domingo, 14 de outubro de 2018

O combate



José Francisco Martins
(foto de 1921)

– Vi o projéctil cair e matar o Comandante, perto de mim!

Era assim, com frases curtas e poucas explicações, que o meu Avô se referia ao combate do “Augusto de Castilho” com o cruzador submersível alemão U-139, na madrugada do dia 14 de Outubro de 1918, a cerca de 170 milhas a SE da ilha de Santa Maria. O que para mim era fascinante, para o meu Avô era desagradável. Não gostava de lembrar o combate, e quando o fazia, pressentia nas suas palavras um misto de mágoa e revolta. Com o tempo percebi que aquele momento, o momento da morte do Comandante, o tinha marcado profundamente. Não só pela morte do Comandante Carvalho Araújo, mas também pelas suas circunstâncias e consequências.

O combate de mais de duas horas com o U-139 tinha terminado. O paquete “San Miguel” estava fora do alcance do submarino alemão, a peça de vante irremediavelmente avariada e as munições praticamente esgotadas. Tinha chegado o momento do Comandante se preocupar com a vida dos seus homens. Deu ordem de cessar-fogo e mandou arriar as embarcações para que a guarnição abandonasse o navio. O U-139 também interrompeu o fogo de artilharia contra o “Augusto de Castilho” e aproximava-se para a tradicional abordagem do arrastão da pesca do bacalhau adaptado a navio de guerra.

De repente, da peça de 47 mm de ré do “Augusto de Castilho” foi feito fogo sobre o submersível alemão. Em resposta, o U-139, a uma distância mais reduzida do que a que mantivera durante todo o combate, disparou uma nova salva de projécteis de 150 mm contra o “Augusto de Castilho”. Um deles atingiu mortalmente o Comandante Carvalho Araújo, que tombou a poucos metros do 2º artilheiro Martins.

Três anos antes, ninguém poderia prever que os destinos destes dois homens se cruzariam de forma tão dramática no meio do Atlântico. É certo que ambos tinham raízes em Trás-os-Montes, um em Vila Real e o outro em Chaves, mas essa parecia ser a única afinidade entre eles.

Quando o futuro 2º artilheiro José Francisco Martins nasceu na casa da avó materna em Chaves, já o cadete José Botelho de Carvalho Araújo tinha frequentado os preparatórios na Academia Politécnica do Porto e ingressado na Escola Naval. E enquanto o jovem José Francisco se fazia homem como marçano nas ruas de Lisboa, trabalhando na mercearia e na casa do patrão, subindo escadas de cabaz às costas para entregar produtos aos fregueses e estudando para ser empregado de comércio, o Tenente Carvalho Araújo, republicano convicto, maçon e livre-pensador respeitador dos direitos dos cidadãos, cumpriu uma carreira brilhante como oficial da Armada, esteve na preparação do 5 de Outubro de 1910, foi eleito deputado por Vila Real à Assembleia Constituinte da República, foi deputado do Congresso da República Portuguesa e fez parte da coluna expedicionária ao sul de Angola.

Em 1916 o José Francisco Martins decidiu que queria ir mais longe e assentou praça na Marinha de Guerra como voluntário. Atirador de 1ª classe, recebeu formação militar naval e instrução de artilharia até se apresentar a bordo do “Augusto de Castilho” no último dia de 1917, como 2º artilheiro. Enquanto isto, o Tenente Carvalho Araújo comandou um caça‑minas na defesa do porto de Lisboa e foi Governador do Distrito de Inhambane, em Moçambique, até ser nomeado para o comando do “Augusto de Castilho” em Agosto de 1918.

Presumo que o 2º Artilheiro Martins terá visto o 1º Tenente Carvalho Araújo entrar a bordo, terá conversado com outros elementos da guarnição sobre o novo Comandante, terá notado a fragilidade física resultante do seu estado de saúde. E estou certo que a partir daquele momento, o Tenente Carvalho Araújo passou a ser o seu Comandante, aquele a quem devia total obediência na defesa da Pátria, mesmo com o sacrifício da vida. Já por duas vezes, como artilheiro do “Augusto de Castilho”, tinha lutado contra submarinos alemães e era provável que tivesse de voltar a lutar dadas as missões de escolta normalmente atribuídas ao navio.

Embora só tenha servido dois meses sob o seu comando, o 2º artilheiro Martins foi consolidando admiração e respeito pelo Comandante Carvalho Araújo. Ouvi-o mais tarde afirmar por diversas vezes que o comportamento do Comandante foi sempre exemplar, em especial durante o combate com o U‑139.

