quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Quarta-feira de Carnaval


Foi uma quarta-feira de cinzas cheia de máscaras carnavalescas: um marxista a defender a sobrevivência do capitalismo, um professor de economia reformado a falar de contas mal explicadas, um pecador numa confissão sem penitência e uma contabilista humilhada a fazer de arma de arremesso.
Enquanto o vento frio não leva para longe as cinzas deste Carnaval, resta gozar o belo sol de inverno.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

A very similar project

Fragata "Salamis", a quarta da classe "Hydra"

Dávamos os primeiros passos no programa de construção das fragatas da classe “Vasco da Gama”, no último terço da década de 80, quando recebemos uma delegação da Marinha da Grécia. A Marinha helénica ia adquirir fragatas Meko 200 semelhantes às portuguesas e os oficiais gregos vinham propor um acordo de cooperação e de troca de informações com a Marinha Portuguesa. Coube-me dialogar com o capitão-de-fragata Stamatis Kloudas sobre os detalhes dos sistemas mecânicos dos navios. Para além do posto, partilhava com o Commander Kloudas a qualificação académica e profissional obtida nos EUA. Embora o programa português estivesse num estádio bem mais avançado, a simpatia dos gregos cativou-nos e o acordo foi fácil.

Um par de anos mais tarde voltámos a encontrar o amigo Kloudas em Hamburgo, no estaleiro alemão da Blohm+Voss, então já capitão-de-mar-e-guerra. O Captain Kloudas chefiava agora a missão de supervisão do programa grego, iniciado cerca de um ano depois do nosso. A delegação grega, muito mais numerosa que a portuguesa, instalou-se num espaço contíguo ao nosso, e passou a ser uma visita assídua. À medida que o projecto dos navios helénicos progredia, habituámo-nos a receber o Captain Kloudas e os seus inúmeros adjuntos, pedindo-nos detalhes sobre os mais diversos aspectos do nosso programa e dos nossos navios. Num dia era isto, noutro dia era aquilo, e assim fomos com cada vez menos paciência e vontade, fornecendo elementos técnicos e de gestão do nosso projecto. Na prática, ensinámos o caminho das pedras que tanto trabalho nos deu encontrar. E tudo porque, como dizia o Captain Kloudas, o nosso era “a very similar project” e, claro, havia o tal acordo de cooperação.

Até fechar a porta do nosso escritório no estaleiro e regressar a Portugal no início de 1992, observei as aventuras daquele grupo heterogéneo e hierarquizado de oficiais de Marinha e de jovens que, residentes e a trabalhar na Alemanha, prestavam serviço militar por força da lei grega. A integração na delegação da Marinha no estaleiro contava como serviço militar obrigatório e para aqueles jovens, maioritariamente nascidos e educados na Alemanha e licenciados em engenharia por universidades alemãs, era uma oportunidade para o prestarem perto da família e de casa. Em troca eram, durante alguns (poucos) meses e para além de técnicos, tradutores e elos de ligação com os técnicos alemães, estafetas e moços de recados, e tudo o que fosse necessário para aligeirar o trabalho do Captain Kloudas e dos seus oficiais. Lembro-me do desconforto dos alemães perante os múltiplos e sofisticados esquemas que os oficiais gregos engendravam para contornar dificuldades do programa ou até satisfazer interesses pessoais, como por exemplo, a aquisição de BMWs topo de gama, a preços reduzidos e totalmente isentos de impostos.

Cerca de um ano depois, numa noite invernosa, estava eu alojado numa messe da Marinha britânica e encarregado de tarefas que já nada tinham a ver com a construção das fragatas, fui acordado pelo clarão de um incêndio num navio ao largo de Portland, no sul de Inglaterra. Soube de manhã que se tratava da novíssima fragata grega "Hydra", recém-saída do estaleiro de Hamburgo. Procurei saber as causas do incêndio, não fosse existir um risco semelhante nas nossas. No fundo eram “a very similar project.” Todas as diligências, primeiro junto do comando do navio e depois junto da Marinha grega, foram infrutíferas. Consegui mais tarde obter a informação no estaleiro, embora com limitações resultantes do litígio que o incidente entretanto provocou. E assim se frustrou a primeira, e julgo que última, oportunidade de inverter o fluxo de informação entre as Marinhas portuguesa e grega.

Mais alguns anos passados, já perto da viragem do milénio, fui integrado numa delegação enviada pelo Ministério da Defesa Nacional a Atenas para renovar o velho acordo de cooperação com a Marinha grega. Chegados ao ministério da defesa grego, fomos recebidos com toda a pompa e simpatia. E por quem? Pelo nosso amigo Kloudas, agora já contra-almirante e chefe daquilo tudo! Mais de dez anos depois, mantendo-me eu no posto de capitão-de-fragata, voltei a ouvir as mesmas loas ao acordo de cooperação entre as duas Marinhas, agora sobre a manutenção e modernização das fragatas, tudo porque eram “a very similar project.

Não sei o que se passou depois da renovação do acordo porque entretanto passei à reserva e dediquei-me a outras guerras. Mas sei que o Vice-almirante Kloudas chegou a "Inspector General of the Hellenic Navy" e, para mal dos nossos pecados, Portugal e Grécia continuam envolvidos no que dizem ser “a very similar project.”