quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

"Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi"


Alexandra Reis
 (foto original do Expresso)


"Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”, foi o que Giuseppe Tomasi di Lampedusa escreveu na única obra que lhe conhecemos, “Il Gattopardo”.

A frase deu-lhe a fama que não gozou em vida porque o romance foi rejeitado por vários editores e só foi publicado dois anos depois da sua morte. Mas hoje é repetida em todo o mundo, quase sempre alterada para confirmar o pensamento do autor: "Para que tudo fique na mesma, é preciso que alguma coisa mude."

Lembrei-me de Lampedusa quando ouvi a notícia da demissão de Alexandra Reis. Era a mudança inevitável para que continuemos a acreditar que virão soluções decentes. Soluções que não virão, por mais mudanças que venham a acontecer.

É óbvio que a nomeação de Alexandra Reis não foi uma solução decente, mas duvido que o seu pecado maior tenham sido os 500 mil euros de indeminização da TAP. Quantos pecados destes, e mais graves, foram, e continuarão a ser, cometidos na teia de cumplicidades entre dirigentes partidários e da administração e empresas públicas, sem que houvesse um coro de virgens ofendidas?

Sei por experiência própria que o trabalhador comum não tem direito a tais indeminizações. Sei como é difícil receber indeminizações incomparavelmente mais reduzidas depois de trabalhar durante muitos mais anos, às vezes uma vida. 

Sei o que tive de lutar, até no tribunal, pela indemnização dez vezes menor a que tinha legalmente direito quando fui despedido. Mas o Olimpo dos escolhidos para governar o Estado e as empresas não se rege pelas mesmas regras que o cidadão comum e por isso ouvimos dizer que Alexandra Reis teria, por lei, direito a uma indeminização três vezes superior!

A Alexandra Reis secretária de Estado foi afastada para que a teia de cumplicidades entre dirigentes partidários e da administração e empresas públicas continue como está. Amanhã serão outros, para que tudo mude e as gentes do arco da governação (um termo que também mudou, lembram-se?) continuem a cometer pecados tão ou mais graves do que o dela.

Só peço que nos poupem aos discursos hipócritas. Todos sabemos que as vossas mudanças, tal como Lampedusa escreveu, são para que tudo continue como está.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Carta à Mafalda


Rendimento familiar médio líquido equivalente por idade,
 para britânicos nascidos em diferentes décadas


Disseste que pertences à primeira geração que vai viver pior do que as anteriores.

Percebi o que querias dizer e, como tu, também estou preocupado com a quebra do contrato social entre gerações. Sei que com a crise económica se abriu uma brecha geracional e que a ascensão social automática deixou de ser uma certeza para a tua geração.

Com efeito, na última década e meia, as traves-mestras da relação entre gerações foram destruídas. A expectativa de que jovens da tua geração viveriam melhor do que os das anteriores foi desmentida pela realidade e todos sabemos que vocês são os que mais sofreram os efeitos da crise, com a precarização do emprego, a discriminação salarial, a emigração para sobreviver ou, no melhor dos casos, para poder aplicar os conhecimentos adquiridos, a maior parte das vezes com dinheiro público, etc.

Mas como em todas as questões, é preciso tentar ver um pouco mais além, tanto mais que pelo menos desde 2016 se repete até à exaustão, por toda a Europa, que os filhos terão de viver pior que os pais, sem que se pare para reflectir o que isso significa e como pode ser contrariado.
 
O alarme foi dado pelo jornal britânico The Independent quando, em Setembro de 2016, publicou um artigo com o título “Children of Thatcher era have half the wealth of the previous generation”, seguido do sub-título “People born in the early 1980s are the first post-war generation to reach their thirties with smaller incomes than those born a decade earlier”. O artigo, muito crítico das políticas neoliberais, citava dados de um relatório do Institute of Fiscal Studies intitulado “The Economic Circumstances of Different Generations: The Latest Picture”.

A partir dos dados do rendimento familiar médio líquido equivalente (depois de deduzidos os custos de habitação) por idade, para britânicos nascidos em diferentes décadas (ver figura), o estudo do IFS constatou que os nascidos no início da década de 1980 começaram a vida adulta com menores rendimentos do que os nascidos na década anterior (1970).
 
Constituam assim a primeira geração do pós-guerra a iniciar a vida activa com rendimentos menores do que os seus antecessores auferiam com a mesma idade, reflectindo o facto de que a crise económica de 2006 tinha atingido mais duramente o salário e o emprego dos jovens adultos. No entanto, o mesmo estudo teve o cuidado de notar que os nascidos no início da década de 1980 começaram a vida adulta com rendimentos muito mais elevados do que os nascidos nas décadas de 1960 e anteriores.

Embora os números fossem da sociedade britânica, podiam facilmente ser extrapolados para o resto da Europa e, talvez por isso, a mensagem simplificada de que a geração dos Millennials seria a primeira que vai viver pior do que as anteriores, acabou por ser propagada pelos sectores ideológicos mais radicais e sentida, muito em particular, pelos que como tu que se tornaram adultos no auge da pandemia de covid-19.

Em consequência, a crise do capitalismo e da quebra da promessa de que, com preparação e esforço individual, cada geração viveria melhor e num mundo melhor do que a dos seus pais, acabou por ser usada para criar artificialmente uma clivagem geracional que ultrapassa a questão dos rendimentos e afecta as expectativas pessoais mais profundas da tua geração.

Neste contexto, compreendo que a tua geração veja os idosos como pessoas que realizaram os seus sonhos, enquanto os netos sentem que o futuro lhes foi roubado, mesmo que estudem e trabalhem muito. De facto, muitos idosos estão apenas preocupados com um vírus, enquanto recebem uma pensão de reforma significativamente superior ao salário médio a que os seus netos podem aspirar, mesmo a médio prazo.

Confesso, Mafalda, que não foi esta a sociedade que na década de 1970 sonhei para ti, para os teus irmãos e para os teus primos. E que sei que a frustração das expectativas de futuro, materiais e emocionais, é uma das feridas mais difíceis de sarar numa sociedade.

Por isso estou disponível para contigo e com os jovens da tua geração, tentar restaurar a confiança entre gerações que a crise do capitalismo destruiu. É que, apesar do fatalismo da mensagem propagada, a tua geração, à semelhança do que aconteceu com a minha na década de 1970, não está condenada a não ter futuro.

domingo, 20 de novembro de 2022

Não tem, mas inventa!

