excelência o Senhor Governador, como manda o protocolo, ficou ao centro. Para além do governador, vemos o presidente e os pilotos do Aeroclube de Inhambane que assinaram o verso da fotografia.

domingo, 12 de novembro de 2017

Português universal



Para mim ser Português é sentir, como Miguel Torga, "dividido em cada sítio onde me encontro", ter "a alma inteira em parte nenhuma", sem nunca perder as referências. As minhas foram trazidas de Trás-os-Montes, da Madeira, da Estremadura, de Moçambique. Ganharam raízes em Lourenço Marques, Inhambane e Quelimane, em Lisboa, na serra de Montejunto e na península de Peniche. Revigoraram um pouco por todo o Mundo, nas Américas, na Europa e na Ásia. Foram essas referências, revisitadas em múltiplas vivências, que deram o sentido da universalidade a um português como eu.

Um sentido da universalidade consolidado pela leitura da obra de Miguel Torga e Vitorino Nemésio, dois escritores e homens do Mundo que tão bem trataram os mais importantes regionalismos portugueses: a interioridade e a insularidade, ou açorianidade. Com os “Contos da Montanha” de Torga e o “Mau Tempo no Canal” de Nemésio, aprendi a relação entre o regional e o universal e como essa relação moldou o que somos como povo. Um povo para o qual o universal é o local sem fronteiras, que permanece igual no essencial esteja onde estiver, em Portugal, no Brasil, em França, nos EUA, em Angola, na Alemanha, em Timor, no Canadá, no Havai, no Luxemburgo ou nas Bermudas.

Um povo de mulheres como a Maria Lionça, a cachopa mais bonita, dada e alegre de Galafura que, como muitas mulheres da montanha, no meio do gosto do amor enviuvou com o homem vivo do outro lado do mar, que viu o filho abalar para Lisboa e fazer-se marinheiro, que o foi buscar a Leixões, a exalar o último suspiro, que se meteu no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, e subiu a serra para que dormisse o derradeiro sono na terra onde nascera. Um povo de homens como o padre João de Vilarinho, que disse ao Bispo que sabia haver outros mais finos que ele, que às fêmeas chamavam criadas e aos filhos, afilhados, mas que ele não largava a mulher, gostava dela, e filhos já tinha cinco e queria criá-los; que tudo fez para que o tragamundos Firmo, filho de cavadores, cavador até aos vinte, incapaz de se deixar penetrar da verdade dos tojos e das leiras e sempre com desejos do mundo, quase fosse mordomo na festa da Senhora da Agonia.

Um povo representado pelo ti Amaro de Mirateca, trancador de baleias, duplamente universal como português e ilhéu atlântico sempre pronto a emigrar, que andou um ano no Arriôche (Oceano Glacial Árctico), três no Oeste Negrão (Mar das Antilhas) e dois nos Japanis (Mares do Japão), e que com os outros baleeiros contestou o arresto das canoas pela Justiça. E pela Margarida da Terra Clark Dulmo, ilustre tataraneta do capitão Fernão Dulmo, fidalgo da casa do Infante D. Henrique, que foi enfermeira de um criado pestífero, que atravessou o Canal numa canoa rebocada por um cachalote arpoado por caçadores picarotos, que falava com o povo no seu próprio dialecto, que foi madrinha tauromáquica terceirense e que acabou por casar com o pretendente menos interessante, o herdeiro do barão da Urzelina. E não fosse o meu avô transmontano e os homens comandados pelo seu conterrâneo Carvalho Araújo, não teria viajado no San Miguel, conhecido o estudante de Coimbra e atirado ao mar o anel da serpente cega.

Num tempo do patriotismo de lapela, é importante estudar as nossas raízes familiares e culturais e perceber o que somos e qual o nosso papel no mundo. E a ancestralidade descrita por Nemésio e Torga, ajudam-nos nesse processo. Compreender o ti Amaro e a Margarida é tão importante como compreender a Maria Lionça ou o padre João e o Firmo. Em todos o amor à terra é tão absoluto como a relação com a vastidão do mundo.

É isso que torna o Português universal.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Make America Great Again


Não sei se Trump tem consciência de quanto a linguagem que usa e o seu famoso sloganMake America Great Again” ecoam a retórica do Ku Klux Klan da década de 1920. Dada a sua proverbial ignorância, admito que não, mas para quem conheça a História, a ênfase no patriotismo agressivo e na restrição da imigração faz recuar 90 anos e voltar ao tempo da segunda encarnação do Klan, quando pregava e tentava impor a visão de uma América criada e dominada por brancos protestantes, abençoados pela virtude cristã e pelo orgulho patriótico. Uma América que rejeitava os católicos e os judeus, especialmente os imigrantes mais recentes que apelidava de estrangeiros. Uma América que via o novo fluxo de imigrantes, “mostly scum”, como uma horda perigosa que ameaçava a Nação Americana, que maculava a pureza da Cidadania Americana e destruía o verdadeiro Americanismo. Uma América que se opunha declaradamente à Igreja Católica.

Foi neste tempo que em Provincetown, na Nova Inglaterra, onde uma importante comunidade de imigrantes portugueses, maioritariamente originários dos Açores e de Cabo Verde, constituída por famílias numerosas de católicos devotos, o Klan encontrou terreno fértil para actuar. É que contra os Portugueses, para além do argumento religioso e ideológico, havia um outro: o racismo. Mesmo no poema inocente de Alma Martin sobre Provincetown, The Heavenly Town, a questão da cor é realçada:

“(...)
Dark Portuguese
From far-off seas
Their ships in bay
Pass time of day
(…)
Dark laughing boys,
Dark smiling girls,
With here and there a native son,
With blue eyes full of Yankee fun.
(...)”

Em Agosto de 1925, aproveitando a tensão entre Yankees e Portugueses, o Klan queimou uma cruz no adro da igreja católica de São Pedro, construída para o culto religioso dos imigrantes Portugueses.

O episódio não intimidou os Portugueses, antes pelo contrário. Organizaram-se no St. Peter’s Club a partir do qual dominaram o Knights of Columbus, uma organização fundada 40 anos antes para defender os direitos civis e religiosos dos Católicos. Paulatina mas firmemente, acabaram por afastar democraticamente dos órgãos de governo da cidade todos os Yankees simpatizantes do Klan.

