segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Marinheiros do meu Curso



Gosto que me considerem marinheiro, mas sei que não o sou verdadeiramente. Quando podia ter aprendido com os melhores, e alguns bem tentaram ensinar-me, tinha outros interesses e apenas cumpri os mínimos. Marinheiros a sério são muitos dos “jovens” do meu Curso, que está a celebrar os 50 anos da entrada na Escola Naval.

São tantos que não vou referir nomes para não me esquecer de algum e ferir susceptibilidades. Vou falar apenas de um porque o Comandante Homem de Gouveia, o nosso primeiro Comandante de Companhia na Escola Naval, me contou uma história que achei deliciosa.

No início da década de 1980, comandava ele a “Sagres” durante uma regata de grandes veleiros, quando se cruzou com o António São Marcos nos mares da Terra Nova. O São Marcos, nascido e criado numa família e numa terra de marinheiros, foi um dos cadetes do meu Curso que demonstrou sempre uma enorme paixão pelo Mar. As circunstâncias fizeram com que decidisse ir navegar os mares da Escola Náutica e se tornasse um ilustre oficial da Marinha Mercante.

Foi nessa condição, embarcado no último veleiro da pesca do bacalhau, que se cruzou com o seu antigo Comandante de Companhia da Escola Naval, a quem demos a alcunha de “Meirim”. O São Marcos, que na opinião do “Meirim” e, já agora, na minha, é um dos verdadeiros Marinheiros do meu Curso, fez jus à tradicional solidariedade entre gente do Mar. Pela fonia deu-lhe indicações preciosas sobre os ventos, os rumos, os perigos, enfim tudo o que era importante para a boa navegação e o sucesso da nossa “Sagres”.

─ Vá pelo Norte. Vá pelo Norte. Puxe para Norte o mais que puder, direito ao Farwell e entre na faixa das baixas da Islândia. Nesta altura vai apanhar sempre ventos frescos de feição ─ dizia-lhe o São Marcos. E o "Meirim", contra todas as opiniões, incluindo as do oficial navegador e de outros experientes velejadores, teimou e foi pelo Norte, dizendo-lhes que confiava em quem o tinha aconselhado.

Os outros bem perguntavam quem era, mas ele não dizia. E a "Sagres", pelo Norte, ganhou a regata. E por fim, chegados a Liverpool, quando lhe perguntaram quem lhe havia aconselhado a rota, respondeu-lhes apenas: ─ Foi um cadete!

A história podia acabar aqui, mas há um outro detalhe que não posso deixar de partilhar com quem teve a paciência de aqui chegar. A ligação rádio entre os dois navios não tinha problemas quando o São Marcos dava as suas dicas, mas logo que o “Meirim” lhe perguntava alguma coisa sobre a sua localização ou os seus planos, a comunicação caía. 

Quando mais tarde se encontraram de novo, o Comandante Homem de Gouveia, curioso, perguntou ao São Marcos porque raio acontecia aquilo. E o São Marcos respondeu com naturalidade: ─ Claro, o que é que o Senhor Comandante queria? Se lhe respondesse os outros levavam-me o peixe todo!

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Em tempo:

Dois anos depois de contar esta vivência de dois amigos, o São Marcos “mandou” dizer que à época comandava um navio-fábrica e não um veleiro. Quanto à regata North Sidney − Liverpool (1984), a "Sagres" ficou classificada em 3º lugar.

Sabendo o que são as histórias de marinheiros, não estranhei as discrepâncias.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Lenda americana


O meu amigo José Ávila publicou no Facebook esta interessante fotografia do General Spínola no aeroporto de San Francisco, memória de uma viagem à Califórnia no final de 1975 de que ainda ouvi falar quando lá cheguei quase dois anos depois.

Reza a lenda, que como todas as lendas alia a fantasia à realidade, que Spínola escolheu o período do Thanksgiving (Ação de Graças), cujo dia é celebrado na quinta-feira da quarta semana de Novembro e é o feriado nacional americano dedicado às grandes reuniões e refeições familiares, onde o peru está sempre presente, para tentar encontrar nas terras americanas um recheado de dólares para financiar a luta contra os militares marxistas e o Partido Comunista Português que o tinham agrilhoado e amordaçado depois do 11 de Março. E estando na posse da informação que o "Comité da Internacional Comunista" tinha realizado uma reunião secreta, ao mais alto nível, algures em Trás-os-Montes, para programar a tomada do poder nos dois países da Península Ibérica num futuro muito próximo, o General queria aproveitar a ocasião para denunciar a conspiração soviética aos principais órgãos de comunicação social americanos e mundiais.

