sábado, 6 de maio de 2017

Ainda Abril Hoje




Com as conferências de 26 de Abril sobre o Bullying e de 3 de Maio sobre o Desemprego, o projecto “ABRIL HOJE” na Escola Básica e Secundária de Carcavelos entrou na recta final. Agora é o tempo das conclusões e dos agradecimentos. Estes, em regra, são escritos em último lugar mas precedem tudo o resto. Por isso começo por eles. Estou grato à Andreia, ao André, à Beatriz, às duas Carolinas, ao Diogo, ao Gonçalo, à Inês, à Íris, à Joana, ao Lucas, à Mafalda, à Mariana, ao Miguel, à Patrícia, ao Ricardo, à Rita, ao Rúben, à Sarah e aos muitos outros alunos do projecto “ABRIL HOJE” cujo nome não fixei mas que foram a sua razão e a sua essência. Grato pelo que me ensinaram e por confirmarem que é através do exercício da cidadania em liberdade que se constrói uma sociedade mais justa e mais humana.

Quarenta e três anos depois no “dia inicial inteiro e limpo” de Sophia, voltou a acontecer Abril. Por mérito dos alunos e dos professores da Escola de Carcavelos mas também por mérito do próprio 25 de Abril de 1974, um acontecimento histórico que se mantém actual nos seus objectivos e nos seus valores.

O 25 de Abril foi uma acção generosa de um grupo de jovens militares para resolver problemas muito complexos. Portugal era, em 1974, um país atrasado e fechado, com mais de 30% de analfabetismo, governado por um regime político autoritário, autocrata e corporativista, velho de 41 anos, sustentado por um aparelho repressivo que coarctava todas as liberdades individuais e políticas, que oferecia aos portugueses más condições de vida, em particular nas zonas rurais; com um sector agrícola estagnado e um sector industrial condicionado e pouco desenvolvido, que levou à emigração de quase dois milhões de portuguesas para a Europa Ocidental e a América ou, em alternativa, à migração para a periferia das grandes cidades com o aumento exponencial dos bairros de lata e das habitações clandestinas, sem saneamento básico, associados a fenómenos extremos de pobreza, de exclusão social, de criminalidade e de prostituição; que mantinha desde 1961 uma média anual de 105 mil homens envolvidos em três frentes de guerra em África, 54 mil em Angola, 20 mil na Guiné e 31 mil em Moçambique, atingindo o total de 148 090 homens em 1973; numa guerra cujo fim era totalmente imprevisível e onde combateram mais de 800 mil homens, dos quais cerca de 70 por cento eram recrutados na Metrópole através do serviço militar obrigatório que durava 4 anos, que causou a morte de 8 831 portugueses, a deficiência física de perto de 14 mil e traumas psíquicos em cerca de 140 mil. Foi esta situação complexa e grave que os jovens militares do Movimento das Forças Armadas decidiram resolver.

Mas o 25 de Abril foi também um exercício de pensamento crítico. Na instituição militar, um dos sustentáculos do regime, directamente empenhada numa guerra em que os sinais de saturação eram evidentes, as medidas políticas que o Governo tomava com o objectivo de assegurar a sobrevivência do regime e a eternização da guerra tinham grande impacto. Dependendo do grau de consciência política de cada um, um número significativo de jovens militares dos três ramos das forças armadas começou a discutir de forma mais ou menos aberta a questão da guerra e a própria natureza do regime. Em Junho de 1973, o 1º Congresso dos Combatentes do Ultramar, uma iniciativa da direita nacionalista e dos sectores radicais do poder político e do governo teve como finalidade fazer aprovar o conceito de que a solução da Guerra do Ultramar era militar e que era necessário reforçar o esforço de guerra. Em resposta, os militares dos quadros permanentes do Exército decidiram recolher assinaturas para, por telegrama, contestarem os objectivos do Congresso. Com total sucesso, pois ao enviarem e difundirem um telegrama subscrito por mais de 400 oficiais dos quadros permanentes onde afirmavam não reconhecer qualquer decisão que fosse aprovada no Congresso, esvaziaram completamente o mesmo. Além disso, esta manifestação de natureza militar teve importância fundamental na acção que levaria ao 25 de Abril. Com efeito, os militares contestatários ganharam consciência da sua força e da fraqueza do Poder ao obterem, em pouco tempo, mais de 400 adesões, numa manifestação pública de insubordinação sem sofrer quaisquer represálias. É que à luz dos regulamentos militares em vigor, a recolha das assinaturas constituiu de facto um acto colectivo de indisciplina dos oficiais do Quadro Permanente (QP).