Eu sei que hoje, noventa e tal anos depois, muitos portugueses e luso-descendentes nos EUA seguem o exemplo dos nossos compatriotas de Nova Inglaterra. Mas estranho que alguns outros se deixem encantar pelo discurso de Trump.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Uma geração de atraso


Em Portugal estamos sempre com uma geração de atraso!
Fala-se de incêndios e ouço que são precisos vinte e tal anos para termos uma floresta que lhes resista. Fala-se da seca e dizem-me que leva mais de vinte anos a criar plantações de espécies e variedades que resistam à escassez de água e às pragas trazidas pelas alterações climáticas.

De facto a história do homem mostra que o progresso sustentável se faz continuamente com a transmissão do saber e da experiência de geração para geração. E assumindo que uma geração dura em média os cerca de 25 anos necessários para que o pai esteja em condições de ensinar o filho, esse deveria ser o ritmo do nosso progresso. Um progresso em harmonia com a natureza, em que cada geração aprende com a anterior, acrescenta valor ao que recebeu e transmite tudo à seguinte.

Tenho para mim que assim é nos países desenvolvidos. Lembro-me de olhar para o interior das cápsulas espaciais americanas e reconhecer detalhes técnicos de equipamentos de navios americanos construídos no pós-guerra. Lembro-me de encontrar nas fragatas MEKO do final da década de 80, equipamentos e acessórios que conhecia das corvetas construídas na Alemanha na década de 60. A maioria dos sucessos empresariais nesses países resultam do esforço continuado de geração após geração, mesmo quando ocorrem alterações profundas na propriedade e no modo de operação dos meios de produção.

O desenvolvimento de um país faz-se por um processo contínuo de consolidação do que funciona e de inovação do que deve ser alterado ou recriado. A História mostra que não se faz com mudanças sociais e económicas abruptas que se tornam inevitáveis porque não se inovou e se mantiveram práticas erradas ou, mais frequentemente, porque são instrumento de poder. Em regra nessas mudanças, muitas vezes inspiradas em casos de sucesso noutras paragens, perde-se o que devia ser preservado e nem sempre os novos protagonistas têm o saber e a experiência para criar uma alternativa sustentável e adequada para as condições locais.

Infelizmente e salvo raras excepções, em Portugal prevalecem as mudanças abruptas e as rupturas nas organizações e entre gerações. É por isso que cada geração erra mais do que acerta e estamos sempre com, pelo menos, uma geração de atraso!

sábado, 16 de setembro de 2017

Memórias de 12 futuros



Quando vi esta fotografia chamei-lhe memórias do futuro porque representava os dois elementos fundamentais da vida do meu Pai, o essencial das suas futuras memórias: a prole que criou e fortaleceu, sempre de mãos dadas com a minha Mãe, o amor de uma vida e a companheira com quem percorreu os dias de sol e de chuva e pincelou com as mais variadas cores a vida dos outros; e o projecto profissional que o tornou conhecido mundialmente como um dos maiores cientistas no melhoramento genético do cafeeiro.

Há dois anos ficaram apenas as memórias. Deixaram de ser do futuro para serem de 12 futuros, tantos quanto o meu Pai tinha estabelecido, com a devida antecedência, como condição necessária e suficiente para partir.

Uma partida que não lhe deu tempo para brincar com o décimo segundo bisneto, mas estou certo que também ele voará como o bisavô. A genética tem destes caprichos.

E cada um dos 12 bisnetos saberá escolher uma rota no mapa daquelas memórias.

sábado, 12 de agosto de 2017

Amiga de Peniche


Quem hoje passa pelo restaurante “Armazem 8” na Avenida do Mar em Peniche, provavelmente estranhará o painel de azulejos encaixado entre duas varandas, onde se lê: “José do Rosario Leitão - Armazem de Pescarias - Amiga de Peniche”.

“Armazem 8” na Avenida do Mar

De facto, existiu ali um armazém de José do Rosário Leitão, avô paterno da minha mulher Maria João, com um painel de azulejos que serviu de modelo ao actual. Tratava-se de um armazém de preparação e distribuição de peixe, a que se juntava uma outra função, hoje impensável: a distribuição de água salgada aos outros armazéns da Ribeira a partir de um depósito de cimento e através de uma rede completa de encanamentos com bombas, válvulas e contadores! Mas o que hoje quero recordar é o avô Zé, para muitos penichenses o “Zé Baterremos”, que herdou o negócio do pai Joaquim do Rosário Leitão, o primeiro dos "Baterremos".

José do Rosário Leitão e Joana Andrade

O avô Zé era um bem-disposto, amigo do seu amigo, sempre com uma anedota ou piada pronta, mas aventureiro e pinga-amor. A avó Joana, uma mulher extraordinária com uma forte personalidade, sabia melhor do que ninguém o que a casa gastava e por isso embirrava com o painel de azulejos do armazém. Parece que a figura que lá aparecia não era apenas a representação de uma “Amiga de Peniche” imaginária, mas alguém bem real, de carne e outros atributos...

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Parabéns, Mamã!



Um filósofo terá dito que tal como num conto, na vida não é a duração que importa mas a sua qualidade. Contudo a minha mãe conseguiu juntar a qualidade à duração e isso torna-a excepcional. Na realidade a vida da minha mãe é uma colectânea de múltiplos contos, todos eles excelentes, e um longo e belíssimo romance que durou sessenta e seis anos, sem contar com o extenso preâmbulo. 

Muitos, em circunstâncias diversas, participaram naqueles contos, partilharam a vida com a minha mãe. Ficaram sempre a ganhar porque, por herança genética e educação, a minha mãe tem uma qualidade que se sobrepõe a todas as outras, e são muitas: a permanente preocupação de ser útil aos outros, de ajudar os outros. A maior riqueza deixada pelos meus avós maternos foi terem ensinado, pelo exemplo, que o maior valor do ser humano é ser capaz de oferecer o que os outros necessitam, é sacrificar-se, estar presente e ajudar quando os outros precisam. E a minha mãe seguiu rigorosamente os seus ensinamentos em todas as circunstâncias. Preocupou-se em ser útil aos pais e ao irmão. Deu o melhor de si aos filhos. Inquieta-se com os problemas dos cinco netos e dos doze bisnetos. É a amiga com que todos sabem poder sempre contar. Essa é aliás a grande força e lição de vida da minha mãe: sentir-se feliz quando pode ser útil, seja a quem for!