Há quem diga que o meu pai tinha uma relação muito especial com o dinheiro, mas eu tenho a certeza de que ele não tinha qualquer relação com o dinheiro. Nos cinquenta anos de actividade profissional, nunca soube quanto ganhava. Quando o vencimento era pago em numerário, recebia e entregava o envelope à minha mãe, e não pensava mais no assunto. Quando passou a receber no banco, libertou-se totalmente da preocupação de levantar o ordenado.
 
Viveu noventa e um anos, sempre com muito pouco dinheiro na carteira, só o estritamente necessário para os seus gastos pessoais, que eram diminutos. O orçamento familiar era administrado pela minha mãe, que se encarregava de adquirir todos os bens necessários, dos alimentos aos medicamentos, dos livros à roupa, dos computadores aos carros.
 
Quando o meu pai, por qualquer razão, decidia premiar monetariamente os filhos, ou mais tarde os netos e os bisnetos, chamava a minha mãe ou, na sua ausência, escrevia num pedaço de papel: “VALE cinco escudos”, ou outro valor qualquer. Depois lá íamos nós ter com a minha mãe para resgatar o vale e ouvir o discurso do costume: — O teu pai é muito esperto, não tem dinheiro, mas inventa!

Lembrei-me disto a propósito da sempre ameaçadora crise bancária e de como ela tem servido para nos pôr a pagar a vida faustosa dos bancos e dos banqueiros. Claro que os banqueiros sabem que a apregoada crise não será como a pintam, mas dá muito jeito manter a ameaça.
 
A Irlanda provou, em 1970, que era possível passar sem os banqueiros que fizeram uma greve e fecharam os bancos para vergar os trabalhadores bancários. Ao fim de seis meses os banqueiros recuaram porque nada de grave se tinha passado. A população criou um sistema de trocas, com instrumentos semelhantes aos vales do meu pai, e mostrou que os bancos eram menos necessários que a maioria dos serviços camarários.

É certo que os irlandeses precisaram de uma espécie de sistema financeiro, mas provaram que passavam bem sem os edifícios majestosos, os bónus e as remunerações obscenas, a especulação de risco e os resgates pagos pelos bolsos dos contribuintes. E que também passavam bem sem os reguladores e as guerras, reais ou inventadas, com os governos.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Os responsáveis


Ao ouvir o primeiro-ministro e o presidente da República justificarem as medidas governamentais para minimizar os efeitos negativos da inflação nos rendimentos dos portugueses, lembrei-me de um texto que publiquei há seis anos no Facebook: Sinto que o debate ideológico sobre a união europeia é cada vez mais uma versão pobre das discussões inconsequentes entre Settembrini e Naphta no sanatório da Montanha Mágica de Thomas Mann. Receio que independentemente da simpatia que possam ter pelo humanismo de um ou pelo nacionalismo de outro, muitos dos jovens de hoje acabem como Castorp, o engenheiro naval de Hamburgo, arrastados para o “macabro baile” de um conflito europeu.

Tudo o que se passa hoje em Portugal e na Europa, incluindo o “macabro baile” de um conflito europeu e a consequente crise económica, depende da vontade de gente que não escolhemos democraticamente.

As políticas económicas adoptadas pelo governo de Portugal são determinadas ou condicionados por burocratas e políticos da união europeia que o PR classificou ontem como “radicais financeiros”. São eles que nos trouxeram até aqui, independentemente da vontade dos portugueses. Mas pouco ou nada falamos deles.

É como se concordássemos que tudo o que não conseguimos resolver hoje, pode ser explicado por um passado inventado ou ser resolvido num lugar imaginário a que chamamos futuro.

Consciente ou inconscientemente, ao esquecermos quem são os verdadeiros responsáveis pelo presente e que são eles que devem prestar contas, rejeitamos também a possibilidade de resolver o problema num tempo dilatado e denso, com gente dentro.

sábado, 3 de setembro de 2022

Legado


Alguém disse que as nossas conquistas interiores modificam a realidade exterior.
 
Não sei se é uma verdade universal, mas, no caso da minha Mãe, estou certo de que a sua força interior, a sua vontade de melhorar o mundo, a sua presença, fazem com a vida dos outros seja bastante melhor.
 
É esse o seu mais valioso legado aos bisnetos, a grande lição dos 95 anos de uma vida plena.

domingo, 22 de maio de 2022

Originalidade ou continuidade?

 


Porque ocupei uma boa parte da vida profissional em actividades de aquisição e manutenção de navios militares, não podia deixar de notar as notícias que nos últimos tempos têm saído sobre a contratação da IdD Portugal Defence para gerir o programa de aquisição de seis novos navios de patrulha oceânicos (NPO) para a Marinha Portuguesa.

De acordo com uma resolução do anterior governo, de Junho do ano passado, foi autorizada a despesa de quase cinco milhões de euros do Orçamento do Estado para remunerar aqueles serviços da IdD Portugal Defence.

Em entrevista ao DN e à TSF no Dia da Marinha, o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) declarou que estava confortável com a resolução do Governo e considerou útil a ajuda da IdD Portugal Defence na “parte da contratação pública” e na “parte da gestão desses contractos”. E clarificou: “Vejo sempre com utilidade essas ajudas, não vejo que haja qualquer competição sobre as responsabilidades da Marinha, porque a Marinha está envolvida em muitos projetos neste momento.”

Compreendo a resposta do CEMA porque na verdade, no quadro legal que regula os programas de aquisição de novos navios, a Marinha tem pouca margem de manobra. Malgrado a experiência e a competência das suas direcções técnicas, julgo que únicas na administração e nas empresas públicas, os termos e a execução do processo de aquisição de novos navios são estabelecidos pelo Governo e Ministério da Defesa Nacional e a Marinha só tem de cumprir as tarefas que lhe forem atribuídas. Assim sendo, a questão que parece relevante é saber se a IdD Portugal Defence tem as capacidades e competências compatíveis com as responsabilidades que lhe foram atribuídas pelo Governo.

Depois de consultar o site da IdD Portugal Defence, fiquei a saber que é uma sociedade de capitais exclusivamente públicos com tutela conjunta do Ministério da Defesa Nacional e do Ministério das Finanças. Como não refere e não se conhece qualquer experiência ou competência daquela sociedade na gestão e acompanhamento de programas de aquisição de navios militares, procurei perceber como é que IdD Portugal Defence poderia acrescentar valor ao programa e maximizar o impacto positivo na economia nacional, tal como consta na resolução do governo.

Percebi então que os quase cinco milhões de euros do Orçamento do Estado servirão para mobilizar empresas onde o Estado Português tem participação assim como outras que integram a designada “Base Tecnológica e Industrial de Defesa” gerida pela IdD Portugal Defence, para apresentarem propostas para fornecerem serviços e equipamentos para os NPO.