Por razões internas e externas, estavam criadas as condições propícias à eclosão de uma revolta, faltava apenas um detonador. Ele surgiu quando em 13 de Julho de 1973, a seguir ao Congresso dos Combatentes, o Governo publicou o célebre Decreto-Lei 353/73, que alterou a contagem da antiguidade dos oficiais milicianos que ingressavam no QP do Exército e reduziu para apenas um ano, seguido de um estágio de seis meses, a duração do curso especial da Academia Militar. Estas medidas, que tinham como objectivo colmatar a falta de capitães do QP para comandar as companhias na guerra, eram inaceitáveis para os oficiais oriundos de cadetes da Academia Militar. Logo em 17 de Julho e aproveitando a visita do director do Serviço de Pessoal do Ministério do Exército ao Instituto de Altos Estudos Militares, um grupo de militares que o frequentavam apresentou‑lhe a primeira de várias exposições que contestavam o decreto. Foi essa a génese do Movimento dos Capitães, criado com o objectivo de defender os interesses da classe de capitães do QP do Exército. A primeira reunião do núcleo criador ocorreu em 21 de Agosto de 1973 e sua designação foi inspirada por uma inquietação corporativa.

No entanto, o Movimento dos Capitães, que representava efectivamente uma minoria dos oficiais do QP do Exército, não mais de 700 em 4165, sofreu um rápido processo evolutivo. A sua base de apoio ampliou-se à medida que se realizavam as reuniões plenárias, a questão corporativa perdeu terreno perante outros objectivos, dos quais a dignificação das forças armadas e a solução política da guerra se apresentavam como os mais significativos, isto apesar do Governo, alarmado com as repercussões das medidas tomadas inicialmente, ter tentado atenuar alguns aspectos. Convencido da natureza exclusivamente corporativa do descontentamento dos jovens oficiais, o Governo procurou desmobilizá-los com a anulação do decreto e um substancial aumento dos vencimentos, em particular dos capitães cujo vencimento foi aumentado em 40%, já próximo do fim de 1973. Mas a crescente consciencialização política do Movimento, assim como a convicção de que a guerra só seria resolvida se o Governo fosse derrubado, tinham tornado o processo irreversível. Além disso, a adesão de elementos de outros ramos das Forças Armadas, da Marinha e da Força Aérea, tornou o Movimento muito mais abrangente, quer em objectivos quer em participantes. Foi neste espírito e com essa consciência que elementos do Movimento estiveram presentes em 1973 no III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro. Mais tarde, as teses de Aveiro haveriam de inspirar o Programa do MFA como ideário da liberdade, da paz e da democracia. É por isso que embora o Movimento dos Capitães tenha estado na génese do Movimento das Forças Armadas (MFA), não corresponde exactamente à mesma realidade política e sociológica. Houve oficiais que pertenceram ao primeiro e não estiveram no segundo, assim como uma parte dos oficiais que integrou o MFA não pertenceu ao Movimento dos Capitães.

Mas nas condições do regime no poder em Portugal, a conspiração e preparação da acção militar de 25 de Abril tinham de ser também um exercício de criatividade. Sobram evidências dessa criatividade em todo o processo de maturação do MFA, na preparação e condução das reuniões preparatórias e de coordenação, no estrito respeito dos princípios da representatividade e da democraticidade, na forma como os aderentes eram esclarecidos e mantidos informados das principais decisões, na elaboração do Plano de Operações e do seu anexo de Transmissões, tudo num contexto em que as forças adversárias eram incomparavelmente mais poderosas que os revoltosos. Num processo que durou cerca de sete meses, em que foi necessário contrariar e iludir as iniciativas e as acções do poder e do seu aparelho militar e policial, só um formidável exercício de criatividade pode explicar a surpresa com que o governo se apercebeu, tardiamente, da movimentação de milhares de militares revoltosos, em todo o país, na madrugada de 25 de Abril de 1974.