Mas a grande obra, o mais belo romance que conheço, não foi protagonizada apenas pela minha mãe. Teve duas personagens centrais que foram, simultaneamente, os seus autores: a minha mãe e o meu pai. Foi uma narrativa longa, com muitos capítulos e personagens variados, em espaços geográficos tão diferentes como Moçambique, Portugal ou Brasil mas com um fio condutor bem marcado: o amor imenso entre as personagens centrais e a luta permanente pela dignidade e pelo bem-estar da sua família. Com situações dramáticas, sempre ultrapassadas pelo sacrifício, a cumplicidade e o esforço solidário dos dois. O meu pai dizia que a minha mãe era o seu anjo da guarda e nós sabemos que isso ficou provado em várias ocasiões. Mas a grande herança conjunta que nos deixaram foi o exemplo de uma união exemplar e feliz que sobreviveu, sempre mais forte, a todas as tempestades. Mesmo depois da partida do meu pai, a união dos dois mantém-se inalterável na mente e no coração dos filhos, dos netos e dos bisnetos.

Alguém disse que as nossas conquistas interiores modificam a realidade exterior. Não sei se é uma verdade universal mas, no caso da minha mãe, estou certo que a sua força interior, a sua vontade de melhorar o mundo, a sua presença, fazem com a vida de cada um de nós seja bastante melhor. É essa a sua maior riqueza e é esse o seu mais valioso legado.
É por isso que no dia em que celebra noventa anos lhe dizemos: ─ Parabéns, Mamã! Obrigado por tudo!

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Desta vez será diferente?



Catástrofes como os incêndios de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra são, como as guerras, situações extremas que põem à prova a organização, a preparação, a maturidade e a capacidade de lutar e sofrer de um povo. São situações em que a competência e capacidade dos governantes, dos agentes do Estado e das organizações públicas e privadas, a forma como a sociedade está organizada e os padrões de comportamento social de cada cidadão, são testados numa dimensão que torna quase impossível mascarar a realidade. A força e a generosidade mas também as fragilidades, as carências e os erros ficam à vista de todos os que quiserem ver.

Ninguém no seu perfeito juízo deseja uma guerra ou uma catástrofe para avaliar a qualidade da uma sociedade. Mas quando elas acontecem com consequências trágicas para muitos, não retirar ilações e não melhorar o que deve ser melhorado em todos os sectores e níveis de responsabilidade dessa sociedade é também prova de pouco juízo. Tanto mais que em tempo de paz e ressalvando a área da saúde, a estrutura do Estado só muito raramente tem de demonstrar eficiência e eficácia. Desde que cumpram os mínimos que eles próprios definem e se protejam atrás das barreiras da burocracia, a esmagadora maioria dos agentes do Estado pode fazer uma carreira imaculada sem correr riscos e sem que o seu contributo para o progresso e bem-estar da sociedade seja avaliado.

Infelizmente, desde que há 14 anos passei a observar com mais atenção a questão dos incêndios florestais e da protecção civil por influência do Bouza Serrano e do Leal Martins, tenho dúvidas que a nossa sociedade tenha feito o necessário para se organizar e dar uma resposta eficaz aos sucessivos sinistros. Certamente há muita gente a fazer um trabalho sério mas a minha percepção é que também há muitos que aproveitam as circunstâncias para lucrar com o financiamento significativo, muito dele de fundos europeus, para a prevenção e combate dos incêndios florestais. É uma situação confusa que parece envolver múltiplos protagonistas (responsáveis da administração central e autárquica, técnicos de agricultura e de segurança, dirigentes de bombeiros, vendedores de equipamentos, agentes intermediários, etc.), que tiram partido em proveito próprio da ineficácia da burocracia estatal, da incompetência ou inacção dos técnicos responsáveis, da perversidade da legislação que regula as aquisições públicas e o ordenamento do espaço comum, da inoperância e falta de controlo dos serviços públicos e da impreparação, fragilidade económica ou comportamento menos cívico da população e dos proprietários dos espaços florestais.

Lembro-me de conversar com o meu pai aquando dos grandes incêndios que destruíram o pouco que restava da vegetação da serra de Montejunto. Falava-me ele da necessidade da presença dos técnicos junto dos agricultores, do apoio técnico e financeiro, da selecção correcta das espécies cultivadas, do emparcelamento, dos vários instrumentos de melhoria das condições técnicas e económicas da exploração dos terrenos. Falava-me também da importância da confiança dos agricultores e proprietários nos técnicos das autarquias e da administração central. Ele que sempre trabalhou para o sucesso dos agricultores, dizia que estes não eram ignorantes, que eram exigentes e tinham um espírito crítico muito bom, que não se lhes podia impingir qualquer solução. Se o técnico falhar uma vez, o agricultor nunca mais aceita uma proposta dele. Ora tanto quanto sei nem os serviços que poderiam ajudar os agricultores e proprietários são credíveis nem estes confiam neles.

Depois desta nova tragédia, assisto mais uma vez ao ruído mediático, à luta partidária, ao passa-culpas dos responsáveis, à formação de novas comissões de inquérito, à elaboração de novos relatórios e a outras manifestações que nos desviam do objectivo principal: aprender a lição e evitar novas ocorrências ou, pelo menos, responder melhor caso se tornem inevitáveis. Exactamente o mesmo a que assisti, ano após ano, durante 14 anos.

É por isso que duvido que desta vez vá ser diferente. E como eu gostava de estar enganado e que daqui a 14 anos os portugueses não estivessem a ouvir os discursos, os argumentos e as discussões que se repetem todos os anos, pelo menos desde 2003!

domingo, 25 de junho de 2017

Incêndios e Cidadania

18/06/2017



Nas últimas quatro décadas, uma cultura contra-natura promovida e posta em prática pelos que entendem que a espécie humana é apenas impulsionada pela ganância e o medo deixou a economia, e consequentemente a sociedade, de joelhos. Repetiram-nos até à exaustão os discursos de gente como Thatcher (não existe tal coisa como sociedade, há indivíduos, homens e mulheres, e há famílias!), dos seus seguidores ou da sua caricatura, o Gordon Gekko do filme Wall Street. Mas digam eles o que disserem, a espécie humana, tal como outros animais, sobreviveu em comunidades solidárias. A selecção natural produziu seres sociais e cooperantes que dependem uns dos outros para resistir, cujos cérebros estão em sintonia e os fazem sentir angústia com as angústias dos outros. É por isso que ao invés de colocar os indivíduos uns contra os outros, a sociedade precisa de enfatizar as dependências mútuas.
Que ao menos a tragédia nos ensine essa lição!


