terça-feira, 12 de julho de 2016

Eles não sabem nem sonham



Révolution des oeillets ao Portugal - 1er mai 1974 - Gérald Bloncourt
 
Não partilho a euforia futeboleira mas se me alhear do vergonhoso aproveitamento mediático, o que não é fácil, reconheço que é o grito de afirmação e de revolta de muitos de nós contra a arrogância, a prepotência e a xenofobia dos que se julgam donos do mundo. Gostaria de o sentir noutras circunstâncias e de forma continuada mas admito que seja somente umas das minhas utopias.
 
Sei de fonte segura que os que se julgam donos do mundo não sabem nem sonham, como disse o poeta, que este pequeno Portugal no extremo sudoeste da Europa tem 900 anos de história. Não sabem nem sonham que o seu povo teve de jogar muitas vezes feio, mesmo muito feio; teve de matar para não o matassem; teve de se aliar com poderosos pouco fiáveis para não ser destruído por outros ainda menos fiáveis; teve de sofrer, trabalhar e lutar em locais distantes e hostis para vencer a pobreza; teve de percorrer o mundo e confiar noutros povos, desconfiando.
 
Eles não sabem nem sonham que na guerra os portugueses tiveram de combater muitas vezes em inferioridade numérica e com armas muito mais fracas, mas mesmo assim atingiram o objectivo. Não sabem nem sonham que um jovem artilheiro de dezoito anos, uma criança transmontana feita homem como marçano nas ruas de Lisboa, não hesitou em abrir a culatra sempre que falhavam as escorvas para que não houvesse interrupção no tiro da peça montada na proa do arrastão de pesca transformado em navio de guerra. E fê-lo, não para vencer um dos mais poderosos cruzadores submarinos alemães, o que era impossível, mas para permitir que com as duas horas de combate, as duas centenas e meia de compatriotas embarcados no San Miguel, na sua maioria açorianos, chegassem a salvo à ilha verde no meio do Atlântico. E eles não sabem nem sonham que este foi apenas um dos muitos episódios protagonizados por milhares e milhares de portugueses ao longo da História na Europa, na Ásia, em África, na América, em todo o mundo.
 
Eles não sabem nem sonham que foi a aceitar e absorver as diferenças dos outros que os portugueses se tornaram únicos. Eles não sabem nem sonham que é isso que nos permite dizer sem medo que somos portugueses e ser recebidos com carinho por povos de todo o mundo. Eles não sabem nem sonham que há uma jovem mãe em Malaca que se diz portuguesa e que desconfiou que eu o fosse porque era muito alto e muito branco para o ser. Eles não sabem nem sonham que essa mãe está certamente a festejar a vitória da selecção de Portugal e a agitar uma bandeira portuguesa. Como estarão milhares de pessoas em todo o mundo, mesmo sem saberem uma palavra de português e nunca terem estado em Portugal.
 
Eu de facto não partilho a euforia futeboleira mas sinto muito orgulho de ser Português, mesmo que os que se julgam donos do mundo digam que sou pequeno, feio, tosco ou mestiço!


A foto foi tirada por Gérald Bloncourt em Lisboa no 1º de Maio de 1974.