quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

O alienígena


O homem tem a minha idade mas não viveu no mesmo tempo que eu. Desconfio mesmo que não viveu no mesmo país e no mesmo mundo que eu. Apesar de falar a mesma língua que eu e ter o cartão de cidadão português, há uma forte probabilidade de ter vindo de um outro planeta ou, quem sabe, de uma outra galáxia. Porque só um alienígena poderia pensar que a cor de origem dos portugueses é branca e a nossa "raça" é caucasiana.

Só um alienígena não sabe o que se dizia nos EUA sobre os portugueses ou, para ser mais exacto, sobre os “Portagees”, um grupo étnico mais ou menos “colored”, muito tosco, longe da sofisticação dos “white Anglo Americans”, e retratado nas personagens Rosa Martin e Big Joe Portagee do romance “Tortilla Flat”, o primeiro sucesso literário de John Steinbeck cuja acção se desenrola na Califórnia.

Só um alienígena desconhece o ódio que sentiram os portugueses na Nova Inglaterra, onde para além do argumento religioso, havia um outro: o racismo. Mesmo no poema inocente de Alma Martin sobre Provincetown, “The Heavenly Town”, a questão da cor é realçada:
“(...)
Dark Portuguese
From far-off seas
Their ships in bay
Pass time of day
(…)
Dark laughing boys,
Dark smiling girls,
With here and there a native son,
With blue eyes full of Yankee fun.
(...)”

Só um alienígena não sabe que para uma mulher que nasceu e vive na Malásia e se orgulha de ser portuguesa, alguém com a minha cor de pele é demasiado branco para ser português. E não sabe que portugueses são todos os que se encontrei pelo mundo fora e se sentiam como tal, fosse qual fosse o lugar onde nasceram ou cresceram, a sua nacionalidade, a sua cor de pele ou a sua “raça”.

Só um alienígena não sabe que portugueses são os milhões cujas pátrias de pertença foram construídas, independentemente das características étnicas do povo de onde nasceram e entre o qual cresceram, com uma cultura que muitas vezes apenas conhecem pelo que lhes foi transmitido pelos pais e avós, com uma religião professada tanto pelos que rezam na igreja de São Pedro em Malaca como na igreja das Cinco Chagas em São José na Califórnia, com uma língua que muitos mal conhecem mas que é a dos seus antepassados. Pátrias de que gostam embora muitas vezes delas só tenham a imagem que Miguel Torga descreveu de “uma nesga de terra debruada de mar”, frequentemente desfocada ou imaginada de uma serra transmontana, de uma planície alentejana, de uma caldeira açoriana ou de uma fajã madeirense.

Só um alienígena pode ter orgulho da pátria única da ditadura, a pátria da minha infância a papaguear os rios e as linhas de caminho-de-ferro de uma Metrópole desconhecida numa escola de Quelimane, a pátria da infância dos meninos das ilhas e das colónias que viram cartazes a proclamar “Aqui também é Portugal!” durante visitas de presidentes vindos de longe e recebidos com pompa e circunstância, a pátria dos meninos homens como o meu avô que se alistaram para fugir à pobreza e foram combater uma guerra distante, a pátria que roubou a saúde e a vida dos milhares e milhares de jovens que combateram nas matas africanas, a pátria que não foi ditosa e foi madrasta para gerações de portugueses, empurrados para outros lugares em busca de melhores condições de vida.

E é por poder ser um alienígena e poder constituir uma ameaça para os Portugueses, que o homem deve ser considerado perigoso e tratado com todas as cautelas.