Sobre o combate e a bravura do Comandante e da guarnição do “Augusto de Castilho” há também outros testemunhos claros e coerentes e sobre eles não persiste qualquer dúvida. No caso particular dos seis artilheiros do navio, houve quem afirmasse que se distinguiram, “entre toda a guarnição, pela energia, sangue frio e disciplina que mostraram durante todo o combate, não temendo abrir as culatras das peças ao falharem as escorvas, a fim de não haver interrupção no tiro”.

De facto, há precisamente 100 anos, um grupo de quase meia centena de portugueses cumpriu o seu dever em condições extremamente adversas, com o sacrifício da vida de alguns: do próprio Comandante, de outros cinco militares e de um civil. Antes de qualquer outra consideração, é o esforço e o exemplo da guarnição do “Augusto de Castilho” e a forma como cumpriu uma missão quase impossível nas condições extraordinariamente precárias do navio, que é importante realçar.

Mas a morte do Comandante Carvalho Araújo e as circunstâncias em que ocorreu, acabaram por influenciar a forma como a maioria dos participantes e sobreviventes do combate, e até o próprio Comandante Carvalho Araújo, foram depois tratados. Na narrativa que acabou por ser consagrada oficialmente e que sustentou a atribuição de condecorações e as promoções por distinção de alguns, parece que o heroísmo se concentrou nos doze elementos da guarnição que aportaram numa embarcação à Ponta de Arnel, no nordeste de São Miguel. Os outros, os que chegaram a Santa Maria no salva‑vidas do navio, foram transformados em participantes menos corajosos e pouco disciplinados, em figurantes menores de uma “narrativa trágico-marítima” com muita pompa mas circunstância pouco clara. 

Salva-vidas com os sobreviventes que arribaram à Vila do Porto, em Santa Maria

Foi assim que percebi o porquê do meu Avô, que se reformou em 1956 no posto de 1º Tenente, não gostar de falar do combate do “Augusto de Castilho”. Entendia que a história oficial do combate não era rigorosa e que ele e os outros vinte e nove sobreviventes que aportaram a Santa Maria no salva-vidas não foram tratados pela Marinha e pelo Estado Português com justiça.

Mas o carácter e a vida dura blindaram-no contra todas as injustiças e traições, viessem de onde viessem. Soube ultrapassá‑las e concentrar o seu melhor no que para ele era essencial: a dignidade e a honradez pessoal, o cumprimento do dever profissional e o bem-estar da família e dos muitos que procurou ajudar. Teria no entanto gostado de saber que em Janeiro de 1974, dois anos despois da sua morte, o Estado Português reconheceu que o 1º Tenente auxiliar da Armada José Francisco Martins se “notabilizou no combate naval travado em 14 de Outubro de 1918, na defesa do paquete “San Miguel”, e por isso concedeu à sua viúva “a pensão por serviços excepcionalmente prestados ao País.”

O que os homens comandados pelo Comandante Carvalho Araújo conseguiram na madrugada de 14 de Outubro de 1918 foi bem real e prevalece sobre todas as ficções, as boas e as más. Sem o esforço e o sacrifício daquele punhado de homens, a Margarida da Terra Clark Dulmo, ilustre tataraneta do capitão Fernão Dulmo, fidalgo da casa do Infante D. Henrique, e uma bela criação de Nemésio, não teria viajado no “San Miguel”, conhecido o estudante de Coimbra e atirado ao mar o anel da serpente cega.

O combate com o U-139 não foi o combate de um homem nem de doze homens. Foi o combate com honra, para defender um paquete com mais de duas centenas e meia de pessoas a bordo, de todos os homens que estavam no “Augusto de Castilho” na madrugada do dia 14 de Outubro de 1918. Foi o combate levado a cabo por 45 militares e 4 civis, cada um com as suas qualidades e os seus defeitos, as suas forças e as suas fraquezas, as suas dúvidas e as suas certezas.