O curto período de maturação do MFA e as condições da conspiração não possibilitaram que todos interiorizassem uma visão política e ideológica consistente. Mas permitiu contudo elaborar um programa político para o período de transição para a democracia, o Programa do MFA, cujo espírito é claro quanto à transição do poder para as forças políticas civis e à não continuação do MFA e das Forças Armadas no exercício do poder para além do período de transição, assim como quanto ao direito dos povos das colónias à autodeterminação e independência e ainda ao desenvolvimento da sociedade portuguesa num sentido progressista em benefício das classes mais desfavorecidas. Esta foi a maior singularidade histórica do 25 de Abril e a prova final da criatividade dos militares de Abril. Tomaram o poder para instituir a democracia e a liberdade, dando início a um processo global de democratização na Europa, na América do Sul e noutros pontos do mundo.

Mas o sucesso da preparação e da execução do golpe militar assim como das operações ao longo do dia 25 de Abril foi também um exercício de gestão de equipas digno de menção. Foi a competência dos jovens oficiais do MFA de gestão de equipas, adquiridas nos teatros da guerra em África, que permitiu que um núcleo reduzido de poucas centenas mobilizasse e empenhasse na execução do Plano de Operações, milhares de outros oficiais, de sargentos e de soldados, tudo em poucas horas. As qualidades de liderança dos dirigentes do Movimento e a confiança dos subordinados foram decerto decisivos em todo o processo.

Mas se a gestão de equipas foi decisiva para o sucesso das operações militares, a capacidade de coordenação com outros passou a ter importância primordial a partir da manhã do dia 25 de Abril, primeiro no confronto e negociação com as forças adversas e com as tendências hegemónicas que cedo se manifestaram no interior do novo poder político-militar, e depois na relação com a sociedade civil e com as forças políticas e partidárias. Logo que o Movimento se tornou vitorioso, os militares do MFA tiveram de trabalhar com outros em condições totalmente novas, procurando fazer cumprir o seu programa num ambiente complexo e sujeito a dinâmicas sociais e políticas imprevisíveis. Todo o processo até à entrada em vigor da Constituição em 25 de Abril de 1976, extremamente complexo e algumas vezes à beira de confrontos desastrosos para o povo português, mostrou que a maioria dos militares que de uma forma ou de outra estiveram envolvidos no 25 de Abril foram capazes de assegurar que o fundamental daquilo que levou o Movimento a avançar para o derrube do Estado Novo foi, apesar de tudo, preservado.

Em apenas dois anos, Portugal sofreu a mais profunda mudança da sua história, não só do sistema político mas também das concepções, estruturas e relações sociais e económicas. E no centro dessa mudança estiveram sempre os militares de Abril e as suas competências de resolução de problemas complexos, de pensamento crítico, de criatividade, de gestão de equipas e de coordenação com outros. As mesmas competências que hoje o Fórum Económico Mundial considera como as mais determinantes para o sucesso dos jovens no mercado de trabalho em 2020!

É por isso que falar de ABRIL HOJE é uma lição para os jovens e um desafio para que, tal como os jovens militares de Abril, sejam capazes de fazer algo de novo de acordo com a sua consciência, mesmo correndo riscos. E quando os jovens estudam e debatem os problemas que os afectam como o fizeram os alunos da Escola de Carcavelos, num exercício de cidadania e construção de uma sociedade mais justa, tenho confiança no futuro. Tenho confiança que serão verdadeiros empreendedores, não no sentido individualista do conceito, mas de acordo com os valores da liberdade, da solidariedade, da inclusão dos mais desfavorecidos, do progresso social. Tenho confiança que serão capazes de resistir aos instrumentos de submissão, por mais sedutores que se apresentem, e, inspirados pelas palavras de Vergílio Ferreira, digam NÃO ao que os limita e degrada e construam o SIM da sua Dignidade.



P. S. — Uma palavra para os professores da Escola Básica e Secundária de Carcavelos que se empenharam no projecto “ABRIL HOJE.” Estou-lhes muito grato. Não vou citar os seus nomes mas ficaram gravados na minha memória. Sabem como sou orgulhoso e preocupado com os meus oito netos. O vosso exemplo e o de tantos outros professores que tenho conhecido nas conversas sobre o 25 de Abril em escolas dos concelhos de Oeiras, Cascais e Amadora, fazem-me acreditar que a escola pública é, apesar de todas as dificuldades, o lugar certo para os meus netos prepararem o futuro. Bem hajam!