terça-feira, 21 de novembro de 2023

O Festival

 


Tinha chegado o momento de conhecer os amigos do filho que estava na Escola Naval. Uma coisa era ouvir falar deles, outra era conversar, cara a cara, com cada um. Por isso, o Senhor Coronel autorizou o filho, recém-promovido a Aspirante, a convidar os camaradas mais próximos para um jantar de família.

Foi assim que os cinco jovens que há pouco mais de um ano tinham decidido concorrer à EN pelas mais díspares razões, mas que tinham, entretanto, construído uma tão sólida quanto improvável relação de amizade que ainda perdura apesar de todas as vicissitudes e diferentes visões e percursos de vida, iniciaram as actividades do final daquele sábado, dia 20 de Novembro de 1971: com uma reunião e jantar familiar, mas formal, na casa do Senhor Coronel, no Estoril.

É verdade que os jantares na casa do Senhor Coronel se repetiram mais tarde na garrafeira, cada vez mais informais e sempre servidos pelo inesquecível Domingos, jantares que só por si, mereceriam que lhes dedicasse um texto. Mas por ora lembro apenas aquele porque, para além de ter sido o primeiro, ocorreu na casa de jantar da família e nele o Senhor Coronel confirmou a autorização para que a filha mais nova, uma adolescente de treze anos, fosse com o irmão e os amigos assistir ao 1º Festival Internacional de Jazz de Cascais.

Não que o Senhor Coronel apreciasse jazz, mas que diabo, era o primeiro festival que se realizava em Portugal e, ainda por cima, com o patrocínio da Secretaria de Estado da Informação e Turismo e da Junta de Turismo da Costa do Sol. Nada de mal poderia acontecer à menina, ainda por cima acompanhada por cinco candidatos a oficiais da Armada.

Foi assim que, terminado o jantar que correu muito bem, os cinco amigos e a irmã mais nova de um deles, rumaram ao pavilhão do Dramático de Cascais, tal como quase uma dezena de milhar de jovens como eles.

O que viram e sentiram ao entrar no pavilhão foi diferente de tudo a que estavam habituados em Portugal. Nas bancadas predominava a juventude, universitários e alunos do ensino médio da área de Lisboa que se tinham reunido com os amigos e ido até Cascais ver o que aquilo dava. A maioria nada sabia de jazz e nunca tinha ouvido falar de Miles Davis, de Ornette Coleman ou de Dizzy Gillespie. Mas havia no ar uma sensação de novidade, de liberdade, como se de repente tivessem saído do Portugal cinzento e estivessem no estrangeiro.

Suportaram alegremente as más condições de um pavilhão gimnodesportivo cujas obras estavam paradas há anos e não protestaram contra as longas interrupções do espectáculo para substituir os instrumentos no palco. Aplaudiram músicos e temas musicais que mal conheciam, num ambiente de festa, de partilha de uma nova experiência, que compensava todos os incómodos.

Até que na segunda parte o contrabaixista Charlie Haden, do quarteto de Ornette Colleman, decidiu usar o microfone destinado a amplificar o som do contrabaixo para dedicar o tema “Song for Che” aos movimentos de libertação em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Seguiu-se uma enorme ovação de centenas de jovens na plateia e nas bancadas, muitos deles com os punhos no ar e a gritar palavras de ordem contra a guerra colonial. A imprensa oficial, fortemente condicionada pela censura, ignorou o incidente e só muito dificilmente podemos encontrar ténues alusões a ele nas notícias publicadas nos dias seguintes.

Hoje sabemos que não se passou nada de grave, mas os cinco amigos, ao verem a movimentação da polícia e dos pides que entraram logo no pavilhão, decidiram abandonar o espaço do espectáculo. Não porque não estivessem familiarizados com situações idênticas, alguns deles tinham-nas vivenciado noutros ambientes, mas porque receavam pela segurança da menina à sua guarda. À saída viram as carrinhas da polícia de choque e um oficial do Exército fardado a rigor, de botas e pingalim, provavelmente seria o comandante da força policial.

A polícia acabou por não intervir e deixou o espectáculo terminar, eventualmente receosa das repercussões dada a presença de muitos estrangeiros na assistência. Mas o Charlie Haden foi levado para a sede da PIDE/DGS na António Maria Cardoso e sujeito a um interrogatório cujo auto só foi conhecido depois do 25 de Abril de 1974. Deixou Lisboa na manhã do dia 22, com ordem para não voltar a entrar em território português. E o segundo dia do festival só não foi cancelado como inicialmente a PIDE/DGS ordenou porque os organizadores prometeram que o incidente não se repetiria e lhes forneceram os 500 livre-trânsitos que exigiram. Não imaginava que houvesse tantos pides a gostar de jazz!

Charlie Haden voltou a Portugal depois da Revolução dos Cravos e actuou com Carlos Paredes com quem gravou uma versão do tema “Song for Che” com guitarra portuguesa. Compôs e gravou também uma interpretação da “Grândola Vila Morena”.

Quanto ao Senhor Coronel, receamos que depois do episódio do festival, tenha pensado que os amigos do filho afinal não eram boas companhias para a filha adolescente. Os amigos não sabem se foi por isso, mas a verdade é que nunca mais autorizou a filha a sair com o irmão e os amigos marinheiros.