Cem anos depois, os descendentes de um deles, o 2º Artilheiro nº 5242 José Francisco Martins, sentem um imenso orgulho pelo seu feito e pelo seu extraordinário legado. E farão tudo para que o Pai, Avô, Bisavô e Trisavô, esteja onde estiver, se sinta orgulhoso deles.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Uma prova de gratidão

 


Recorte da notícia "O paquete "Loanda" - Uma prova de gratidão dos seus passageiros" no jornal "A Capital" de 2 de Abril de 1918:

"Como na nossa seção Última Hora hontem noticiámos, A Capital recebeu o encargo de fazer distribuir pela marinhagem e artilheiros do caça-minas Augusto de Castilho a quantia de 128$70, somma subscripta pelos passageiros do paquete Loanda, como prova da sua imensa gratidão pelo brioso procedimento por ocasião da ameaça do ataque d'um submarino alemão, a meio caminho da Madeira para Lisboa.
Vamos tratar de saber no comando central de defezas marítimas o modo mais prático de entregarmos esse dinheiro, desempenhando-nos assim do honroso encargo que nos foi cometido.
Os passageiros que contribuíram foram os seguintes:
...
(lista dos passageiros da 1º, 2ª e 3ª classes e respectivas contribuições)
...
O que perfaz a totalidade de 128$70.
Como hontem dissemos e hoje repetimos, o Loanda viu surgir de súbito um submarino alemão. A marinhagem e os artilheiros do Augusto de Castilho, que comboiava aquelle paquete, imediatamente romperam fogo, o que obrigou o alemão a fugir.
Passava-se isto no dia 23 de março findo e é desejo dos passageiros do Loanda que a quantia que nos foi entregue seja dividida pela marinhagem e artilheiros que n'esse dia estavam a bordo do caça-minas."

Não soube deste episódio quando tinha oportunidade de confirmar mas espero que o 2º artilheiro José Francisco Martins, meu avô, tenha recebido o seu quinhão.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

O centralismo da(á) asneira

 




Ouvi o professor Carvalho Rodrigues dizer a propósito do opressivo centralismo lisboeta: “Tudo o que é produzido aqui (na Guarda e no interior) vale zero, tudo o que é produzido lá (em Lisboa e no litoral), incluindo as asneiras, vale imenso!”

Pois é caro professor, essa é uma queixa bem antiga. Ouvia-a do meu avô quando falava da sua terra transmontana ou da agricultura que fazia no sopé da serra de Montejunto, a dois passos de Lisboa; ouvia-a do meu pai em Moçambique quando barafustava contra as decisões dos que ele chamava de “calcinhas“ de Lisboa; ouvi-a de alentejanos, de madeirenses e de açorianos. Ouvia-a de todos os que se sentiam vítimas dos comportamentos de influência e manipulação política, corrupção, compadrio, favor, cunha, há muito associados ao centralismo e ao poder instalado na capital.

O egocentrismo do poder lisboeta é tão obsessivo que chegou ao ponto de desenvolver a doutrina de que a melhor forma de defender Portugal seria defender Lisboa com todos os recursos disponíveis. E se bem pensou, melhor o fez. No final do século XIX e início do século XX, quase todo o dispositivo militar português — tanto do Exército como da Marinha —, passou a estar concentrado na defesa de Lisboa.

O poder central mandou construir uma série de novas e modernas fortificações, adaptar algumas já existentes, tudo para criar o Campo Entrincheirado de Lisboa. As fortificações receberam modernas peças de artilharia e foram interligadas por redes telefónicas e telegráficas, bastante avançadas para a época. A partir de 1899, o Campo Entrincheirado passou a constituir um comando militar, organizado permanentemente em pé de guerra, cujo governador era um general, na dependência directa do ministro da Guerra.

Na frente terrestre, Lisboa era protegida por uma linha defensiva de Sacavém a Caxias, constituída pelos Fortes do Monte Cintra, em Sacavém, de D. Carlos I, na Ameixoeira, do Marquês de Sá da Bandeira, em Monsanto e de D. Luís I, em Caxias. O Forte de Monsanto era o reduto central de todo o sistema e nele foi instalado o comando da linha defensiva.

Na frente fluvial, o Tejo era protegido pelos Fortes do Bom Sucesso e do Alto do Duque. A frente marítima, a barra do Tejo, a margem sul e as aproximações a Lisboa eram protegidas pelos Fortes de São Julião da Barra, em Oeiras, e de Almada. A Marinha empenhava neste dispositivo o couraçado Vasco da Gama que funcionava como uma bateria flutuante contra ataques marítimos, uma esquadrilha de navios e um serviço de minas.

O sistema defensivo era complementado com diversos outros fortes, redutos, postos, baterias e fortificações secundárias. Para defender a barra do Tejo, para a além da Bateria da Laje, foram construídas na década de 1900 duas baterias mais pequenas e idênticas: a das Fontainhas, entre Oeiras e Paço de Arcos, e a do Areeiro, na ponta oeste da praia de Santo Amaro de Oeiras, junto ao Forte de Santo Amaro. Ambas tinham como função “baterem, com o seu fogo, as embarcações que intentem rocegar a faixa de torpedos (minas marítimas) estabelecida entre as duas margens do Tejo."