19/06/2017


E a natureza humana, não conta?
É certo e sabido. Ocorre uma tragédia, um desaire, um colapso e as comunicação e redes sociais são inundadas de depoimentos de especialistas que desfiam as razões e as culpas do sucedido. Se é um incêndio florestal, lá vem a monocultura, o desordenamento, a extinção de serviços, a desertificação rural. Se é uma crise financeira, lá vem a especulação mobiliária e imobiliária, os riscos irresponsáveis, a falta de regulação. Se é um ataque terrorista, lá vem a política de emigração, a falta de vigilância, o controlo de fronteiras, a restrição da liberdade. E sempre, seja qual for a calamidade, lá vem a incompetência, a ignorância, o compadrio dos governantes. Depois mudam os governantes, mudam os tempos, mas os problemas ocorrem de novo, exactamente pelas mesmas razões e com as mesmas culpas.
E eu, que até posso concordar com alguns diagnósticos, dou comigo a pensar: sendo o homem o actor comum em todas as ocorrências, será que o problema é mais profundo e pode estar relacionado com a forma como a sociedade moderna trata a natureza humana?
Dizem os cientistas que a nossa espécie de Homo sapiens se diferenciou das outras há pelo menos 200 mil anos. É muito tempo para que seja possível ignorar o resultado da selecção natural. Eu sei que os ideólogos sociais e políticos gostam de simplificar ou até negar a importância da natureza humana. Modelam a sociedade humana de acordo com os seus preconceitos e apresentam-na como uma projecção da sua vontade. E no último século, um número significativo desses ideólogos, deslumbrados com os avanços tecnológicos do último milénio, conseguiu impor o individualismo, o egoísmo, a competição, a ambição, o medo, a sobrevivência do forte à custa do fraco, como os únicos factores do progresso humano, como a essência da evolução da espécie humana. Há quem alvitre que essa evolução culminará na criação de uma nova espécie, a que até já chamaram de Homo deus.
Do que conheço sobre alguns exemplares do que poderá ser essa nova espécie, confesso não estar muito optimista quanto ao futuro longínquo. Mas estando eu apenas preocupado com o presente e o futuro próximo, prefiro observar a natureza da espécie que existiu pelo menos até há 199 mil anos e dos primatas que lhe são próximos. E concluo que a espécie humana é altamente social e cooperante, que procura estar em equilíbrio com a natureza, que protege os fracos, que não consegue viver apenas da competição, que não aceita e reage muito mal se é tratado de forma desigual relativamente a um seu semelhante, que se sente bem quando faz bem, que estabelece relações com base na empatia, na solidariedade e na reciprocidade, que age por contágio e imitação, que tende a ajudar e consolar o outro (quem tem crianças sabe que a melhor forma de obter a sua atenção é fingir chorar!). Claro que há o número mágico de 150 acima do qual as relações se complicam e por isso inventou as religiões que tentam estabelecer regras de vida em comunidades numerosas. O cristianismo viu o seu fundador executado e sofreu muitos desvios mas sobreviveu 2 mil anos e hoje tem um líder que é respeitado pela grande maioria.
Não estará na hora de avaliarmos os sistemas políticos e económicos em função da natureza humana e procurarmos os caminhos que a respeitem em vez de a violar?


20/06/2017

I




Só conheço uma forma de resolver um problema, seja ele grande ou pequeno. É estudá-lo até ao ínfimo detalhe, definir uma solução viável e trabalhar, trabalhar, trabalhar para a realizar. Sempre com a lucidez necessária para, em qualquer momento, corrigir o rumo ou, se for errado progredir, parar. No fim, discutir os resultados para os melhorar.
Tudo o resto é inútil e até prejudicial. Vindo de um ignorante, é patetice. Vindo de quem tem obrigação de conhecer o assunto, é falta de seriedade.

II

Perante o luto guardo normalmente silêncio. Por isso gostaria que o luto nacional fosse também de silêncio do cacarejar mediático.

III

Efeitos secundários do cacarejo mediático: queda de um avião espanhol que não caiu, morte de um piloto inglês que não morreu, censura de um responsável que não confirmou a queda do avião que não caiu. Se algum dos efeitos se agravar ou se detectar quaisquer outros não mencionados, evite a comunicação social e leia um livro.


22/06/2017

I


Ontem entretive-me a observar uma das ratazanas falantes que pululam no lixo televisivo nacional. Sem se preocupar muito com a opinião dos quatro comentadores convidados do programa, o pivô foi desfiando uma lista impressionante de escândalos, erros, maus negócios, etc., que, a propósito e a despropósito, associou à tragédia do incêndio de Pedrógão Grande.
A determinada altura mencionou o que para ele é uma característica natural dos políticos: a incompetência. E antes que um dos comentadores pudesse balbuciar a sua discordância, foi implacável: ─ O professor acha que políticos que estão à frente de Portugal desde o 25 de Abril são bons políticos, que não são incompetentes!?
Presumo que o indivíduo em observação entende que quem estava à frente de Portugal antes do 25 de Abril não era político, já que a competência deixava muito a desejar. Eu que me iniciei nestas questões de catástrofes e de tragédias sociais ainda como estudante, ao ajudar em Alhandra as vítimas das cheias de 25 para 26 de Novembro de 1967, sei bem que quem estava à frente de Portugal antes do 25 de Abril não primava pela capacidade de prever, evitar e combater os efeitos dos sinistros. A não ser que a competência fosse avaliada pela capacidade da censura alterar os títulos dos jornais de “centenas de mortos“ para “dezenas de mortos”, proibir referências ao cheiro dos corpos em decomposição, à miséria das vítimas, à ajuda dos estudantes, ao número total de mortos (o total oficial anunciado mais tarde foi de 470 mortos quando sabíamos que morreram mais de 700 pessoas), e por aí adiante. Sei também, porque ajudei a combater incêndios na zona do Oeste, que quem estava à frente de Portugal antes do 25 de Abril não tinha grande competência nessa área. A prevenção e o combate eram feitos pelas populações locais sem qualquer ajuda ou coordenação das autoridades governamentais.
É certo que com o 25 de Abril, por muito que custe ao individuo em observação, passámos a escolher livremente os responsáveis políticos e passaram a existir “políticos.” Claro que não são todos competentes e sérios como eu gostaria mas são o reflexo do que somos como povo e como cidadãos. Quanto melhor formos como cidadãos, melhor serão os políticos que escolhemos.
É por isso que estou disponível para trabalhar, intensa e continuadamente, para ajudar a eliminar o nosso défice cultural e de cidadania. E é também por isso que lutarei sempre contra os saudosistas do obscurantismo e os inimigos da democracia.


