terça-feira, 28 de julho de 2015

Uma Carta a Garcia



No início de 1993, um pequeno grupo de militares recebeu ordem para negociar, adquirir, e trazer para Portugal o RFA Blue Rover, um small fleet tanker da classe Rover, em fim de vida ao serviço da Marinha do Reino Unido. Foi uma missão atípica, considerada impossível por muitos e cujos detalhes poucos conhecerão. Por isso vale a pena lembrar.

A Marinha Portuguesa estava então sem navio reabastecedor e impossibilitada de cumprir compromissos operacionais internacionais. Precisava urgentemente de substituir o velho e imobilizado São Gabriel, mas não havia verbas orçamentadas para isso. Inesperadamente, os excedentes cambiais resultantes da significativa queda da libra, moeda de referência dos contratos dos equipamentos militares adquiridos no Reino Unido para a Marinha, e o anúncio da venda, quase a preço de sucata, do reabastecedor ligeiro Blue Rover, criaram uma hipótese de solução do problema. Poderia ser o tal navio para dez anos, tempo que se considerava necessário para projectar e construir um novo reabastecedor. Feitas duas vistorias técnicas no final de 1992, o Blue Rover foi considerado útil para a Marinha Portuguesa. Faltava concretizar a sua compra tão rapidamente quanto possível porque o navio ia ser abatido e desmantelado a partir de Fevereiro de 1993.

Eu estava na altura na missão de construção das fragatas Vasco da Gama, a fechar o respectivo período de garantia, e tinha integrado, com o engenheiro construtor naval Silva Paulo, a equipa da segunda vistoria ao Blue Rover. Fui chamado ao gabinete do Superintendente dos Serviços do Material, então o saudoso Almirante Moreira Rato, que me colocou uma questão muito simples:
‑ Assumindo que a Defesa aceita comprar o Blue Rover, de que é que precisa para ir buscar o navio a Inglaterra?
Assim mesmo, claro para militar entender!

Quem serviu com o Almirante Moreira Rato sabe que com ele a relação hierárquica assentava em dois pilares: a confiança e a lealdade. Tive a honra de merecer a sua confiança e por isso mantivemos sempre, em todas as circunstâncias, uma forte relação de lealdade. Quanto a me ter escolhido para aquela missão, nunca conversámos sobre isso, mas admito que estaria satisfeito com a forma com me desenvencilhei de tarefas e imbróglios mais ou menos complexos com estaleiro e fornecedores durante os anos do programa de construção das fragatas Vasco da Gama.

E foi assim que esqueci temporariamente a modernidade e as tecnologias das fragatas Vasco da Gama e esbocei um plano para trazer um navio auxiliar de 1970 para Lisboa. Defini a equipa inicial - um engenheiro construtor naval, os futuros Comandante, Imediato, Chefe de máquinas, Chefe de abastecimento e artífices de máquinas e electrotecnia e eu próprio - para recolher toda a informação possível sobre o navio junto da RFA e da tripulação britânica, preparar a vinda da restante guarnição e elaborar a lista de trabalhos de manutenção e adaptação a contratar localmente. Estimei um orçamento para fabricos, aprestamento inicial e despesas administrativas em Inglaterra e em Portugal, e indiquei os apoios e fornecimentos necessários dos organismos da Marinha. No dia seguinte fui com o Almirante Moreira Rato ao Ministério da Defesa Nacional para apresentar o projecto ao Director Nacional de Armamento e ao Secretário de Estado da Defesa e uns dias depois integrei o grupo que se deslocou a Londres para negociar a compra do Blue Rover à DESO. Depois de regateado e acordado o preço final de 5,5 M£, estabelecemos a data e o processo de entrega.

Como só dispúnhamos de dois meses para receber o navio, o plano inicial foi afinado e detalhado numa reunião das mais altas chefias da Marinha no gabinete do Chefe do Estado-Maior da Armada, ficando assente que os três Almirantes Superintendentes assegurariam a sua execução e os recursos mínimos necessários. Tratava-se de “fazer uma omelete com muito poucos ovos” e em muito pouco tempo. Foi nessa reunião que se definiu a nomeação e ida da guarnição por bordadas, a primeira até à entrega do navio e a segunda até o navio estar tecnicamente pronto para navegar para Lisboa. Foi-me dada autorização e cobertura para actuar com grande autonomia, mas com o rigor necessário para atingir o objectivo.

O RFA Blue Rover era em tudo um navio mercante. A tripulação tinha a formação, hierarquia e organização da Marinha Mercante e o navio era operado e mantido de forma significativamente diferente dos navios da Marinha militar. A todos os outros desafios, juntou-se mais um: transformar um navio mercante num navio militar em 2 ou 3 meses. Era necessário adaptar os alojamentos e redefinir as funções de bordo para uma nova estrutura da guarnição, alterar os modos de operação e manutenção para os aproximar das práticas correntes da Marinha Portuguesa, tudo em simultâneo com a recepção, aprestamento e reparação do navio. A minha experiência anterior na recepção e transformação do N/M Cabo Verde no NRP São Miguel era já longínqua e pouco ajudava numa conjuntura muito mais exigente.