Fazer peditórios nas comunidades emigradas é um hábito nacional antigo. Há cem anos o meu tio padre Jardim construiu o santuário da Nossa Senhora da Paz na Madeira com dinheiro que recolheu junto das comunidades madeirenses das Américas e África. Spínola terá ido aos EUA pedir para o Santuário da Nossa Senhora da Reacção aos Gonçalvistas.

A comitiva de Spínola contava com o apoio de individualidades portuguesas importantes como por exemplo o embaixador na ONU Veiga Simão e era assessorada por dois militares, o Capitão-tenente fuzileiro naval Rebordão de Brito e o Capitão do Exército Marques Ramos, o segundo a contar da direita na fotografia.

O Capitão Marques Ramos fazia parte da coluna que saiu das Caldas da Rainha no 16 de Março de 1974, estava preso na Trafaria no 25 de Abril, foi a Argel, com Almeida Santos, Jorge Campinos e o Major Moreira de Azevedo, assinar o protocolo de acordo entre o governo português e o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe para a independência do território, esteve na ONU a explicar a Kurt Waldheim e à comissão de descolonização os planos de Portugal, conspirou e participou no 11 de Março, juntou-se a José Miguel Júdice, Diogo Pacheco de Amorim e Luis Sá Cunha em Madrid e adulterou o passaporte diplomático, mudando o algarismo 4 para um 8, para poder viajar para os EUA.
No dia 24 de Novembro de 1975, a comitiva do General Spínola foi almoçar a casa do Dr. Adriano Seabra Veiga, médico e Cônsul Honorário de Portugal no estado de Connecticut. Banqueteou-se com pratos refinados, de tradição portuguesa, acompanhados dos melhores vinhos e licores, servidos em louça da Vista Alegre e em copos de cristal, sobre uma toalha bordada da Ilha da Madeira, tudo servido por empregados de mesa em uniforme, sob o comando de um mordomo trajado a rigor.

O acolhimento pelas individualidades portuguesas não teve, contudo, correspondência na receptividade pela comunicação social dos EUA, em especial pelos programas mais influentes como os 60 Minutes, Meet the Press, Today Show ou Issues and Answers. Falharam todas as tentativas para convencer os responsáveis da relevância da causa do General e da credibilidade da notícia sobre a reunião de Trás-os-Montes. Dificilmente se encontram na comunicação social americana da época notícias sobre a necessidade imperiosa e urgente de Spínola libertar Portugal.

Na Califórnia, para além do apelo ao fervor patriótico das comunidades portuguesas ali estabelecidas, o objectivo de Spínola era convencer os proprietários portugueses e luso-descendentes das vacarias, leitarias e grandes empresas agrícolas a apoiar a causa anticomunista com uns milhões de dólares, servindo-se para isso da influência na área de San Jose e San Francisco do Dr. Décio de Oliveira, o segundo a contar da esquerda na fotografia.

Mas reza também a lenda, que naturalmente não pude confirmar, que nos chapéus passados pela audiência depois dos discursos recheados de patriotismo do General Spínola, não caiu sequer o suficiente para pagar as despesas com a viagem e com a estadia da comitiva na Califórnia.

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Post scriptum:

Chamei a este texto lenda, ou seja, "narrativa de essência fantástica ou incrível na qual se verifica uma adulteração de factos históricos pela imaginação geral ou popular", porque é o que na realidade pode ser. Outros saberão, melhor do que eu, o que é fantasia e o que é realidade na história que conto.

É que em Novembro de 1975 estava literalmente muito a leste dos locais onde ocorreram os eventos narrados. Estava a sofrer o bullying do Mar do Açores e de gente que também ia aos EUA e, naturalmente, à Califórnia, fazer peditórios, eventualmente com mais sucesso que o Spínola.

Por acaso, uns meses antes, andei embarcado num navio da US Navy no Mediterrâneo e atracámos em portos da Espanha, onde esta gente também conspirava. Felizmente não me encontrei com eles.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Sobre a Educação para a Cidadania


Ao contrário do que é muitas vezes propalado na comunicação social e nas redes sociais, a Educação para a Cidadania, assim como a componente curricular Cidadania e Desenvolvimento que a concretiza, não tem um programa. Simplificando, diria que que para os diferentes domínios, uns obrigatórios e outros facultativos, existem sim referenciais, lamentavelmente ainda não para todos, que foram elaborados com a colaboração de indivíduos e organizações com conhecimento e experiência de cada domínio e submetidos a consulta pública.

Cada escola, no exercício da sua autonomia e tendo em conta as formas de operacionalização definidas na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, escolhe os domínios e a abordagem - processo de ensino, aprendizagem e avaliação - que considera mais adequados face aos objectivos e metas definidos pela escola no seu contexto socioeconómico e geográfico. Assim, as acusações de doutrinação e unanimismo não fazem qualquer sentido e só a ignorância ou a má-fé as podem explicar.