II



A tragédia dos incêndios de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra trouxe à memória dois camaradas e amigos que já partiram e de quem tenho muitas saudades: o Manuel Bouza Serrano e o Joaquim Leal Martins.
Regressei a Abril de 2003, quando o Leal Martins foi nomeado para dirigir o Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, resultante da fusão dos extintos Serviço Nacional de Protecção Civil, Serviço Nacional de Bombeiros e Comissão Especializada em Fogos Florestais. Bem ao jeito da tradição naval, um pequeno grupo de camaradas de outras guerras combinou um almoço em Carnaxide para lhe dar força e manifestar solidariedade.
E lembrei-me do Bouza Serrano, que conhecia por dentro o meio que chamávamos de “bombeiral”, dizer ao Leal Martins que lhe desejava toda a sorte do mundo mas que tinha aceitado uma missão muito difícil, senão mesmo impossível. De facto a nomeação do Leal Martins foi sempre contestada pelos barões do meio e não esperámos muito para ver confirmados os receios do Bouza Serrano.
Em Setembro, na sequência dos muitos e grandes incêndios que devastaram o país num Verão com condições meteorológicas excepcionais, provocando 21 mortos, a destruição de 425 726 hectares de floresta (8% da área florestal portuguesa) e a detenção de cerca de uma centena de pessoas suspeitas de fogo posto, o Leal Martins demitiu-se.
Catorze anos depois, vale a pena revisitar as discussões e os argumentos da época. As fragilidades do sistema de defesa da floresta contra incêndios mantêm-se, os discursos dos actores principais mantêm-se, os interesses nos negócios do “bombeiral” mantêm-se, o sacrifício das populações mantém-se, só faltam o Bouza Serrano e o Leal Martins para o almoço.


25/06/2017


Será um defeito de formação mas gostaria que a ministra falasse muito menos e tivesse dito apenas qualquer coisa como isto: Estive vários dias no local e já tenho uma noção do problema. Agora vou estudá-lo detalhadamente, com o apoio dos serviços do ministério, e dentro de dois meses apresentarei as conclusões a que chegar assim como um plano de acções correctivas.
Repetir o que ouviu de A, B e C, aparentemente sem filtro ou validação, esperar que uma comissão técnica especializada da Assembleia da República possa dar resposta a tudo, está muito longe do que entendo ser uma atitude responsável de um ministro.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

O engenheiro que não gostava de Física e detestava Química


O meu neto está hesitante na escolha. Quer estudar engenharia mas como não gosta de Físico-Química e tem medo de baixar a nota, pondera outras áreas.

Compreendo-o porque também nunca gostei de Física e sempre detestei Química. O meu pai dizia-me que para se gostar de Físico-Química, ou de qualquer outra disciplina, digo eu, era importante ter tido um bom professor. No caso dele tinha sido fácil porque foi aluno do professor Rómulo de Carvalho no Camões. Eu não pedia tanto mas de facto nunca apanhei um professor que despertasse o interesse por aquelas disciplinas.

Apesar disso, julgo que a Físico-Química, embora sendo um empecilho, não condicionou as minhas opções académicas. Mas admito que tenham existido outras condicionantes.

Lembro-me que muito cedo pensei ir para o Técnico mas o meu pai, que era um homem que via sempre mais além do que nós, chegou à conclusão que ser oficial de Marinha seria um boa escolha profissional. Estruturou as suas razões e, paciente mas obstinadamente, procurou convencer-me que concorrer à Escola Naval seria a minha melhor opção.

Eu ouvia-o, reconhecia a força dos seus argumentos, e por isso, no momento decisivo, para além dos exames de admissão ao Técnico, fui fazer os exames e as provas de ingresso na Escola Naval. Os exames médicos e as provas físicas correram muito bem mas quando cheguei aos exames de Matemática e de Físico-Química, chumbei. Foi uma grande desilusão para o meu pai, tanto mais que na admissão ao Técnico tirei dezanove a Matemática, para compensar o treze a Físico-Química.

Eu bem tentei convencê-lo que os exames da Escola Naval eram mais difíceis que os do Técnico mas a minha mãe, que me conhece de ginjeira, tinha uma explicação muito mais simples: ─ Sempre fizeste e fazes o que queres, não adianta tentar convencer-te do contrário!

O meu pai depressa aceitou o desaire, lembrando-se certamente da desilusão da mãe quando, trinta anos antes, ele próprio tinha decidido ir para Agronomia e ser “engenheiro das nabiças,” na fala de uma mãe contrariada por o filho não ter ido para medicina ou engenharia civil.

E assim me matriculei em engenharia electrotécnica no IST e por lá andei dois anos, graças ao sacrifício dos meus pais. Se quanto à Física e à Química os ditados do Ilharco e as lagrangeanas do Sales Luís não ajudaram a melhorar a minha opinião, quanto ao resto a experiência universitária também não era particularmente interessante. Por isso, um dia, decidi anunciar aos meus pais, como se fosse a coisa mais natural deste mundo: ─ Amanhã vou à Escola Naval saber o que é preciso para concorrer outra vez. Apesar da surpresa, em especial do meu pai que já me imaginava engenheiro na Efacec, aceitaram a guinada e continuaram a apoiar-me. Não sei se o cenário idealizado inicialmente seria esse mas estou certo que, vinte e um anos depois, no seu dia de aniversário, o meu pai ficou muito feliz por estar comigo em Kiel, na cerimónia de “flutuação” de duas das fragatas da classe Vasco da Gama. Ele sabia que a construção daqueles navios era para mim o topo da carreira como oficial de Marinha engenheiro.

