segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O amor não é caça de altanaria




A garça

No dia em que ele a tentou matar, Ângela levantou‑se às 7 e 15 da manhã para estar no centro de saúde à hora da consulta*. A onda de calor dos últimos dias não abrandava, saiu de casa com a temperatura bem acima dos 20 graus mas às duas da tarde devia rondar os 40. Não foi trabalhar depois da consulta médica e voltou para casa, sozinha. Os pais passavam os dias nos empregos e a mãe arranjou‑lhe uma ocupação na empresa onde trabalhava para estar ocupada durante as férias escolares e ganhar algum dinheiro, mas naquele dia pediu para ficar em casa. Sentia-se inquieta, não pelo calor excecional daquele Agosto. A inquietação da Ângela tinha um rosto e um nome: Felício. Namoraram quase um ano e meio, até há cerca de quatro meses. Em Abril a Ângela decidiu acabar o namoro por causa do comportamento do Felício. É que se tudo estivesse de acordo com o que ele queria, não havia problemas, mas isso era muito difícil. O Felício tinha ciúmes de todos os amigos e amigas da Ângela e ela afastou‑se deles para que o namoro corresse bem; queria saber as passwords do telemóvel e das redes sociais e ela cedia na esperança que ele deixasse de ser tão ciumento e possessivo. O Felício decidia com quem a Ângela se podia relacionar e com quem podia falar; as discussões entre os dois eram frequentes, em especial quando o Felício encontrava a Ângela a conversar com amigos. Terminada a relação, o Felício não se conformou e durante três meses tiveram encontros esporádicos, alguns de cariz íntimo, mas a Ângela nunca aceitou reatar o namoro. Depois, com o restabelecimento da normalidade das relações com amigas e amigos, antigos e novos, a Ângela decidiu encerrar definitivamente aquele capítulo da sua vida e deixou de responder às tentativas de contacto do Felício. Durante quase um mês, em diversas ocasiões, por SMS e por outras formas, o Felício tentou insistentemente conversar com Ângela, sempre sem sucesso. Ao contrário das amigas e dos amigos, os pais da Ângela, e em especial o pai, não conheciam a natureza e os problemas do relacionamento da filha com o Felício, mesmo quando nos últimos dias o assédio se tornou mais intenso porque o seu novo namoro com o Vítor começou a ser falado. Se conhecessem, compreenderiam a reação da Ângela quando saiu com o cão e viu o Felício parar a carrinha à porta da sua casa.

O falcão

Os pais do Felício são operários fabris. Divorciaram-se há dois anos depois de um casamento que sofreu algumas ruturas e reconciliações ao longo do tempo, com uma vivência marcada pela conflitualidade associada ao facto de o pai ter sido consumidor de substâncias aditivas e de a mãe sofrer de um problema de saúde mental. O Felício decidiu ir viver com o pai e a avó paterna, acamada e tratada pela tia com a ajuda do sobrinho, mas mantem uma boa relação com a mãe. Fez um percurso escolar sem incidentes e depois do 9º ano optou pela via profissionalizante no curso de técnico auxiliar de saúde. Conheceu a Ângela na escola que ambos frequentavam e durante o tempo de namoro, não partilhava os problemas com os colegas e amigos. Na instituição de solidariedade social onde estagiou e posteriormente fez voluntariado, o Felício era considerado um rapaz calmo, solidário, participativo, meigo com os utentes de todas as idades, pronto a ajudar os outros colaboradores e muito bem‑educado. O estágio decorreu bem, a nota foi excelente, e faltava‑lhe apenas um módulo do curso para obter a equivalência ao 12º ano de escolaridade. Tentou reatar a relação com a Ângela por diversos meios. Andava em baixo, triste, especialmente a partir do princípio de Agosto, quando desconfiou que a Ângela teria um novo namorado. Com o insucesso das persistentes tentativas, radicalizou o teor das mensagens que enviava e chegou a escrever a colegas e amigas “Eu não a quero com ele” e “Não consigo eu vou tentar matá-la”, sem ouvir os conselhos para ter calma. Foi como motorista recém-contratado pela fábrica onde a mãe trabalha que passou pela casa da Ângela às 2 e 30 da tarde daquele dia quente de Agosto, que a viu no exterior com o cão e que decidiu parar para falar sobre a consulta médica que sabia que ela tinha tido de manhã e para, uma vez mais, tentar reatar o namoro.

O ataque

O Felício pediu para entrar e conversarem mas não esperou pela resposta da Ângela. Já na cozinha, perguntou-lhe se namorava com o Vítor e a Ângela deu uma resposta evasiva. Discutiram, cada vez mais exaltados, até que o Felício pegou na faca de cozinha pontiaguda que estava na bancada, apontou-a à Ângela e gritou que sabia que se ia encontrar com o Vítor naquela tarde. Quando o Iphone tocou, a Ângela disse – É o Vítor – e atendeu. Tentou avisar que estava em casa e que o Felício estava a ouvir. O Felício tirou‑lhe o telemóvel e ao ver a fotografia dos pés da Ângela e do Vítor, atirou o aparelho contra a parede e partiu‑o. A Ângela começou a chorar com receio que o pai lhe batesse por causa do telemóvel e fugiu para o quarto. O Felício seguiu-a, sempre com a faca na mão, e a Ângela voltou para a cozinha. Desesperada, confessou que namorava com o Vítor. O Felício aproximou-se da Ângela, desferiu um golpe com força e espetou os 12 cm de lâmina da faca na zona central do tronco, entre o peito e o abdómen. A Ângela caiu ao chão a gemer e o Felício disse apenas – Não acredito que fiz isto, a minha avó não me vai perdoar.**

Epílogo

Apesar dos pedidos angustiadas da Ângela e da perda de sangue, o Felício não a socorreu. Antes da chamada cair, o Vítor percebeu que a Ângela estava em casa e que disse a medo – Ele já te ouviu... Ligou de novo mas como o telemóvel não chamou, foi imediatamente para casa dela. Bateu várias vezes à porta mas o Felício só abriu depois da Ângela insistir que o deixasse entrar senão ela morria. Logo que abriu a porta, o Felício disse que tinha dado uma facada à Ângela e fugiu. O Vítor encontrou-a sentada numa cadeira, a chorar, a dizer que ia morrer e a pedir que a levasse para o hospital. Uma hora depois da agressão, a Ângela deu entrada no hospital, com um buraco na blusa e no sutiã e com uma “lesão perfurante na zona do epigastro/hipocôndrio direita, lesão essa que atingiu a totalidade da parede e com perfuração do fígado.” Foi sujeita a uma intervenção cirúrgica e várias transfusões de sangue e doze horas depois da agressão foi‑lhe dito que já não corria perigo de vida.

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* Paráfrase do primeiro parágrafo da Crónica de uma morte anunciada de Gabriel Garcia Márquez: “No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5 e 30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo.” Gabriel Garcia Márquez escolheu um excerto de uma obra de Gil Vicente para epígrafe da sua obra: “A caça de amor é de altanaria.” A novela não indica a fonte concreta, mas a citação é retirada da Comédia de Rubena, uma peça de Gil Vicente de 1521. Ambas as obras têm como tema amores clandestinos que levam à perda da honra da personagem feminina, à vergonha pública e à condenação social. Os excertos da obra de Gil Vicente presentes em Crónica de uma morte anunciada são: “La caça de amor / Es d’altanaría” e “Halcón que se atreve / con garça guerrera, / peligros espera.

** As muitas semelhanças com o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9 de Abril de 2018 não são coincidência.