A gestão de um programa de aquisição ou construção de navios militares (refiro militares porque são aqueles onde tenho experiência, mas julgo que com os comerciais se passa o mesmo) é um processo tão dinâmico, complexo e exigente que não se compadece com a partição de responsabilidades por diversas entidades. Quem dirigir tal processo, deve ser responsável por todos os seus componentes e a escolha das soluções técnicas e contratação dos respectivos fornecedores é um dos principais. A quem gere um programa (indivíduo, grupo ou entidade) devem ser definidos os requisitos dos navios, o orçamento, o prazo e o quadro legal e contratual do programa. Depois o gestor deve usar as suas capacidades, competências e autoridade para atingir o objectivo estabelecido para o programa, sem que possa atribuir a outros a culpa dos fracassos.

Por outro lado, se existe em Portugal uma “Base Tecnológica e Industrial de Defesa” constituída por empresas públicas e privadas, pareceria razoável que essas empresas se organizassem autonomamente e apresentassem soluções tão completas e coerentes quanto possível, que satisfizessem os requisitos do programa de construção dos NPO, com o menor risco para o comprador. Na solução adoptada afigura-se estranho o paternalismo do comprador, o Estado Português, ao tentar organizar os fornecedores, assumindo com isso riscos desnecessários e, provavelmente, ainda não avaliados.

Ao longo da minha carreira profissional, tive oportunidade de reflectir sobre a forma de dinamizar a indústria naval militar nacional e estudar as soluções adoptadas por outros países para a gestão e acompanhamento de programas de aquisição de navios. Contudo, devo confessar que não encontrei uma justificação semelhante à apresentada pelo Governo para contratar a IdD Portugal Defense.

Face ao que li, admito duas hipóteses: a primeira é que o governo descobriu uma solução original que vai revolucionar os procedimentos de aquisição de navios das Marinhas militares de todo o mundo; a segunda, talvez mais provável, é que o exíguo Orçamento do Estado Português continua a alimentar os grupos político-partidários que dominam a burocracia estatal, assim como as empresas e entidades públicas e privadas que sobrevivem à sua sombra.

terça-feira, 17 de maio de 2022

"A vingança do chinês"


Sabe-se que a História não se repete, mas será tolo quem não aprender com ela, em especial quando se vivem situações semelhantes às do passado.

A declaração conjunta de Xi Jinping e Vladimir Putin do passado dia 4 de Fevereiro, a anunciar o que para os dois seria o fim da hegemonia dos EUA sobre os destinos do mundo, lembrou‑nos o acordo de Mao com Estaline em 1950.

Na altura Mao era o mais fraco, foi pedir a bênção de Estaline, meteu-se na guerra da Coreia e quem saiu por cima foi Estaline. Os detalhes do processo só foram conhecidos muitos anos mais tarde quando foram divulgados documentos secretos de um e outro lado, mas sabemos hoje que Mao se sentiu atraiçoado por Estaline e que essa traição envenenou as relações sino-soviéticas durante décadas.

As razões que levaram Estaline a fomentar a invasão da Coreia do Sul terão sido as que constam de uma carta de Agosto de 1950, só conhecida em 2005 : "envolver" os EUA numa guerra difícil e cara no extremo-oriente e "distrair" a sua atenção da Europa Oriental, a verdadeira preocupação de Estaline.‎

A resposta imediata de Truman e o empenhamento de forças norte-americanas e chinesas na guerra da Coreia, sem que os soviéticos se envolvessem directamente, permitiu que o objectivo de Estaline de distrair os seus concorrentes principias, os EUA e a China, tenha sido temporariamente atingido.

O que Estaline não previu foi que a NATO, que antes da guerra da Coreia era apenas uma ideia, se transformasse depois dela numa poderosa estrutura militar liderada pelos EUA. E também não previu que a China, setenta anos depois, se transformasse na potência que conhecemos.

Hoje, o mais fraco é Putin. Foi pedir ajuda a Xi Jinping, invadiu a Ucrânia, aparentemente convencido que poderia vencer uma guerra de agressão, o que actualmente é quase impossível. Os EUA responderam rapidamente e desta vez não se envolveram directamente. E a NATO, que estava moribunda, parece ter ressuscitado.

À semelhança do acordo entre Mao e Estaline, só daqui a muitos anos saberemos o que se passou antes e depois da declaração de 4 de Fevereiro. No entanto, arrisco a opinar que estamos a assistir à “vingança do chinês”, levada a cabo com frieza, setenta anos depois.

E, aparentemente, dos intervenientes principais, só Putin não terá aprendido com a História. Bem, Putin e os que continuam a acreditar em dirigentes políticos que os usam e sacrificam como material descartável, sem qualquer valor.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

50 anos do BA - Alocução ao Corpo de Alunos


 

Senhor Almirante Comandante da Escola Naval,

Oficiais e Cadetes da Escola Naval,

Camaradas do Curso “Almirante Baptista de Andrade”,

Quiseram as circunstâncias que só hoje, quase dois anos depois da data devida, seja possível celebrarmos os 50 anos do nosso curso na Escola Naval.

Os que em 1970 transpuseram pela primeira vez a porta de entrada da Escola Naval e se juntaram a alguns dos que entraram um ano antes, formaram o curso “Baptista de Andrade”. O BA, ao longo de quatro anos, foi evoluindo com novas entradas e várias saídas, mas manteve sempre o essencial do que influenciou decisivamente o que cada um dos nós é hoje.

Frequentar a Escola Naval, mesmo que por um curto período de tempo como aconteceu com alguns de nós, é um enorme privilégio. Mas frequentar a Escola Naval integrado num curso como o BA foi um privilégio ainda maior e, por isso, independentemente da data em que o fazemos, celebrar os 50 anos do nosso curso, na Escola Naval e sem as restrições impostas pela pandemia, tem um significado especial para todos e cada um de nós.

Por isso o nosso sentido agradecimento a todos os que hoje servem e estudam na Escola Naval por nos propiciarem este momento. Um momento que gostaríamos que seja tão relevante para os cadetes do curso "Chefe de Divisão da Armada Lopes da Costa e Almeida" como foi para nós convivermos com elementos do curso que celebrou o cinquentenário no nosso primeiro ano na Escola Naval. Conhecer oficiais como o almirante Ramos Pereira, um exemplo como oficial da Armada e cidadão, ou o engenheiro Eduardo Scarlatti, um mestre da cultura, foi uma experiência marcante para os cadetes do BA.