Voltando ao fio da história, o Dâmaso, o Oliveira ou o Lamas na Escola Naval, assim como os vários lentes estrangeiros na pós-graduação em Monterey, não modificaram o meu desamor pela Física e pela Química. Ganhei a cédula profissional de engenheiro mecânico, leccionei na licenciatura de naval do Técnico, convivi com a engenharia de software e do ambiente, mas a aversão original à Físico-Química manteve-se. Profissionalmente, fui e sou engenheiro mas nunca gostei de Física e sempre detestei Química!

Eu sei de fonte segura que os conselhos são para ser contrariados, mesmo que um dia concordemos com eles e se transformem em decisões próprias. Por isso, Tomás, aqui fica um para fazeres dele o que muito bem entenderes. Não deixes que o acessório, seja a Físico-Química ou outra coisa qualquer, condicione a tua vida. A vida é um caminho longo e as pedras e os buracos fazem parte dela. O importante é chegares ao destino que escolheres independentemente deles.

terça-feira, 6 de junho de 2017

O aluno do poeta António Gedeão


Aníbal Jardim Bettencourt, 1956


Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão, Movimento Perpétuo, 1956


Esta é a história de um jovem nascido em Moçambique nos anos vinte do século passado mas que vamos encontrar em Lisboa, no último ano do liceu Camões, nas aulas de Química do professor Rómulo de Carvalho, o poeta António Gedeão da Pedra Filosofal. Filho de um casal de madeirenses que três ou quatro anos antes da primeira Grande Guerra cumpriram a sina de muitos portugueses, deixaram a terra natal e emigraram para Moçambique para fugir à pobreza e procurar uma vida melhor.

O pai teve vários empregos, foi colocado na ilha de Moçambique e mobilizado para combater os alemães no norte da província ultramarina até que estabilizou como funcionário dos correios na capital. A mãe, uma lutadora, criou os filhos, uma menina e quatro rapazes, e fazia o possível e o impossível para dilatar o magro ordenado do marido. Com os negócios que inventava, conseguiu mandar três filhos para a metrópole para tirarem cursos superiores. Medicina ou engenharia, queria ela. Os mais velhos fizeram-lhe a vontade e matricularam-se no Técnico.

O nosso jovem, excelente aluno, decidiu ser diferente e assim que acabou o liceu escolheu Agronomia. A mãe não achou muita graça, disse-lhe até que ia estudar para “engenheiro das nabiças,” mas sempre o apoiou. Terminou o curso de engenheiro agrónomo em 1948 e foi estagiar na Junta de Hidráulica Agrícola, no projecto de Idanha-a-Nova. Terminado o estágio ficou desempregado e regressou a Moçambique.

Concorreu aos Serviços de Agricultura e depois de meses de espera, foi admitido na Secção de Hidráulica Agrícola. Quando ocorreu um problema no vale do rio Incomáti, encarregaram-no de ir à Manhiça saber o que se passava. Elaborou um projecto de enxugo e rega para uma parcela do vale mas não o pôde executar por falta de financiamento e vontade política. Convencido que a burocracia de Lourenço Marques nunca o deixaria fazer obra válida, pediu transferência para Inhambane para estudar e trabalhar a cultura do café racemosa, espécie espontânea no litoral arenoso de Moçambique.

Em Inhambane dedicou‑se de corpo inteiro a apoiar os pequenos agricultores que encontravam na cultura do café uma alternativa às culturas do algodão, caju, chá, sisal, arroz e cana-de-açúcar, impostas pela administração colonial. Para estas culturas, cabia às empresas concessionárias, protegidas pelo Estado colonial, a organização de mercados de venda e o monopólio da compra do produto final. Em Moçambique o café escapava a estes circuitos monopolistas e durante alguns anos o mercado funcionou normalmente. O nosso jovem agrónomo foi instalando de raiz estações experimentais a centenas de quilómetros de casa, primeiro na Malamba, a sul de Inhambane, e depois no Gurué, na Zambézia, para o arábica, quando foi transferido para Quelimane. Produzia e distribuía sementes aos fazendeiros e agricultores que assumiam por inteiro todo o circuito de produção e venda do café. Claro que esta situação era intolerável para os poderes coloniais e em 1958 a cultura do café foi proibida em Moçambique. Quem quisesse trabalhar em café, que fosse para Angola!

O nosso agrónomo entregou toda a obra feita e preparou-se para mudar para Angola. Mas a destruição abrupta de mais de uma década de trabalho intenso afectou-o, física e psicologicamente, e adoeceu gravemente. Recuperou depois de quase um ano de tratamento em Portugal mas viu-se de novo à procura de emprego. A experiência na cultura do café permitiu-lhe um trabalho precário no Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro, uma instituição científica sediada em Oeiras que se dedica ao melhoramento genético das plantas com o objectivo de encontrar variedades produtivas e resistentes às pragas e doenças que atacam as plantações nos países produtores de café. Agarrou a oportunidade com entusiasmo, sem hesitar. Consolidou e expandiu as suas competências com o trabalho para o Instituto do Café de Angola, do qual dependia administrativamente, e para o Instituto Brasileiro do Café, porque o Brasil era um dos países produtores mais afectados pela ferrugem do cafeeiro.

Quando ocorreu o 25 de Abril, foi colocado no Quadro Geral de Adidos e partilhou a saga da integração vivida por milhares de portugueses das ex‑colónias, mas nem por isso deixou de ser um apoiante incondicional do movimento libertador.

Ao longo de mais de trinta anos, seleccionou e apurou variedades híbridas de cafeeiros resistentes, distribuiu as suas sementes por todo o mundo produtor de café. Pediam-lhe para trabalhar em Angola, Brasil, Venezuela, Colômbia, México, Guatemala, Nicarágua, Honduras, Costa Rica, Panamá, República Dominicana, para criar estações experimentais, para ensinar nas universidades, para apoiar centros de investigação, a tal ponto que passava no máximo dois meses por ano em Portugal e o resto andava a calcorrear o mundo. Ganhou reconhecimento mundial como um dos maiores cientistas no melhoramento genético do cafeeiro. Reformou-se aos 70 anos e publicou o último de inúmeros artigos científicos em 2008, encerrando a carreira científica.

