sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Carta à Mafalda


Rendimento familiar médio líquido equivalente por idade,
 para britânicos nascidos em diferentes décadas


Disseste que pertences à primeira geração que vai viver pior do que as anteriores.

Percebi o que querias dizer e, como tu, também estou preocupado com a quebra do contrato social entre gerações. Sei que com a crise económica se abriu uma brecha geracional e que a ascensão social automática deixou de ser uma certeza para a tua geração.

Com efeito, na última década e meia, as traves-mestras da relação entre gerações foram destruídas. A expectativa de que jovens da tua geração viveriam melhor do que os das anteriores foi desmentida pela realidade e todos sabemos que vocês são os que mais sofreram os efeitos da crise, com a precarização do emprego, a discriminação salarial, a emigração para sobreviver ou, no melhor dos casos, para poder aplicar os conhecimentos adquiridos, a maior parte das vezes com dinheiro público, etc.

Mas como em todas as questões, é preciso tentar ver um pouco mais além, tanto mais que pelo menos desde 2016 se repete até à exaustão, por toda a Europa, que os filhos terão de viver pior que os pais, sem que se pare para reflectir o que isso significa e como pode ser contrariado.
 
O alarme foi dado pelo jornal britânico The Independent quando, em Setembro de 2016, publicou um artigo com o título “Children of Thatcher era have half the wealth of the previous generation”, seguido do sub-título “People born in the early 1980s are the first post-war generation to reach their thirties with smaller incomes than those born a decade earlier”. O artigo, muito crítico das políticas neoliberais, citava dados de um relatório do Institute of Fiscal Studies intitulado “The Economic Circumstances of Different Generations: The Latest Picture”.

A partir dos dados do rendimento familiar médio líquido equivalente (depois de deduzidos os custos de habitação) por idade, para britânicos nascidos em diferentes décadas (ver figura), o estudo do IFS constatou que os nascidos no início da década de 1980 começaram a vida adulta com menores rendimentos do que os nascidos na década anterior (1970).
 
Constituam assim a primeira geração do pós-guerra a iniciar a vida activa com rendimentos menores do que os seus antecessores auferiam com a mesma idade, reflectindo o facto de que a crise económica de 2006 tinha atingido mais duramente o salário e o emprego dos jovens adultos. No entanto, o mesmo estudo teve o cuidado de notar que os nascidos no início da década de 1980 começaram a vida adulta com rendimentos muito mais elevados do que os nascidos nas décadas de 1960 e anteriores.

Embora os números fossem da sociedade britânica, podiam facilmente ser extrapolados para o resto da Europa e, talvez por isso, a mensagem simplificada de que a geração dos Millennials seria a primeira que vai viver pior do que as anteriores, acabou por ser propagada pelos sectores ideológicos mais radicais e sentida, muito em particular, pelos que como tu que se tornaram adultos no auge da pandemia de covid-19.

Em consequência, a crise do capitalismo e da quebra da promessa de que, com preparação e esforço individual, cada geração viveria melhor e num mundo melhor do que a dos seus pais, acabou por ser usada para criar artificialmente uma clivagem geracional que ultrapassa a questão dos rendimentos e afecta as expectativas pessoais mais profundas da tua geração.

Neste contexto, compreendo que a tua geração veja os idosos como pessoas que realizaram os seus sonhos, enquanto os netos sentem que o futuro lhes foi roubado, mesmo que estudem e trabalhem muito. De facto, muitos idosos estão apenas preocupados com um vírus, enquanto recebem uma pensão de reforma significativamente superior ao salário médio a que os seus netos podem aspirar, mesmo a médio prazo.

Confesso, Mafalda, que não foi esta a sociedade que na década de 1970 sonhei para ti, para os teus irmãos e para os teus primos. E que sei que a frustração das expectativas de futuro, materiais e emocionais, é uma das feridas mais difíceis de sarar numa sociedade.

Por isso estou disponível para contigo e com os jovens da tua geração, tentar restaurar a confiança entre gerações que a crise do capitalismo destruiu. É que, apesar do fatalismo da mensagem propagada, a tua geração, à semelhança do que aconteceu com a minha na década de 1970, não está condenada a não ter futuro.

domingo, 20 de novembro de 2022

Não tem, mas inventa!

Há quem diga que o meu pai tinha uma relação muito especial com o dinheiro, mas eu tenho a certeza de que ele não tinha qualquer relação com o dinheiro. Nos cinquenta anos de actividade profissional, nunca soube quanto ganhava. Quando o vencimento era pago em numerário, recebia e entregava o envelope à minha mãe, e não pensava mais no assunto. Quando passou a receber no banco, libertou-se totalmente da preocupação de levantar o ordenado.
 
Viveu noventa e um anos, sempre com muito pouco dinheiro na carteira, só o estritamente necessário para os seus gastos pessoais, que eram diminutos. O orçamento familiar era administrado pela minha mãe, que se encarregava de adquirir todos os bens necessários, dos alimentos aos medicamentos, dos livros à roupa, dos computadores aos carros.
 
Quando o meu pai, por qualquer razão, decidia premiar monetariamente os filhos, ou mais tarde os netos e os bisnetos, chamava a minha mãe ou, na sua ausência, escrevia num pedaço de papel: “VALE cinco escudos”, ou outro valor qualquer. Depois lá íamos nós ter com a minha mãe para resgatar o vale e ouvir o discurso do costume: — O teu pai é muito esperto, não tem dinheiro, mas inventa!

Lembrei-me disto a propósito da sempre ameaçadora crise bancária e de como ela tem servido para nos pôr a pagar a vida faustosa dos bancos e dos banqueiros. Claro que os banqueiros sabem que a apregoada crise não será como a pintam, mas dá muito jeito manter a ameaça.
 
A Irlanda provou, em 1970, que era possível passar sem os banqueiros que fizeram uma greve e fecharam os bancos para vergar os trabalhadores bancários. Ao fim de seis meses os banqueiros recuaram porque nada de grave se tinha passado. A população criou um sistema de trocas, com instrumentos semelhantes aos vales do meu pai, e mostrou que os bancos eram menos necessários que a maioria dos serviços camarários.

É certo que os irlandeses precisaram de uma espécie de sistema financeiro, mas provaram que passavam bem sem os edifícios majestosos, os bónus e as remunerações obscenas, a especulação de risco e os resgates pagos pelos bolsos dos contribuintes. E que também passavam bem sem os reguladores e as guerras, reais ou inventadas, com os governos.