Como não podia deixar de ser, o BA foi influenciado pelas condições históricas do País e da Armada nos anos que precederam o 25 de Abril de 1974. E essas condições muito particulares fizeram de nós os militares que fomos e os cidadãos que somos.

Na Escola Naval contrariámos as praxes e todas as formas de abuso. Queixámo-nos de um professor incompetente e requeremos a repetição da cadeira por ter sido mal-ensinada. Contestámos a forma como eram realizados os embarques de instrução. Alterámos práticas tradicionais, propondo alternativas nos órgãos próprios. Quando discordávamos das ordens que recebíamos, cumpríamos e depois apresentávamos queixa formal.

Fomos muitas vezes contestatários e nunca abdicámos de lutar por o que entendíamos ser justo e correcto, mas sempre respeitámos as regras da instituição militar. As iniciativas que tomávamos eram previamente discutidas e respeitavam a vontade da maioria. Éramos solidários apesar da nossa diversidade.

Cada um de nós aprendeu na Escola Naval a valorizar o rigor e a liberdade de pensamento e acção. Aprendemos com oficiais e professores que souberam transmitir os valores e os princípios que devem nortear a profissão de oficial de Marinha. Aprendemos com os Comandantes Silvano Ribeiro, Oliveira Lemos, Freire Montez e o Engenheiro Mesquita Dias, para lembrar alguns dos melhores entre os melhores.

Quando saímos da Escola Naval e nos lançámos no turbilhão da vida, uns mais cedo que outros, seguimos caminhos muito diversos. Mas todos procurámos cumprir o melhor que sabíamos e podíamos, exactamente porque foi isso que nos ensinaram na Escola Naval. Para além das competências técnico-profissionais, ensinaram-nos a ser cidadãos, a fazer escolhas e a respeitar as escolhas dos outros.

Nem sempre fomos compreendidos e alguns foram penalizados por assumirem posições que entendiam coerentes com os valores e princípios aprendidos na Escola Naval. Mas todos, na Marinha e fora dela, fomos respeitados como profissionais e como cidadãos, precisamente por reconhecerem em nós esses valores e esses princípios.

Cadetes da Escola Naval,

Nesta celebração dos 50 anos do curso “Baptista de Andrade”, permitam que expresse um voto singelo: Que a passagem pela Escola Naval seja para vós tão fundamental e enriquecedora como foi para nós.

Viva a Escola Naval!

Viva a Marinha!

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Chimbança


Em 1910, os meus avós paternos, ela da freguesia do Arco de São Jorge no norte da Madeira e ele da freguesia de Gaula, cumpriram a sina de muitos portugueses e foram para Moçambique sem bilhete de regresso e em condições precárias, na busca de uma vida melhor. Por lá ficaram até ao fim das vidas, sem nunca esquecerem as raízes madeirenses.

A avó Isabel, uma mulher extraordinária que à semelhança da esmagadora maioria das meninas da sua geração foi condenada a uma baixa escolaridade, sempre me impressionou pela forma como usava as palavras para exprimir o que sentia. Tinha o dom invulgar de, nos momentos e nas circunstâncias certas, usar palavras que só ela conhecia, sem que isso diminuísse o respeito que suscitava nos interlocutores.

Não sabíamos se as inventava ou se as tinha aprendido com as gentes das mais variadas origens que conheceu ao longo da vida. Lembro-me, por exemplo, de a ouvir usar a palavra chimbança para se referir à altivez ou prosápia de outros e estava convencido que seria um termo adaptado de um dialecto moçambicano.

Só hoje, ao percorrer as páginas de um Vocabulário Madeirense descobri que, afinal, o trouxe da sua terra natal!

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Afinal havia outro

 

Esta de todos os anos andar a falar do 25 de Abril a jovens dos oito aos oitenta anos, obriga a ter um cuidado especial com o rigor histórico do que digo ou escrevo. Se é relativamente fácil falar do que vivi directamente (mesmo assim é preciso cuidado porque a memória humana é traiçoeira…), já falar de episódios em que não participei é muito complicado, obriga a recolher os testemunhos dos vários participantes e tentar chegar a uma narrativa coerente e historicamente tão rigorosa quanto possível. Neste processo acabo sempre por ter de aprofundar questões e factos a que antes não tinha dado atenção.

Este ano, no rescaldo da sessão comemorativa do 25 de Abril realizada na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara em que o meu amigo Diniz Borges evocou os valores de Abril e o cônsul de Portugal em San Francisco, Pedro Perestrelo Pinto, lembrou o papel do seu avô no dia 25 de Abril de 1974, fui questionado e obrigado a revisitar um dos muitos episódios que marcaram aquele dia e eu não tinha dado atenção.

O avô do cônsul Pedro Perestrelo Pinto, que também se chamava Pedro Pinto, mais exactamente Pedro Mourão de Mendonça Corte Real da Silva Pinto, era o Secretário de Estado da Informação e Turismo do governo de Marcello Caetano. De acordo com o esclarecimento que o cônsul Pedro Perestrelo Pinto me enviou na sequência de um comentário meu a um post do Diniz Borges sobre o evento na UC Santa Barbara, foi o seu avô que tomou a iniciativa de contactar Spínola para apelar a que assumisse o poder, que fez a ponte entre Spínola e Marcello Caetano que conduziu à transferência do poder e evitou, segundo ele, a eclosão da violência cujo risco seria elevado. Tratava-se do Dr. Pedro Pinto que vemos na imagem extraída de um documentário da CBS feito pouco tempo antes do 25 de Abril, onde realçava o sentido de missão dos portugueses que, mesmo sem mandato de ninguém, consideravam, na guerra em África, estar a defender o Ocidente.

Até esta troca de correspondência, por desatenção minha, só conhecia um mediador e negociador entre Spínola e Caetano, um outro Pedro Pinto, Feytor de nome do meio. Percebi agora que este Pedro Feytor Pinto era então director dos Serviços de Informação da Secretaria de Estado de Informação e Turismo e, portanto, subordinado de Pedro Pinto, secretário de Estado de Caetano e avô do Pedro Perestrelo Pinto, actual cônsul de Portugal em San Francisco.

Lembrava-me de ter visto imagens do seu aparecimento no Largo do Carmo com outro colega da Secretaria de Estado de Informação e Turismo quando o Salgueiro Maia estava prestes a iniciar a demolição do quartel-general da GNR a tiro de canhão. Lembrava-me também de ter lido entrevistas em que ele assumiu o papel de interlocutor entre «revoltosos» e «fiéis», que terá levado à rendição de Caetano no quartel do Carmo. A primeira de muitas, confirmei agora, foi logo a seguir ao dia 25, a uma rádio dinamarquesa (?), tendo depois saído no Século de 28/4/1974! Mas pouco mais sabia.