Terminada a Primeira Grande Guerra e pouco mais de dez anos depois de concluído o Campo Entrincheirado de Lisboa, tornou-se evidente que o conceito em que assentava não fazia sentido e a maioria das fortificações deixaram de ser utilizadas como tal e foram transformadas em depósitos, paióis ou prisões.

E o fim das nossas duas baterias também ficou traçado. A Bateria das Fontainhas, em cuja zona de servidão a Câmara Municipal de Oeiras foi autorizada a captar água das nascentes, acabou aquartelamento do Terço de Oeiras da Legião Portuguesa. A Bateria do Areeiro, que em 1916 ainda deu um arzinho da sua graça e fez fogo sobre um navio norueguês e um yacht português que não respeitaram os sinais da Marinha de Guerra, entrou em rápida decadência e acabou convertida em “Harbor Entrance Control Post” e transferida para a Marinha em 1957.

Mas o erro do Campo Entrincheirado de Lisboa, assim como tantos outros erros do centralismo, não serviram de lição. Identificado com a vida política portuguesa ao longo de séculos, continua a fazer vítimas por mais que a maioria dos portugueses se lamente. Tudo o que ele produz, incluindo sobretudo as asneiras, continua a condicionar negativamente o progresso de Portugal e do povo português.

A edificação onde esteve instalada a nossa Bateria do Areeiro e depois o Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, é bem a imagem do pior que o centralismo produz. Há vinte anos que, abandonada, saqueada, vandalizada, usada por marginais, aguarda que dois poderes políticos, o central e o autárquico, decidam fazer a obra de recuperação que tarda. Ou deixem cidadãos interessados e empenhados fazerem essa obra.

Caro professor Carvalho Rodrigues, não é só o que se produz na Guarda e no interior que vale zero. Muito do que se produz bem perto de Lisboa, bem junto ao mar, também vale zero!

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O passeio


Palhais - Verão de 2018    (foto do Tomás)


“Anda passear, avô!”

Sim, vamos.
Ver os pássaros
procurar as rãs
visitar os dois pinheiros.
Subir à serra
descobrir os moinhos
perceber o fabrico do gelo.

Depois vamos falar do mar
de terras e povos distantes.
De abril e da liberdade
do sonho e da realidade
de gente boa
e dos carapaus de corrida.

Vou tentar lembrar-me
do que os teus outros avôs
me ensinaram.
Os nomes das plantas
enxertar uma árvore
ou ler as nuvens.

Mas acima de tudo
vou aprender contigo.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Amorada*



O miúdo teria uns treze, catorze anos e a namorada era dois anos mais nova. Moravam no mesmo prédio em Lisboa, mas nas férias grandes iam ambos para casa dos avós, ele para Palhais e ela para Peniche. Durante mais de três meses não se encontravam porque os cinquenta quilómetros entre a serra e o mar eram uma barreira intransponível. Bem, quase intransponível, porque para um adolescente não há impossíveis.

Como a namorada ia fazer anos e há meses não a via, o miúdo decidiu que seria uma boa ocasião para lhe fazer uma surpresa. Depois de obter a autorização materna para a viagem, o que não foi fácil, e de convencer um amigo a fazer-lhe companhia, antes do nascer do sol do dia 3 de Setembro, o dia de aniversário da namorada, o miúdo e o amigo prepararam o farnel, montaram as bicicletas sem mudanças e fizeram-se à estrada. Conheciam bem o caminho até ao Bombarral, mas depois eram estradas que só tinham feito de carro. O maior obstáculo foi a subida até à Serra d'El-Rei, mas depois, não tardou muito, passaram pelo posto da GNR à entrada de Peniche (com algum medo porque o amigo não tinha carta para conduzir velocípedes) e bateram à porta da casa do Campo da Torre.

Foi uma enorme surpresa para todos, em especial para a menina que se preparava para sair com a família. Iam passar o dia fora e tivessem o miúdo e o amigo chegado uns minutos mais tarde, teriam batido com o nariz na porta e a viagem, tão bem planeada, teria sido um fiasco. Mas não, o objectivo foi plenamente atingido! É certo que não tiveram tempo para conversar, mas a troca de olhares e o sorriso de felicidade da namorada, compensou todo o esforço.

O miúdo e o amigo despediram-se, foram à praia dar um mergulho, comeram o farnel à sombra de um pinheiro (sim esta história é do tempo em que havia um pinhal em Peniche), dormiram uma sesta durante o pico do calor para retemperar forças e fizeram-se à estrada para os cinquenta quilómetros de regresso a Palhais.