O projecto da Educação para a Cidadania, que de facto do ponto de vista teórico é muito interessante e merece o apoio que quem defende uma educação de qualidade para todos, sofre no entanto de disfunções que contribuem para o seu descrédito. 

Desde logo por se tratar um edifício construído pela macroestrutura ministerial, de cima para baixo, com excelentes textos programáticos, mas assente em fundações muito frágeis. Nas escolas o esforço da Educação para a Cidadania é em regra e quase exclusivamente atribuído aos DT com o apoio de um número limitado de professores de outras disciplinas que, apesar de tudo, têm realizado verdadeiros milagres dadas as condições propiciadas pelo ministério da Educação.

Depois, o pequeno número de referenciais disponíveis e a escassez de materiais de apoio. Tendo participado em 2018 com outros representantes da Associação 25 de Abril nas reuniões e trabalhos iniciais de preparação do referencial para o domínio “Instituições e Participação Democrática”, constato que passados dois anos ainda não foi divulgada a versão final do referencial para um domínio tão importante. 

A proposta da A25A, elaborada pro bono por cidadãos com experiência profissional e pedagógica relevante para o objectivo estabelecido e com base na abordagem e nas recomendações do Conselho da Europa, define objectivos de trabalho para que os futuros cidadãos compreendam as regras do Estado de Direito e os mecanismos de representação democrática e se preparem para a participação informada na resolução dos problemas do seu país. 

É certo que também surgiram propostas que faziam lembrar a velha OPAN ensinada no Estado Novo, devidamente revista e ampliada para contemplar a nova constituição e a União Europeia, mas a realidade é que, independentemente do que vier a ser consagrado pela DGE, continua a não existir um referencial para o domínio das “Instituições e Participação Democrática”.

Sei o que se passa em diversas escolas dos concelhos de Oeiras e Cascais e conheço as potencialidades e as fragilidades do sistema. Dadas as carências próprias, a falta de apoio do ministério e a dificuldade de estabelecer parcerias com entidades externas, admito que excepcionalmente algumas escolas possam ter violado os princípios definidos para a unidade curricular mas esse não é certamente o padrão. O padrão será, quando muito, Educação para a Cidadania a menos, num momento em que ela é cada vez mais necessária.

Devo no entanto dizer que sempre que nos últimos cinco anos participei em iniciativas de escolas, e foram muitas, foi muito gratificante para mim e, a julgar pela pelas avaliações que recebi, também o foi para os alunos.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Confissão


Eu pecador, confesso que o envelhecimento reduziu a minha crença na mudança radical da sociedade e as minhas participações cívicas acabaram por ser cada vez mais centradas na defesa da democracia e da liberdade e nos contributos para a educação para a cidadania de crianças e jovens.
 
Eu pecador, confesso que procurei com o projecto Abril Hoje, ajudar as escolas interessadas a consolidarem o que julgava serem os pilares essenciais da educação para a cidadania: a denúncia e combate da violência, a prevenção da corrupção e a aprendizagem e valorização da participação democrática.

Eu pecador, confesso que ajudei centenas de alunos do ensino básico e secundário a reflectirem e encontrarem soluções para o bullying e a violência nas suas escolas, já que eram os problemas que mais os preocupavam.

Eu pecador, confesso que participei em sessões em que os alunos reflectiram sobre a aplicação prática da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Eu pecador, confesso que preparei um texto sobre violência no namoro que foi discutido nas escolas.

Eu pecador, confesso que participei na elaboração da proposta da Associação 25 de Abril à Direção Geral de Educação de um referencial para o domínio “Instituições e Participação Democrática” a ser utilizado desde o 1º ciclo do ensino básico até ao secundário.

Eu pecador, confesso que a partir das recomendações do Conselho da Europa, definimos os objectivos para os diferentes níveis de escolaridade tendo como objectivo preparar os futuros cidadãos para viver em sociedade, resolver conflitos, assumir responsabilidades, compreender e aceitar as regras do Estado de Direito e os mecanismos de representação democrática e participar na governação do seu país.

Eu pecador, confesso que a prova do nosso delito pode ser descarregada daqui.

Eu pecador, confesso que pequei muitas vezes por pensamentos e palavras, actos e omissões, por minha culpa, minha tão grande culpa.

E peço a Aníbal Cavaco Silva, a Pedro Passos Coelho, a D. Manuel Clemente, a Sérgio Sousa Pinto e a todos os Irmãos que rogueis por mim ao vosso Senhor.

Amém!