Claro que se eu tivesse dado importância ao que o Otelo Saraiva de Carvalho e o Salgueiro Maia publicaram sobre o episódio e, muito em especial, ao que o Rosado da Luz escreveu no livro “Operação Viragem Histórica” coordenado pelo Almada Contreiras e editado pela Colibri, saberia que afinal havia outro Pedro Pinto, o Secretário de Estado da Informação e Turismo que orientou os seus emissários a partir do restaurante do Grémio Literário onde tinha ido almoçar e não pôde sair porque o motorista que o ia buscar foi mandado parar por uma autometralhadora da EPC. Revistado enquanto a multidão gritava que deveria ser um agente da PIDE, foi-lhe encontrada uma arma. E não fosse a intervenção do Rosado da Luz, que o mandou ficar sossegado dentro do carro em frente à Bertrand durante 5 ou 6 horas, poderia ter sofrido algum dissabor.

Sobre a saga dos Pedros Pintos não vou elaborar mais, mas convido os interessados a lerem o excelente texto do Rosado da Luz, a partir da página 156 do “Operação Viragem Histórica”. Asseguro que vale a pena, quanto mais não seja porque está muito bem escrito. E para os que quiserem conhecer a versão do outro lado, leiam o livro do António Maria Pereira, futuro deputado do PSD na AR e membro do Comité Político da Assembleia Parlamentar da OTAN, que estava no Grémio Literário com o Secretário de Estado da Informação e Turismo de Caetano e conta alguns detalhes que não foram contemplados pelo Rosado da Luz. Ficarão a conhecer todo o episódio e a perceber como é que o Spínola, matreiro, jogou em todos os carrinhos e aproveitou aquela oportunidade, entre muitas outras, para dar o golpe dentro do golpe.

No entanto, não resisto a transcrever um pequeno excerto do texto do Rosado da Luz: “Os regimes são sempre feitos por pessoas e as pessoas aprendem e adaptam-se. Se as pessoas que detêm o poder forem as mesmas ou tiverem os mesmos interesses, bem podem rebaptizar os conceitos, bem podem mudar as palavras ou as formas, que os conteúdos, ou as realidades, não mudam.

E achei interessante que no último parágrafo do seu depoimento recorda a visita guiada que fez na manhã do dia 26 à sede da DGS/PIDE, acabada de ser ocupada pelos fuzileiros, na companhia do Luís Costa Correia. Uma outra saga de que só costumo falar em tertúlias reservadas com amigos ou com pessoas interessadas que me convidam para isso.

sábado, 23 de abril de 2022

Programa de Acção Política do Movimento de Oficiais das F.A.



Aparentemente, os responsáveis pelo regime derrubado em 25 de Abril de 1974 estavam convencidos que seriam apenas a liderança e as teses do general Spínola expressas no livro “Portugal e o Futuro”, teses aliás comungadas por sectores do regime próximos das cúpulas militares, que inspiravam o Movimento.

 
O desconhecimento ou desvalorização da existência de um programa político coerente, o “Programa do Movimento das Forças Armadas”, terão levado o regime a olhar para as movimentações dos jovens militares com menor cuidado.

 
O próprio general Spínola, a quem o programa foi apresentado com antecedência e nele fez cortes e introduziu alterações até merecer o seu acordo, terá provavelmente pensado que não passava de mais um papel e que depois do golpe prevaleceriam as suas teses, o seu projecto de poder pessoal e a sua rede de apoiantes.


Para ilustrar o processo de elaboração do programa do MFA, trago hoje uma referência ao bloco de apontamentos do então Major Melo Antunes, seu co-autor e principal redactor, guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Neste bloco, Melo Antunes escreveu à mão, em Março de 1974, uma exortação aos camaradas do Movimento e o que então designou por “Programa de Acção Política do Movimento de Oficiais das F.A.

 
Este programa foi depois discutido e melhorado com os contributos de outros oficiais do Movimento até se transformar no Programa do MFA que enquadrou politicamente as operações militares do dia 25 de Abril e foi publicado pelo jornal República no dia 26. Contudo esta versão, entregue pelo Martins Guerreiro na manhã de 25 como testemunho das intenções do Movimento no caso do golpe militar falhar, não foi ainda a versão final do Programa do MFA assinada pelo Presidente da Junta de Salvação Nacional, António de Spínola.


Na noite de 25 de Abril, terminado o essencial da operação "Viragem Histórica", os militares do Movimento que estavam no Posto de Comando da Pontinha foram surpreendidos com a proibição do general Spínola da distribuição de exemplares do Programa do MFA aos jornalistas, com o argumento de discordar do seu conteúdo. A discussão entre os generais da JSN e os oficiais do Movimento, prolongou-se pela madrugada do dia 26 de Abril e o documento, aprovado pelas duas partes, foi lido aos jornalistas, por volta das 8h30 da manhã.


Os pontos que causaram mais discussão foram os relacionados com a extinção da polícia política, a libertação dos presos políticos e a política ultramarina que deveria ser seguida pelo Governo Provisório. As relativas à libertação dos presos políticos e à neutralização da PIDE/DGS serviram para a atrasar até 27 de Abril; a eliminação da alínea onde constava o “Claro reconhecimento dos Povos à autodeterminação e adopção acelerada de medidas tendentes à autonomia administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efectiva e larga participação das populações autóctones”, causou dificuldades muito graves na resolução do problema colonial.


Note-se que o que foi cortado e alterado por Spínola na noite de 25 para 26 de Abril já constava do “Programa de Acção Política do Movimento de Oficiais das F.A.” manuscrito por Melo Antunes.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Conversa sobre o 25 de Abril

Um enorme bem-haja ao meu amigo Diniz Borges pela iniciativa de uma conversa sobre o 25 de Abril à escala do mundo lusófono, de Portugal à Califórnia.

Foi um prazer poder falar de Abril aos alunos do professor Diniz Borges na Universidade Estatual da Califórnia em Fresno e aos membros da comunidade luso-americana que tiveram a paciência de me ouvir durante uma hora e meia.

Penitencio-me pelo erro que cometi no final da conversa quando disse que o Destacamento de Fuzileiros Especiais que ocupou a sede da PIDE/DGS era comandado pelo Alves Gaspar. Quem de facto comandou o DFE que ocupou a PIDE/DGS  foi o hoje Almirante Vargas de Matos, como repetidamente tenho dito e escrito em várias instâncias.