O grupo inicial, muito heterogéneo e com poucas afinidades de personalidade e experiência, foi constituído por alguns voluntários como os engenheiros Silva Paulo e Cunha Lopes, este com seis anos de experiência no São Gabriel, e por pessoal nomeado de entre os disponíveis naquele momento. Aliás, dada a falta de tempo, o mesmo aconteceu com o resto da guarnição. Lembro-me do imediato, um oficial especializado em informática que pouco tinha navegado e necessitava do tirocínio para a promoção, do mestre que sabia tudo sobre o aparelho de vela da Sagres mas nada sabia sobre o aparelho de reabastecimento e mal entendia o inglês, do artífice que era especialista na montagem de antenas de televisão por satélite mas dizia não ter o curso do radar de navegação, lembro-me de muitas outras singularidades que a Direcção do Pessoal foi corrigindo ou minorando à medida que eram detectadas.

O que se passou a partir da ida do pequeno grupo inicial para Inglaterra não é fácil de resumir aqui, mas toda a estrutura de pessoal e do material da Marinha procurou dar resposta aos pedidos que íamos fazendo para Lisboa, enquanto o Ministério da Defesa Nacional, onde o comandante Mendes Calado era um elemento essencial, nos dava apoio financeiro. O Gabinete de Estudos, com o esforço do engenheiro Costa Alves, e a Direcção de Abastecimento, onde estava o saudoso Comandante Monteiro Marques, foram inexcedíveis no fornecimento do material de aprestamento, transportado num contentor pela Força Aérea e entregue no navio com o empenho do adido naval em Londres, o Almirante Teles Palhinha. Houve realmente uma convergência de vontades e esforços que ultrapassou todas as expectativas. E nós que estávamos no terreno, com a nossa diversidade, os nossos defeitos e as nossas qualidades, as nossas fraquezas e as nossas forças, fomos aprendendo uns com os outros, concentrados no essencial que era atingir um objectivo bem definido. Como disse mais tarde o Silva Paulo, tornou-se mais fácil para todos actuar num ambiente em que sabíamos ao que íamos, o que tínhamos de fazer e quais os critérios do processo.

Admito que tenha também havido alguma temeridade, que chegou mesmo a surpreender os ingleses que nos entregaram o navio. Logo após a recepção do navio e para navegarmos de Portsmouth para Falmouth, onde se situava o estaleiro contratado para o reparar e preparar para a viagem para Lisboa, não foi uma guarnição que pegou no navio, foi meia guarnição! Como a segunda bordada só embarcou no final dos fabricos em Falmouth, o navio saiu de Portsmouth conduzido por uma bordada que mal o conhecia e cujo treino foram duas a três semanas atracados em auto-aprendizagem e uma saída de um dia, sob comando inglês, para assistir ao reabastecimento da Exceter. Mas correu tudo bem. O navio navegou até Falmouth, pouco mais de um mês depois navegou até Lisboa e entrou a barra ainda antes do processo administrativo estar instruído!

E como não podia deixar de ser, também houve maledicentes. No plano inicial ficou logo definido que em Inglaterra só se fariam as reparações necessárias para assegurar a navegabilidade com segurança e as adaptações para a guarnição portuguesa, mesmo que a cor da ferrugem dominasse o exterior do navio. Como o navio estava a poucos meses de ir para a sucata, a RFA tinha de facto deixado degradar, e muito, os espaços e estruturas exteriores. Sabendo o que a casa gastava, tentei minorar o impacto visual e usei uma pequena parte do escasso orçamento de que dispunha para um tratamento de cosmética, necessariamente superficial e pouco duradouro. Mesmo assim, as más-línguas desconhecedores das circunstâncias do projecto, pegaram no óbvio e propalaram que tínhamos comprado sucata. O facto de o Bérrio continuar operacional e a servir a Marinha Portuguesa vinte e dois anos depois, quase tantos quantos navegou com bandeira britânica, é a melhor resposta para os maledicentes de então.

O padre António Vieira escreveu que “... o efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam connosco.” É por isso que recordo três camaradas ausentes que bem representam todos os que se empenharam nesta missão. Na cúpula da Marinha, o Almirante Pedro Joaquim da Costa Moreira Rato. Nos organismos de terra, o Comandante Paulo Manuel Monteiro Marques. E no navio, o Comandante Mário Ceríaco Dores Sousa, primeiro comandante do NRP Bérrio.

Concluída a missão, tivemos a certeza de ter levado a “carta a Garcia” quando observámos a festa que reuniu a bordo do Bérrio todos os Almirantes e comandos da Marinha Portuguesa, pouco tempo depois da chegada a Lisboa. Se tivéssemos falhado, a festa seria muito diferente.

Notas:

A Royal Fleet Auxiliary (RFA) é uma frota de navios mercantes do Ministério da Defesa do Reino Unido cuja missão é apoiar a Royal Navy, eventualmente em situações de combate.

O Defence Export Service Organisation (DESO) é o departamento do Ministério da Defesa britânico que promove a venda de equipamento militar, novo e usado, produzido por empresas do Reino Unido.