Quase sessenta anos depois, o miúdo continua a festejar o aniversário da amorada, agora com as filhas Joana e Catarina e os oito netos. E sem precisar de fazer 100 quilómetros de bicicleta!

Segundo a nossa neta Maria, se duas pessoas se amam, são, obviamente, amorados. E nós concordamos com a Maria.

sábado, 18 de agosto de 2018

A Raleigh preta roda 26


Marginal de Inhambane, 21.07.1957

Confesso que nunca me libertei completamente da imagem que em adolescente criei da Guarda Nacional Republicana. Para mim eram então os tipos fardados, pouco simpáticos, que andavam aos pares pelas estradas e caminhos rurais e que me pediam os documentos da bicicleta. Sim, leram bem, da bicicleta, porque naquele tempo não se podia andar de bicicleta sem documentos.

Por isso o meu avô, cumpridor escrupuloso da lei, levou-me um dia, a mim e à minha bicicleta Raleigh preta roda 26, à Câmara Municipal do Cadaval para registar o velocípede e tirar a respectiva licença de condução. Depois de ter provado que a bicicleta tinha sido adquirida regularmente e concluído com sucesso o exame teórico e prático de condutor perante o funcionário da Câmara  - mostrei que sabia os sinais de trânsito e fazia um oito sem me desequilibrar -, saí com o livrete e chapa da dita e com a licença de condução de velocípedes número qualquer coisa, com fotografia e tudo o que a lei exigia, sem esquecer o aviso: "Esta licença, passada de harmonia com o disposto no nº1 do art. 54º do Código da Estrada, deve acompanhar sempre o seu titular quando conduzir." Naturalmente que quando tal não acontecia, os guardas da GNR tratavam da autuação do prevaricador.

Bem, disse ter provado que a bicicleta Raleigh preta roda 26 tinha sido sido adquirida regularmente mas o rigor histórico exige uma clarificação. De facto a bicicleta foi adquirida regularmente em Inhambane pelos meus pais, em 1957. Mas quando cinco ou seis anos mais tarde fui com o meu avô  à Câmara do Cadaval, depois de uma mudança para Quelimane e outra para Portugal, já ninguém sabia do paradeiro do documento de compra. E sem ele, nada feito, a burocracia camarária não registava o velocípede!
A solução foi passar pela loja e oficina de bicicletas à entrada do Cadaval e pedir uma factura de venda da Raleigh preta roda 26, uma espécie importada de Inglaterra e muito rara nas terras da Metrópole. O dono amigo fez-nos o favor e lá fomos à Câmara, tudo para que a lei se cumprisse.

Mas mesmo devidamente habilitado, nunca me senti confortável quando era interpelado pelos guardas e tinha de mostrar os documentos e esperar pela conclusão da inspecção do velocípede. Pelo sim pelo não, procurava evitá-los, coisa que não era difícil porque uma rede informal de miúdos e graúdos que passavam a palavra: "Vem aí a Guarda!", controlava a ameaça com eficácia.

Depois percebi que a GNR tinha outras funções, umas sinistras como a repressão política ou a guarda da prisão de Peniche, outras pacíficas como a fiscalização do trânsito, mas a percepção original permaneceu até hoje.

terça-feira, 26 de junho de 2018

A palavra LIBERDADE


Tira um papelinho e escreve
uma palavra que, para ti,
signifique LIBERDADE.
Coloca o papelinho escrito na urna.
Voará com o vento

domingo, 20 de maio de 2018

Dia da Marinha

 


Quando partilhei no Facebook o cartaz da exposição patente no Museu de Marinha sobre a vida do Comandante Carvalho Araújo, as primeiras reacções, quase simultâneas, foram da sua bisneta Ana Guerreiro e da minha filha Joana Bettencourt. A Ana já escreveu que apesar de ter nascido 53 anos após a morte do seu bisavô José, sempre sentiu uma forte ligação com ele. Sei que a Joana, que nasceu pouco mais de 3 anos depois da morte do seu bisavô José, também sente uma forte ligação com ele.

Provavelmente nem a Ana nem a Joana conhecem os detalhes da ligação entre os seus bisavôs. O da Joana, então com 20 anos e 2º artilheiro do Navio da República Portuguesa “Augusto de Castilho”, conheceu o da Ana quando este, com 37 anos, assumiu o cargo de Comandante do navio em Agosto de 1918, há quase 100 anos.

