terça-feira, 25 de setembro de 2018

O centralismo da(á) asneira

 




Ouvi o professor Carvalho Rodrigues dizer a propósito do opressivo centralismo lisboeta: “Tudo o que é produzido aqui (na Guarda e no interior) vale zero, tudo o que é produzido lá (em Lisboa e no litoral), incluindo as asneiras, vale imenso!”

Pois é caro professor, essa é uma queixa bem antiga. Ouvia-a do meu avô quando falava da sua terra transmontana ou da agricultura que fazia no sopé da serra de Montejunto, a dois passos de Lisboa; ouvia-a do meu pai em Moçambique quando barafustava contra as decisões dos que ele chamava de “calcinhas“ de Lisboa; ouvi-a de alentejanos, de madeirenses e de açorianos. Ouvia-a de todos os que se sentiam vítimas dos comportamentos de influência e manipulação política, corrupção, compadrio, favor, cunha, há muito associados ao centralismo e ao poder instalado na capital.

O egocentrismo do poder lisboeta é tão obsessivo que chegou ao ponto de desenvolver a doutrina de que a melhor forma de defender Portugal seria defender Lisboa com todos os recursos disponíveis. E se bem pensou, melhor o fez. No final do século XIX e início do século XX, quase todo o dispositivo militar português — tanto do Exército como da Marinha —, passou a estar concentrado na defesa de Lisboa.

O poder central mandou construir uma série de novas e modernas fortificações, adaptar algumas já existentes, tudo para criar o Campo Entrincheirado de Lisboa. As fortificações receberam modernas peças de artilharia e foram interligadas por redes telefónicas e telegráficas, bastante avançadas para a época. A partir de 1899, o Campo Entrincheirado passou a constituir um comando militar, organizado permanentemente em pé de guerra, cujo governador era um general, na dependência directa do ministro da Guerra.

Na frente terrestre, Lisboa era protegida por uma linha defensiva de Sacavém a Caxias, constituída pelos Fortes do Monte Cintra, em Sacavém, de D. Carlos I, na Ameixoeira, do Marquês de Sá da Bandeira, em Monsanto e de D. Luís I, em Caxias. O Forte de Monsanto era o reduto central de todo o sistema e nele foi instalado o comando da linha defensiva.

Na frente fluvial, o Tejo era protegido pelos Fortes do Bom Sucesso e do Alto do Duque. A frente marítima, a barra do Tejo, a margem sul e as aproximações a Lisboa eram protegidas pelos Fortes de São Julião da Barra, em Oeiras, e de Almada. A Marinha empenhava neste dispositivo o couraçado Vasco da Gama que funcionava como uma bateria flutuante contra ataques marítimos, uma esquadrilha de navios e um serviço de minas.

O sistema defensivo era complementado com diversos outros fortes, redutos, postos, baterias e fortificações secundárias. Para defender a barra do Tejo, para a além da Bateria da Laje, foram construídas na década de 1900 duas baterias mais pequenas e idênticas: a das Fontainhas, entre Oeiras e Paço de Arcos, e a do Areeiro, na ponta oeste da praia de Santo Amaro de Oeiras, junto ao Forte de Santo Amaro. Ambas tinham como função “baterem, com o seu fogo, as embarcações que intentem rocegar a faixa de torpedos (minas marítimas) estabelecida entre as duas margens do Tejo."

Terminada a Primeira Grande Guerra e pouco mais de dez anos depois de concluído o Campo Entrincheirado de Lisboa, tornou-se evidente que o conceito em que assentava não fazia sentido e a maioria das fortificações deixaram de ser utilizadas como tal e foram transformadas em depósitos, paióis ou prisões.

E o fim das nossas duas baterias também ficou traçado. A Bateria das Fontainhas, em cuja zona de servidão a Câmara Municipal de Oeiras foi autorizada a captar água das nascentes, acabou aquartelamento do Terço de Oeiras da Legião Portuguesa. A Bateria do Areeiro, que em 1916 ainda deu um arzinho da sua graça e fez fogo sobre um navio norueguês e um yacht português que não respeitaram os sinais da Marinha de Guerra, entrou em rápida decadência e acabou convertida em “Harbor Entrance Control Post” e transferida para a Marinha em 1957.

Mas o erro do Campo Entrincheirado de Lisboa, assim como tantos outros erros do centralismo, não serviram de lição. Identificado com a vida política portuguesa ao longo de séculos, continua a fazer vítimas por mais que a maioria dos portugueses se lamente. Tudo o que ele produz, incluindo sobretudo as asneiras, continua a condicionar negativamente o progresso de Portugal e do povo português.

A edificação onde esteve instalada a nossa Bateria do Areeiro e depois o Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, é bem a imagem do pior que o centralismo produz. Há vinte anos que, abandonada, saqueada, vandalizada, usada por marginais, aguarda que dois poderes políticos, o central e o autárquico, decidam fazer a obra de recuperação que tarda. Ou deixem cidadãos interessados e empenhados fazerem essa obra.

Caro professor Carvalho Rodrigues, não é só o que se produz na Guarda e no interior que vale zero. Muito do que se produz bem perto de Lisboa, bem junto ao mar, também vale zero!

Sem comentários:

Enviar um comentário