Esta é a história da carreira profissional do jovem aluno de Química do poeta António Gedeão, a história de quem me marcou indelevelmente por ser meu Pai!

sábado, 6 de maio de 2017

Ainda Abril Hoje




Com as conferências de 26 de Abril sobre o Bullying e de 3 de Maio sobre o Desemprego, o projecto “ABRIL HOJE” na Escola Básica e Secundária de Carcavelos entrou na recta final. Agora é o tempo das conclusões e dos agradecimentos. Estes, em regra, são escritos em último lugar mas precedem tudo o resto. Por isso começo por eles. Estou grato à Andreia, ao André, à Beatriz, às duas Carolinas, ao Diogo, ao Gonçalo, à Inês, à Íris, à Joana, ao Lucas, à Mafalda, à Mariana, ao Miguel, à Patrícia, ao Ricardo, à Rita, ao Rúben, à Sarah e aos muitos outros alunos do projecto “ABRIL HOJE” cujo nome não fixei mas que foram a sua razão e a sua essência. Grato pelo que me ensinaram e por confirmarem que é através do exercício da cidadania em liberdade que se constrói uma sociedade mais justa e mais humana.

Quarenta e três anos depois no “dia inicial inteiro e limpo” de Sophia, voltou a acontecer Abril. Por mérito dos alunos e dos professores da Escola de Carcavelos mas também por mérito do próprio 25 de Abril de 1974, um acontecimento histórico que se mantém actual nos seus objectivos e nos seus valores.

O 25 de Abril foi uma acção generosa de um grupo de jovens militares para resolver problemas muito complexos. Portugal era, em 1974, um país atrasado e fechado, com mais de 30% de analfabetismo, governado por um regime político autoritário, autocrata e corporativista, velho de 41 anos, sustentado por um aparelho repressivo que coarctava todas as liberdades individuais e políticas, que oferecia aos portugueses más condições de vida, em particular nas zonas rurais; com um sector agrícola estagnado e um sector industrial condicionado e pouco desenvolvido, que levou à emigração de quase dois milhões de portuguesas para a Europa Ocidental e a América ou, em alternativa, à migração para a periferia das grandes cidades com o aumento exponencial dos bairros de lata e das habitações clandestinas, sem saneamento básico, associados a fenómenos extremos de pobreza, de exclusão social, de criminalidade e de prostituição; que mantinha desde 1961 uma média anual de 105 mil homens envolvidos em três frentes de guerra em África, 54 mil em Angola, 20 mil na Guiné e 31 mil em Moçambique, atingindo o total de 148 090 homens em 1973; numa guerra cujo fim era totalmente imprevisível e onde combateram mais de 800 mil homens, dos quais cerca de 70 por cento eram recrutados na Metrópole através do serviço militar obrigatório que durava 4 anos, que causou a morte de 8 831 portugueses, a deficiência física de perto de 14 mil e traumas psíquicos em cerca de 140 mil. Foi esta situação complexa e grave que os jovens militares do Movimento das Forças Armadas decidiram resolver.

Mas o 25 de Abril foi também um exercício de pensamento crítico. Na instituição militar, um dos sustentáculos do regime, directamente empenhada numa guerra em que os sinais de saturação eram evidentes, as medidas políticas que o Governo tomava com o objectivo de assegurar a sobrevivência do regime e a eternização da guerra tinham grande impacto. Dependendo do grau de consciência política de cada um, um número significativo de jovens militares dos três ramos das forças armadas começou a discutir de forma mais ou menos aberta a questão da guerra e a própria natureza do regime. Em Junho de 1973, o 1º Congresso dos Combatentes do Ultramar, uma iniciativa da direita nacionalista e dos sectores radicais do poder político e do governo teve como finalidade fazer aprovar o conceito de que a solução da Guerra do Ultramar era militar e que era necessário reforçar o esforço de guerra. Em resposta, os militares dos quadros permanentes do Exército decidiram recolher assinaturas para, por telegrama, contestarem os objectivos do Congresso. Com total sucesso, pois ao enviarem e difundirem um telegrama subscrito por mais de 400 oficiais dos quadros permanentes onde afirmavam não reconhecer qualquer decisão que fosse aprovada no Congresso, esvaziaram completamente o mesmo. Além disso, esta manifestação de natureza militar teve importância fundamental na acção que levaria ao 25 de Abril. Com efeito, os militares contestatários ganharam consciência da sua força e da fraqueza do Poder ao obterem, em pouco tempo, mais de 400 adesões, numa manifestação pública de insubordinação sem sofrer quaisquer represálias. É que à luz dos regulamentos militares em vigor, a recolha das assinaturas constituiu de facto um acto colectivo de indisciplina dos oficiais do Quadro Permanente (QP).

Por razões internas e externas, estavam criadas as condições propícias à eclosão de uma revolta, faltava apenas um detonador. Ele surgiu quando em 13 de Julho de 1973, a seguir ao Congresso dos Combatentes, o Governo publicou o célebre Decreto-Lei 353/73, que alterou a contagem da antiguidade dos oficiais milicianos que ingressavam no QP do Exército e reduziu para apenas um ano, seguido de um estágio de seis meses, a duração do curso especial da Academia Militar. Estas medidas, que tinham como objectivo colmatar a falta de capitães do QP para comandar as companhias na guerra, eram inaceitáveis para os oficiais oriundos de cadetes da Academia Militar. Logo em 17 de Julho e aproveitando a visita do director do Serviço de Pessoal do Ministério do Exército ao Instituto de Altos Estudos Militares, um grupo de militares que o frequentavam apresentou‑lhe a primeira de várias exposições que contestavam o decreto. Foi essa a génese do Movimento dos Capitães, criado com o objectivo de defender os interesses da classe de capitães do QP do Exército. A primeira reunião do núcleo criador ocorreu em 21 de Agosto de 1973 e sua designação foi inspirada por uma inquietação corporativa.