Imagino que o 2º Artilheiro José Francisco Martins terá visto o 1º Tenente José Botelho de Carvalho Araújo entrar a bordo, terá conversado com outros elementos da guarnição sobre o novo Comandante, terão eventualmente comentado os rumores sobre o seu estado de saúde; mas estou certo que a partir daquele momento passou a ser o seu Comandante, aquele a quem devia total obediência na defesa da Pátria, mesmo com o sacrifício da própria vida. Já por duas vezes tinha lutado contra submarinos alemães, depois de se ter apresentado a bordo no último dia de 1917, e tudo indicava que voltaria a ter que lutar numa outra qualquer missão no mar.

Provavelmente o bisavô da Ana não terá tido oportunidade de conhecer bem o bisavô da Joana. É certo que ambos tinham as suas raízes em Trás-os-Montes, mas essa era a única afinidade entre eles. Quando o bisavô da Joana nasceu na casa da avó materna em Chaves, já o bisavô da Ana tinha frequentado os preparatórios na Academia Politécnica do Porto e ingressado na Marinha. E enquanto o bisavô da Joana se fez homem como marçano nas ruas de Lisboa, o bisavô da Ana cumpriu uma carreira brilhante como oficial da Armada, foi Deputado por Vila Real à Assembleia Constituinte da República e Governador do Distrito de Inhambane, em Moçambique.

Mas as circunstâncias históricas e a natureza do serviço na Marinha fizeram com que partilhassem dois meses das suas vidas a bordo do mesmo navio. E na madrugada de 14 de Outubro, o bisavô da Joana viveu um dos momentos mais dramáticos da sua quando testemunhou a morte honrosa do bisavô da Ana, a poucos metros do seu posto de combate.

Ouvi muitas vezes o bisavô da Joana homenagear a coragem e o comportamento do bisavô da Ana quando se sacrificou para salvar mais de duas centenas de passageiros do paquete "San Miguel", na maioria portugueses dos Açores. Talvez tenha sido essa a razão de um dia ter escolhido a mesma profissão dos bisavôs da Ana e da Joana e ingressado na Marinha.

E lembrá-lo foi a melhor forma de celebrar o Dia da Marinha, da Marinha deles e nossa.

sábado, 12 de maio de 2018

A Cidadania e a Fúria Desmatadora



No regresso do exercício matinal gostei de ver o grupo de jovens que limpava a mata junto ao Centro de Juventude de Oeiras. Desconheço as suas motivações assim como eles também não conhecem as razões do meu contentamento e muito menos a relação do seu acto com o que entendo ser o exercício pleno e bem-sucedido da cidadania.

Como já aqui disse, para mim a cidadania não é um código de boas maneiras, é uma relação de poder que envolve o povo soberano e todos os que, em seu nome, são chamados a governar, a administrar e a julgar. E nessa relação, o povo soberano que somos nós, cidadãos, perde sempre que os que são chamados a governar, a administrar e a julgar em seu nome, impõe a sua vontade contra os nossos interesses. É por exemplo o caso da fúria desmatadora que atingiu governo e autarquias depois da tragédia dos incêndios e que, no meu caso pessoal, obriga a abater pinheiros mansos que há décadas ajudei o meu pai a plantar. Tenho a certeza que o meu pai partilharia comigo a revolta pela destruição, em nome de uma muito suspeita política da floresta, da mata onde quis que depositasse as suas cinzas.

Mas também tenho a certeza que o meu pai ficaria tão contente como eu por ver a mata de Nova Oeiras ser poupada à loucura da desmatação nacional, ser bem preservada por um município que noutros locais não tem a mesma racionalidade e ser cuidada por um grupo de cidadãos jovens. É que foi ele que me ensinou que o exercício da cidadania é uma tarefa dura e que cada vitória, por mais pequena que seja, é conquistada dia-a-dia por cada um de nós, cidadãos deste país.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

O exosqueleto




Confesso que no liceu detestava Camões. Descontando o episódio da Ilha dos Amores, que o pensamento medíocre do Estado Novo mantinha afastado dos adolescentes para que não fossem contaminados pela moral pagã, a análise da poesia de Camões era uma tremenda seca. Todos os esquemas eram válidos para lutar contra a ditadura do programa de Português, personificada na pobre professora. A libertação veio com a opção de ciências e os caminhos das engenharias.

Alguns anos mais tarde aprendi a gostar da poesia de Camões. Primeiro timidamente com João Villaret e Amália, depois convictamente com José Mário Branco e, naturalmente, José Afonso. Até que há dias vi um teste de Português do meu neto. As perguntas sobre o soneto “Enquanto quis Fortuna que tivesse” trouxeram-me memórias com mais de cinquenta anos e voltei a sentir a mesma aversão.