 

terça-feira, 19 de abril de 2022

A arte da leitura

 

Em Setembro de 1939, quando as invasões da Polónia pelos exércitos da Alemanha e da União Soviética marcavam o início da Segunda Guerra Mundial, o filósofo norte-americano Mortimer Jerome Adler escrevia o prefácio do que viria a ser um dos grandes sucessos editoriais do século XX: o livro “How to Read a Book: The Art of Getting a Liberal Education”, editado pela Simon and Schuster, de New York, em 1940.

Escreveu então: “O título indica que me preocupo principalmente com a leitura de livros, mas a arte da leitura que descrevo aplica-se a qualquer tipo de comunicação. No ambiente de irrazoabilidade que paira sobre nós, pode fazer uso dela para ver através da propaganda dos Livros Brancos dos antagonistas e para lá das proclamações de neutralidade, e até mesmo para ler nas entrelinhas dos breves comunicados de guerra.

E explicou o subtítulo: “Numa democracia, devemos cumprir as responsabilidades de homens livres. A educação liberal é aqui um meio indispensável para este fim. Ela não só nos faz homens desenvolvendo as nossas mentes, como também as liberta, disciplinando-as. Sem mentes livres, não podemos agir como homens livres. Tentarei mostrar que a arte de ler bem está intimamente relacionada com a arte de pensar com clareza, crítica e livremente.

Após o sucesso da 1ª edição, Adler reviu o texto e publicou uma nova edição, em 1967, com o subtítulo “A Guide to Reading the Great Books”. Finalmente, em 1972, procedeu a uma grande revisão e actualização que desta vez publicou em parceria com o editor Charles Van Doren, com o subtítulo “TheClassic Guide to Intelligent Reading”. Foi essa edição do “How to Read a Book” que fez parte da minha formação como cidadão na década de 1970.

Na introdução da nova edição, Adler fez uma reflexão sobre os meios de comunicação social modernos, questionando se o seu advento melhorou a nossa compreensão do mundo em que vivemos. Escreveu então: “Talvez (hoje) saibamos mais sobre o mundo do que costumávamos saber (em 1940), e na medida em que o conhecimento é um pré-requisito para a compreensão, isso é bom. Mas não tanto como como comumente se supõe. Não precisamos de «saber» tudo sobre algo para o «entender»; factos a mais são frequentemente um obstáculo para a compreensão, tanto como o são factos a menos. Fica a sensação que nós, modernos, somos inundados de factos em detrimento da compreensão.

Uma das razões para essa situação é que os media modernos são concebidos de modo a fazer com que o pensamento pareça desnecessário (embora isso seja apenas uma aparência). O empacotamento de posições e pontos de vista é uma das mais brilhantes realizações de algumas das melhores mentes dos nossos dias. Ao espectador de televisão, ao ouvinte de rádio, ao leitor de jornais, é apresentado um conjunto complexo de elementos - desde uma retórica engenhosa até dados e estatísticas cuidadosamente seleccionados - para tornar mais fácil para ele «formar a sua própria opinião» com o mínimo de dificuldade e esforço.

Mas o empacotamento é muitas vezes feito de forma tão eficaz que o espectador, ouvinte ou leitor não toma nenhuma decisão. Em vez disso, ele introduz uma opinião empacotada na sua mente, mais ou menos como introduz uma cassete num leitor. Depois só carrega no botão e «reproduz» a opinião sempre que lhe parece apropriado fazê-lo. E assim tem um desempenho socialmente aceitável sem precisar de pensar.

No ambiente de irrazoabilidade que de novo paira sobre nós, a reflexão de Adler mantém-se tão oportuna como há cinco décadas.


sexta-feira, 8 de abril de 2022

O Comércio do Funchal

 

O Comércio do Funchal (CF), com o Jornal do Fundão, foram os dois jornais regionais que marcaram o processo de politização de muita gente da minha geração. Só conheci o CF na Escola Naval, provavelmente apresentado pelo meu camarada e amigo madeirense Agostinho Ramos da Silva, mas lembro-me que o lia com interesse, em particular os artigos sobre a actualidade internacional, isto num jornal regional.

O CF foi (re)lançado em 1966, usando o título de um jornal sem leitores que se publicava na Madeira desde 1934. No Portugal de Salazar, um grupo de jovens amigos ligados por ideais comuns e experiências jornalísticas de adolescência, conseguiu que o CF (sigla adoptada posteriormente para diluir a conotação comercial do título) que imprimiram em papel cor-de-rosa para sublinhar a diferença e porque na altura era o mais barato do mercado, se transformasse num sucesso, chegando a vender 15 mil exemplares.

Como quase tudo em Portugal, houve o CF de antes e o CF de depois do 25 de Abril de 1974. O segundo não teve vida longa, o último número foi publicado em 24 de Abril de 1976, e confesso que não lhe dei grande atenção no turbilhão que passou a ser a imprensa do período revolucionário. Sobre o primeiro tenho várias recordações e por isso resolvi revisitar o CF da IV série. N.º 2247, curiosamente com a data de 25 de Abril de 1974 e cobrindo a semana até 1 de Maio de 1974. Pode ser consultado e descarregado na HemerotecaDigital da Câmara Municipal de Lisboa.

O número do CF de 25 de Abril de 1974 não faz qualquer referência nem foi influenciado pela Operação Viragem Histórica. Foi escrito e imprimido antes da vitória do MFA e por isso documenta bem o que era o CF na ditadura.

Por se considerar “o único órgão anti-fascista da imprensa regional” e tudo fazer para honrar essa caracterização, o CF tinha naturalmente problemas com a censura. Estou convencido que os censores não entendiam os debates ideológicos e as reflexões indirectas sobre a guerra colonial, mas mesmo assim eram implacáveis e tudo faziam para dificultar o trabalho dos colaboradores, na generalidade “pro bono”.

O número de 25 de Abril de 1974 trazia desde logo três trabalhos que denunciavam as preocupações políticas e sociais do jornal: um sobre a Indústria Vidreira com testemunhos de operários da Marinha Grande, outro sobre a Indústria de Pesca e “Os armadores, o gasóleo e os pescadores” com homens do mar de Setúbal e o terceiro sobre os bairros “marginais” das grandes cidades, habitados por uma população que procurava fugir à pobreza do Portugal rural e interior.