No entanto, o Movimento dos Capitães, que representava efectivamente uma minoria dos oficiais do QP do Exército, não mais de 700 em 4165, sofreu um rápido processo evolutivo. A sua base de apoio ampliou-se à medida que se realizavam as reuniões plenárias, a questão corporativa perdeu terreno perante outros objectivos, dos quais a dignificação das forças armadas e a solução política da guerra se apresentavam como os mais significativos, isto apesar do Governo, alarmado com as repercussões das medidas tomadas inicialmente, ter tentado atenuar alguns aspectos. Convencido da natureza exclusivamente corporativa do descontentamento dos jovens oficiais, o Governo procurou desmobilizá-los com a anulação do decreto e um substancial aumento dos vencimentos, em particular dos capitães cujo vencimento foi aumentado em 40%, já próximo do fim de 1973. Mas a crescente consciencialização política do Movimento, assim como a convicção de que a guerra só seria resolvida se o Governo fosse derrubado, tinham tornado o processo irreversível. Além disso, a adesão de elementos de outros ramos das Forças Armadas, da Marinha e da Força Aérea, tornou o Movimento muito mais abrangente, quer em objectivos quer em participantes. Foi neste espírito e com essa consciência que elementos do Movimento estiveram presentes em 1973 no III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro. Mais tarde, as teses de Aveiro haveriam de inspirar o Programa do MFA como ideário da liberdade, da paz e da democracia. É por isso que embora o Movimento dos Capitães tenha estado na génese do Movimento das Forças Armadas (MFA), não corresponde exactamente à mesma realidade política e sociológica. Houve oficiais que pertenceram ao primeiro e não estiveram no segundo, assim como uma parte dos oficiais que integrou o MFA não pertenceu ao Movimento dos Capitães.

Mas nas condições do regime no poder em Portugal, a conspiração e preparação da acção militar de 25 de Abril tinham de ser também um exercício de criatividade. Sobram evidências dessa criatividade em todo o processo de maturação do MFA, na preparação e condução das reuniões preparatórias e de coordenação, no estrito respeito dos princípios da representatividade e da democraticidade, na forma como os aderentes eram esclarecidos e mantidos informados das principais decisões, na elaboração do Plano de Operações e do seu anexo de Transmissões, tudo num contexto em que as forças adversárias eram incomparavelmente mais poderosas que os revoltosos. Num processo que durou cerca de sete meses, em que foi necessário contrariar e iludir as iniciativas e as acções do poder e do seu aparelho militar e policial, só um formidável exercício de criatividade pode explicar a surpresa com que o governo se apercebeu, tardiamente, da movimentação de milhares de militares revoltosos, em todo o país, na madrugada de 25 de Abril de 1974.

O curto período de maturação do MFA e as condições da conspiração não possibilitaram que todos interiorizassem uma visão política e ideológica consistente. Mas permitiu contudo elaborar um programa político para o período de transição para a democracia, o Programa do MFA, cujo espírito é claro quanto à transição do poder para as forças políticas civis e à não continuação do MFA e das Forças Armadas no exercício do poder para além do período de transição, assim como quanto ao direito dos povos das colónias à autodeterminação e independência e ainda ao desenvolvimento da sociedade portuguesa num sentido progressista em benefício das classes mais desfavorecidas. Esta foi a maior singularidade histórica do 25 de Abril e a prova final da criatividade dos militares de Abril. Tomaram o poder para instituir a democracia e a liberdade, dando início a um processo global de democratização na Europa, na América do Sul e noutros pontos do mundo.

Mas o sucesso da preparação e da execução do golpe militar assim como das operações ao longo do dia 25 de Abril foi também um exercício de gestão de equipas digno de menção. Foi a competência dos jovens oficiais do MFA de gestão de equipas, adquiridas nos teatros da guerra em África, que permitiu que um núcleo reduzido de poucas centenas mobilizasse e empenhasse na execução do Plano de Operações, milhares de outros oficiais, de sargentos e de soldados, tudo em poucas horas. As qualidades de liderança dos dirigentes do Movimento e a confiança dos subordinados foram decerto decisivos em todo o processo.

Mas se a gestão de equipas foi decisiva para o sucesso das operações militares, a capacidade de coordenação com outros passou a ter importância primordial a partir da manhã do dia 25 de Abril, primeiro no confronto e negociação com as forças adversas e com as tendências hegemónicas que cedo se manifestaram no interior do novo poder político-militar, e depois na relação com a sociedade civil e com as forças políticas e partidárias. Logo que o Movimento se tornou vitorioso, os militares do MFA tiveram de trabalhar com outros em condições totalmente novas, procurando fazer cumprir o seu programa num ambiente complexo e sujeito a dinâmicas sociais e políticas imprevisíveis. Todo o processo até à entrada em vigor da Constituição em 25 de Abril de 1976, extremamente complexo e algumas vezes à beira de confrontos desastrosos para o povo português, mostrou que a maioria dos militares que de uma forma ou de outra estiveram envolvidos no 25 de Abril foram capazes de assegurar que o fundamental daquilo que levou o Movimento a avançar para o derrube do Estado Novo foi, apesar de tudo, preservado.

Em apenas dois anos, Portugal sofreu a mais profunda mudança da sua história, não só do sistema político mas também das concepções, estruturas e relações sociais e económicas. E no centro dessa mudança estiveram sempre os militares de Abril e as suas competências de resolução de problemas complexos, de pensamento crítico, de criatividade, de gestão de equipas e de coordenação com outros. As mesmas competências que hoje o Fórum Económico Mundial considera como as mais determinantes para o sucesso dos jovens no mercado de trabalho em 2020!

É por isso que falar de ABRIL HOJE é uma lição para os jovens e um desafio para que, tal como os jovens militares de Abril, sejam capazes de fazer algo de novo de acordo com a sua consciência, mesmo correndo riscos. E quando os jovens estudam e debatem os problemas que os afectam como o fizeram os alunos da Escola de Carcavelos, num exercício de cidadania e construção de uma sociedade mais justa, tenho confiança no futuro. Tenho confiança que serão verdadeiros empreendedores, não no sentido individualista do conceito, mas de acordo com os valores da liberdade, da solidariedade, da inclusão dos mais desfavorecidos, do progresso social. Tenho confiança que serão capazes de resistir aos instrumentos de submissão, por mais sedutores que se apresentem, e, inspirados pelas palavras de Vergílio Ferreira, digam NÃO ao que os limita e degrada e construam o SIM da sua Dignidade.



P. S. — Uma palavra para os professores da Escola Básica e Secundária de Carcavelos que se empenharam no projecto “ABRIL HOJE.” Estou-lhes muito grato. Não vou citar os seus nomes mas ficaram gravados na minha memória. Sabem como sou orgulhoso e preocupado com os meus oito netos. O vosso exemplo e o de tantos outros professores que tenho conhecido nas conversas sobre o 25 de Abril em escolas dos concelhos de Oeiras, Cascais e Amadora, fazem-me acreditar que a escola pública é, apesar de todas as dificuldades, o lugar certo para os meus netos prepararem o futuro. Bem hajam!