Tal como eu, o meu neto tenta sobreviver à provação. Na luta contra as velhas e sempre iguais questões da professora, usa novas e mais sofisticadas artimanhas mas o objectivo é infelizmente o mesmo: libertar-se de Camões e da sua poesia!

Mudaram os tempos mas não mudaram as vontades. Apesar de todas as mudanças do Mundo, parece que o ensino nas nossas escolas tem um exosqueleto cultural que limita o crescimento. E ao contrário dos artrópodes, não tem a capacidade de o substituir, de mudar de forma e de se adaptar a novos ambientes e objectivos.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Não, não é Carnaval!



As notícias da passada terça-feira sobre buscas, constituição de arguidos, detenções, acusações, julgamentos, anteciparam duas semanas o Entrudo do meu descontentamento.

É certo que a gravidade dos pecados invocados deveria suscitar atitudes mais próprias da Quaresma, como o recolhimento, a meditação, a penitência, a conversão, que precedem a ressurreição e a vitória do bem e do injustiçado. Mas o circo mediático e das redes sociais, provavelmente inspirado pela fraca e ridícula América de Trump e das Fox e Breibart News, reduziu tudo a um patético cortejo carnavalesco de matrafonas, cabeçudos e zés-pereiras, onde as atitudes e as acções individuais ou colectivas, mais ou menos graves, são caricaturadas ao sabor das paixões, dos ódios e ressentimentos pessoais; e os populares, mascarados ou não, arremessaram uns aos outros toda a espécie de objectos repugnantes ou pestilentos, bem ao estilo de um Entrudo que tudo permite porque "É Carnaval, ninguém leva a mal!” e depois dele tudo é esquecido e volta à normalidade.

Não, não é Carnaval e a corrupção, o tráfico de influências, a fraude, o peculato, o recebimento indevido de vantagens, a ineficácia da justiça, a violência doméstica e nas escolas, as dependências dos jovens, a agressividade e a mortalidade nas estradas, o contágio perigoso de doentes nos hospitais, são realidades da nossa sociedade que devem ser levadas muito a sério. Devem ser investigadas e estudadas com o rigor e a clareza dos relatórios sobre o incêndio de Pedrógão e a violência doméstica, longe das paixões clubistas ou partidárias.

Tudo para que cada um de nós, cidadãos deste país, à sua maneira e na sua esfera de influência, deixe de ser um espectador inconsequente ou um lançador de atoardas e insultos e contribua para a melhoria da sociedade.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A lenda do rei republicano




─ Não precisamos de rei para nada cá em Portugal porque o nosso Presidente da República faz o papel de um extraordinário rei em qualquer parte do planeta!

Calma, a afirmação não é minha, tanto mais que não percebo nada destas coisas de reis e rainhas. Quem o afirmou foi o monárquico progressista José Albano Salter Cid de Ferreira Tavares, que seria barão se vivêssemos numa monarquia. Mais precisamente Barão do Cruzeiro.

Um outro monárquico, o Duarte Pio João Miguel Gabriel Rafael de Bragança, disse um dia que fazia sentido comparar o progresso dos países europeus que têm reis e rainhas com o nosso atraso por sermos uma república. Mas hoje, no Portugal do presidente que faz de extraordinário rei segundo José Cid, é possível que tal comparação tenha deixado de fazer sentido. O povo português talvez tenha sido mais uma vez inovador e poderá ter juntado o melhor dos dois mundos num país que é uma república e tem um rei. Admito que assim seja mas vou esperar para ver. É que o José Cid já me desiludiu uma vez.

Lembro-me bem do que senti há cinquenta anos quando ouvi pela primeira vez “A Lenda de El-Rei D. Sebastião”, a primeira música criada por um português e cantada em português que o Em Órbita passou. Juntei logo uns trocos e fui à discoteca, era assim que então se chamavam as lojas que vendiam discos, comprar o primeiro EP do Quarteto 1111. O José Cid tinha de facto criado uma música de qualidade que parecia abrir um caminho novo. Depois voltou a compor e interpretar canções boas, muitas abordando temas interessantes que acabaram por espicaçar e ser proibidos pela censura fascista. Mas com o tempo meteu-se em macaquices e a promessa original esfumou-se.

Tal como na lenda que o Quarteto 1111 contou no seu primeiro êxito, podemos estar hoje a viver um novo Sebastianismo colectivo, dos que têm uma crença irracional em coisas, em valores e em poderes que não existem, dos que se deixam enganar pelos falsos Messias do oportunismo e da mistificação.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Confissão



Está bem, eu confesso. Pedi e aceitei um convite para o jogo de despedida do Pelé no Maracanã! Se o MP português, ou quiçá brasileiro, quiser investigar possíveis ligações com decisões dos serviços que chefiei, tenho de aceitar.