Depois lá está página de análise das eleições francesas por Vicente Jorge Silva e as tradicionais polémicas ideológicas tão comuns nos jornais progressistas da época, neste caso com um texto de Fernando Piteira Santos que os censores, ao verem a abundância de frases latinas, de certeza não leram. Assim como não terão dado importância à divulgação da Nota da DGS que dava conta da prisão de 15 indivíduos em Lisboa e 15 no Porto por incitarem “a acções revolucionárias no 1º de Maio” contra o “esforço da Nação em defesa dos territórios portugueses no Ultramar” e “a defesa das organizações terroristas que nos atacam e dos métodos que empregam, com os quais criminosamente se solidarizam”, dos dados completos de identificação dos militares mortos na guerra entre 15 e 23 de Abril de 1974 extraídos dos comunicados oficiais, ou da transcriação a negrito da referência do Comando-Chefe das Forças Armadas de Angola que em Março “as baixas sofridas pelas nossas forças totalizaram 12 mortos e 20 feridos”.

Para mim foi particularmente saboroso ler as “Passagens do discurso do Ministro do Interior Dr. Moreira Baptista na cerimónia de posse do novo Governador Civil do Porto Dr. Mário Valente Leal”. O governante marcelista recordou a sua passagem por um liceu do Porto, num “momento da vida nacional politicamente muito agitado”. Disse ele que “Os espíritos andavam perturbados, as propagandas desenfreadas, e os conluios e conspirações faziam-se e desfaziam-se ao sabor das manobras dos que ambicionavam travar o passo ao ressurgimento nacional que, então, se iniciava”. E lembrou que “Foi na altura em que, na Madeira, eclodiu uma intentona que marcaria o fim do aventureirismo de uns quantos que, por essas épocas, intentavam usar as forças armadas procurando fazê-las intervir em dissidências da política que nada tinha a ver com os autênticos interesses da Nação”, numa alusão clara ao falhanço do 16 de Março, sem suspeitar do destino próximo do regime.

Mas acima de tudo apreciei a publicação em página inteira da «Conclamação de universitários à juventude portuguesa intitulada «Autêntico Sentido da Grandeza Lusa» feita pelo «Centro Cultural Reconquista» com sede em Coimbra. Nela os signatários António Carlos de Azeredo e Simão Pedro de Aguiã conclamavam a continuação da defesa da "Civilização Cristã, que esquerdistas e comunistas querem extirpar," e apelavam os jovens portugueses a "insurgirem-se contra os móveis, obviamente censuráveis e maus, da campanha oposta à união das províncias do Ultramar à Metrópole" e a "formar fileiras, mais do que nunca, em torno da bandeira portuguesa, num protesto veemente contra essa fermentação antilusa."


segunda-feira, 4 de abril de 2022

Memória profissional

Ao mexer em papéis antigos, encontrei este quadro de cores dos encanamentos das fragatas da classe "Vasco da Gama". Pouco dirá à maioria dos leitores desta publicação, mas está ligado a um período muito especial da minha vida profissional e por isso decidi reproduzi-lo.

A aquisição e construção das fragatas da classe Vasco da Gama provocou uma verdadeira revolução na engenharia naval militar portuguesa. O salto tecnológico que aqueles navios induziram foi um enorme desafio para quem estava no centro das discussões e decisões técnicas, como foi o caso do grupo de quatro oficiais em que me incluía e que, a partir do final de 1986, discutiu com o estaleiro alemão e os fornecedores, a especificação contratual da plataforma dos navios e dos seus sistemas electrónicos e electromecânicos.

Muitas das tecnologias, dos conceitos e dos sistemas dos navios eram novidade para a nossa Marinha e foi preciso rever muitas práticas e definir até coisas muito simples como, por exemplo, as cores das fitas adesivas que iriam ser usadas para identificar os encanamentos do navio em função do sistema a que pertenciam e do fluido que transportavam.

Pois este foi o desenho produzido com uma das primeiras versões do AutoCad, num caríssimo computador desktop Zenith Z-286 com 640kb de RAM e um gigantesco disco de 20 Mb, e num plotter de canetas Roland. Foi a forma expedita de produzir um documento discutido por meia dúzia de “especialistas” do Gabinete de Estudos que se substituíram ao moroso processo de normalização e que foi entregue ao estaleiro Blohm+Voss como a norma da Marinha portuguesa.

Para os colegas engenheiros navais, poderá ser interessante comparar o nosso trabalho de 1986 com a norma ISO 14726 que mais de uma década depois normalizou as cores das fitas adesivas de identificação dos encanamentos dos navios. Não ficámos muito longe…

 

domingo, 6 de março de 2022

Recordação

 

Em 1975 e 1976 estive embarcado na corveta “António Enes” sob o comando do Comandante Francisco Duarte Costa. Foi um período muito rico do ponto de vista profissional mas politicamente agitado, primeiro no Continente e depois nos Açores.

Chegámos a Ponta Delgada na véspera da manifestação de 17 de Novembro de 1975, em princípio uma reedição da manifestação de 6 de Junho. A informação que tínhamos era que a FLA tencionava declarar a independência hasteando a bandeira no palácio do governador. Depois de um Verão agitado no Continente, caímos no centro do movimento independentista que estava muito activo em São Miguel e, em especial, em Ponta Delgada.

Embora os activistas da FLA, ou do que resta dela, ainda hoje digam que saíram para a rua umas 15 mil pessoas (no 6 de Junho teriam participado 10 mil), os objectivos políticos não foram atingidos. A bordo da corveta estávamos preparados para usar as mangueiras de incêndio como dissuasor caso houvesse uma provocação, mas nada de extraordinário aconteceu para as bandas do porto de mar.

Depois desta estreia atribulada, a agitação política em Ponta Delgada foi acalmando e conseguíamos fazer uma vida quase normal sempre que por lá passávamos. A guarnição tinha instruções para evitar dois cafés frequentados por provocadores da FLA, o Lys e o Royal, para evitar confrontos, mas não me recordo de qualquer incidente grave.

Ultrapassados os poucos episódios desagradáveis em Ponta Delgada (era o tempo das pichagens “Fragatas fora dos Açores”), aproveitávamos todos os períodos em terra para conhecer as ilhas, as suas gentes e a sua cultura.

E hoje, quarenta e seis anos depois, o Comandante Duarte Costa decidiu enviar-me a cópia de uma página do seu arquivo pessoal onde aparece a foto de um passeio à Ribeira Grande, tirada pelo Ten. Ortigão Neves. Para além do Comandante Duarte Costa à direita da foto, lá está o Imediato Patrício Leitão a engraxar os sapatos e eu.

Magnífica recordação!