É certo que posso invocar fortes atenuantes. Nunca fui ver jogos do Benfica ou de qualquer outro clube, aliás aquela ida ao Maracanã foi a única vez que entrei num estádio para ver um jogo de futebol. E não vi o jogo todo. Compromissos sociais em Copacabana fizeram com que o Bebé e eu chegássemos atrasados e não ocupássemos os lugares na tribuna de honra. Também não sei nada de economia ou finanças, não sou ministro de coisa alguma nem presidente de qualquer grupo da união europeia.

Mas as gentes do MP, tão ocupadas que estão com as centenas e centenas de casos de violência doméstica, podem não prestar a devida atenção às minhas circunstâncias. É humanamente compreensível.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Vergonha




"Eles pareciam pessoas normais, como tu e eu."


As conclusões do relatório de análise do homicídio em violência doméstica de uma mulher jardineira por um homem trabalhador da construção civil desempregado, ocorrido em 2015 em Valongo, são a imagem dura mas fiel da ineficácia do Ministério Público e dos valores e atitudes, individuais ou partilhadas, que perpetuam a violência e a discriminação na sociedade portuguesa.

Segundo o relatório, a actuação do Ministério Público, no decurso do inquérito originado por denúncia de violência doméstica apresentada pela vítima, não decorreu de acordo com os procedimentos que estão previstos na lei e ou em instruções que está obrigado a respeitar. Em concreto:
  • O atendimento da vítima foi efectuado por quem não tinha preparação técnica para o efeito;
  • Não foi atribuído o estatuto de vítima nem foram prestadas informações sobre os apoios de que podia beneficiar;
  • Não foi avaliado o risco de ocorrência de novos episódios de violência doméstica ;
  • Não foi desencadeada qualquer medida de protecção da vítima;
  • Não foram desenvolvidas diligências tendo em vista a ponderação da necessidade de aplicação de medidas de coacção ao agressor.

Desde que foi apresentada a denúncia por violência doméstica pela mulher, a 29 de Setembro de 2015, até à data da sua morte, a 4 de Novembro de 2015, dia em que prestou declarações no Ministério Público, decorreram 37 dias sem haver qualquer decisão quanto a medidas de protecção em benefício da vítima ou quanto a medidas de coacção a aplicar ao agressor

Sobre o tratamento noticioso do relatório e apesar deste denunciar duas falhas graves que facilitaram o homicídio da mulher vítima de violência doméstica, sem estabelecer qualquer hierarquia de importância, só a do Ministério Público é notícia na comunicação social. É significativo que o comportamento vergonhoso da comunidade em que a vítima e o agressor estavam inseridos não abra os noticiários nem esteja nos títulos dos jornais. Ainda de acordo com o relatório, embora os comportamentos do homem fossem do conhecimento de algumas pessoas da comunidade local em que a mulher e o homem se encontravam inseridos e com quem mantinham relacionamento pessoal, não há notícia de qualquer reacção no sentido de alertar ou sinalizar a situação junto dos órgãos de polícia criminal, do Ministério Público ou de qualquer entidade que pudesse apoiar a vítima.

Em Valongo, como no resto do país, a violência doméstica continua a ser entendida como uma questão íntima do casal, interior ao agregado familiar, silenciada e tacitamente aceite. Neste como em muitos outros casos que ocorrem diariamente em Portugal, os comportamentos de violência doméstica eram do conhecimento de pessoas que tinham relações próximas com a vítima e o agressor, sem que isso tivesse provocado qualquer efeito negativo para o agressor nem o desencadear de iniciativas que prevenissem o homicídio. Mesmo despois da sua constituição como arguido e depois dos factos provados, não sofreu qualquer tipo de rejeição social.

No período em que vítima e agressor se relacionaram, a violência doméstica sempre teve a natureza de um crime público e bastava uma denúncia feita por qualquer pessoa para desencadear a abertura de um inquérito e todos os instrumentos de intervenção e prevenção.

A instituição Ministério Público errou mas nós todos, como povo, também errámos. E continuaremos a errar se não alterarmos os factores socioculturais negativos que dominam a sociedade portuguesa.

É por isso que o combate à burocracia e à ineficácia da Justiça e o trabalho de desconstrução de crenças, mitos e estereótipos sobre a violência contra as mulheres são prioritários para quem deseja o progresso da sociedade portuguesa.

(Relatório aqui)