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

O alienígena


O homem tem a minha idade mas não viveu no mesmo tempo que eu. Desconfio mesmo que não viveu no mesmo país e no mesmo mundo que eu. Apesar de falar a mesma língua que eu e ter o cartão de cidadão português, há uma forte probabilidade de ter vindo de um outro planeta ou, quem sabe, de uma outra galáxia. Porque só um alienígena poderia pensar que a cor de origem dos portugueses é branca e a nossa "raça" é caucasiana.

Só um alienígena não sabe o que se dizia nos EUA sobre os portugueses ou, para ser mais exacto, sobre os “Portagees”, um grupo étnico mais ou menos “colored”, muito tosco, longe da sofisticação dos “white Anglo Americans”, e retratado nas personagens Rosa Martin e Big Joe Portagee do romance “Tortilla Flat”, o primeiro sucesso literário de John Steinbeck cuja acção se desenrola na Califórnia.

Só um alienígena desconhece o ódio que sentiram os portugueses na Nova Inglaterra, onde para além do argumento religioso, havia um outro: o racismo. Mesmo no poema inocente de Alma Martin sobre Provincetown, “The Heavenly Town”, a questão da cor é realçada:
“(...)
Dark Portuguese
From far-off seas
Their ships in bay
Pass time of day
(…)
Dark laughing boys,
Dark smiling girls,
With here and there a native son,
With blue eyes full of Yankee fun.
(...)”

Só um alienígena não sabe que para uma mulher que nasceu e vive na Malásia e se orgulha de ser portuguesa, alguém com a minha cor de pele é demasiado branco para ser português. E não sabe que portugueses são todos os que se encontrei pelo mundo fora e se sentiam como tal, fosse qual fosse o lugar onde nasceram ou cresceram, a sua nacionalidade, a sua cor de pele ou a sua “raça”.

Só um alienígena não sabe que portugueses são os milhões cujas pátrias de pertença foram construídas, independentemente das características étnicas do povo de onde nasceram e entre o qual cresceram, com uma cultura que muitas vezes apenas conhecem pelo que lhes foi transmitido pelos pais e avós, com uma religião professada tanto pelos que rezam na igreja de São Pedro em Malaca como na igreja das Cinco Chagas em São José na Califórnia, com uma língua que muitos mal conhecem mas que é a dos seus antepassados. Pátrias de que gostam embora muitas vezes delas só tenham a imagem que Miguel Torga descreveu de “uma nesga de terra debruada de mar”, frequentemente desfocada ou imaginada de uma serra transmontana, de uma planície alentejana, de uma caldeira açoriana ou de uma fajã madeirense.

Só um alienígena pode ter orgulho da pátria única da ditadura, a pátria da minha infância a papaguear os rios e as linhas de caminho-de-ferro de uma Metrópole desconhecida numa escola de Quelimane, a pátria da infância dos meninos das ilhas e das colónias que viram cartazes a proclamar “Aqui também é Portugal!” durante visitas de presidentes vindos de longe e recebidos com pompa e circunstância, a pátria dos meninos homens como o meu avô que se alistaram para fugir à pobreza e foram combater uma guerra distante, a pátria que roubou a saúde e a vida dos milhares e milhares de jovens que combateram nas matas africanas, a pátria que não foi ditosa e foi madrasta para gerações de portugueses, empurrados para outros lugares em busca de melhores condições de vida.

E é por poder ser um alienígena e poder constituir uma ameaça para os Portugueses, que o homem deve ser considerado perigoso e tratado com todas as cautelas.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Raízes

 

Escola Primária de Palhais, Vilar, Cadaval. 1959/60

O miúdo nasceu em Lourenço Marques, Moçambique. Em Inhambane, fez as duas primeiras classes num ano e depois a terceira, com exame como então se usava. Quando o pai foi transferido para a Zambézia, fez a quarta classe em Quelimane, com aprovação no respectivo exame.
 
Uma doença grave obrigou pai a vir para Portugal, com a família, para ser tratado no hospital do Ultramar, em Lisboa. Como o miúdo só tinha nove anos, não pôde fazer o exame de admissão ao liceu na metrópole. 

Ficou um ano a marcar passo e o porto de abrigo foi a casa dos avós maternos em Palhais, uma aldeia no sopé da serra de Montejunto, e a escola da D. Fernanda. Uma escola onde partilhou a sala de aula e a professora com 28 crianças das quatro classes do ensino primário. Uma experiência extraordinária que o marcou para sempre, mesmo depois de vir para o liceu em Lisboa.

Palhais passou a ser a segunda terra do miúdo, o local onde tinha os amigos e para onde voltava nas férias escolares, em especial nas do Verão. Era o território das aventuras, das cumplicidades, dos bailaricos e das descobertas. Não perdia uma corrida de bicicletas das muitas que se realizavam nas localidades à volta, quase sempre com o ídolo João Roque. Percorreu de bicicleta todas as estradas e caminhos das redondezas. Era o lugar das amizades puras, onde sempre se sentiu e foi sentido como “filho da terra”.

Daquele ano lectivo de 1959/60 na escola de Palhais, guardou uma fotografia da professora e dos colegas. Não se lembra em que circunstâncias foi tirada mas é uma recordação com um valor incalculável.
 
Nesse ano só o miúdo foi para o liceu. Nos anos seguintes, alguns, poucos, continuaram os estudos liceais, mas a maioria teve de ir trabalhar depois da 4ª classe e muitos acabaram por emigrar para a América ou a Europa. O afastamento e a memória fizeram com que esquecesse o nome de alguns.

Hoje a filha Joana enviou-lhe a fotografia com a identificação da maioria dos colegas. A Maria Júlia deu-se ao trabalho de os identificar, o que foi uma excelente prenda para o miúdo. 


Para os mais atentos será certamente estranho que muitos dos miúdos da fotografia tenham o mesmo apelido: Tojeira. A explicação é que não é apelido, é a terra onde viviam.

Tojeira é uma aldeia a cerca de 2 quilómetros de Palhais e todas as crianças de lá tinham de fazer o trajecto a pé, por caminhos agrícolas, com muita chuva e frio no Inverno, todos os dias. Ao chegarem à escola descalçavam as botas molhadas e enlameadas e calçavam chinelos de pano, como todos os outros.

Quanto ao miúdo, lá está identificado como Jorge B., ao lado da D. Fernanda. Só B. para não se confundir com o outro Jorge, o Caetano, mas também porque não vale a pena lembrar as outras raízes do miúdo. 

Para os que com ele partilham as raízes no sopé da serra de Montejunto, o miúdo será sempre e só, o Jorge.