sexta-feira, 8 de abril de 2022

O Comércio do Funchal

 

O Comércio do Funchal (CF), com o Jornal do Fundão, foram os dois jornais regionais que marcaram o processo de politização de muita gente da minha geração. Só conheci o CF na Escola Naval, provavelmente apresentado pelo meu camarada e amigo madeirense Agostinho Ramos da Silva, mas lembro-me que o lia com interesse, em particular os artigos sobre a actualidade internacional, isto num jornal regional.

O CF foi (re)lançado em 1966, usando o título de um jornal sem leitores que se publicava na Madeira desde 1934. No Portugal de Salazar, um grupo de jovens amigos ligados por ideais comuns e experiências jornalísticas de adolescência, conseguiu que o CF (sigla adoptada posteriormente para diluir a conotação comercial do título) que imprimiram em papel cor-de-rosa para sublinhar a diferença e porque na altura era o mais barato do mercado, se transformasse num sucesso, chegando a vender 15 mil exemplares.

Como quase tudo em Portugal, houve o CF de antes e o CF de depois do 25 de Abril de 1974. O segundo não teve vida longa, o último número foi publicado em 24 de Abril de 1976, e confesso que não lhe dei grande atenção no turbilhão que passou a ser a imprensa do período revolucionário. Sobre o primeiro tenho várias recordações e por isso resolvi revisitar o CF da IV série. N.º 2247, curiosamente com a data de 25 de Abril de 1974 e cobrindo a semana até 1 de Maio de 1974. Pode ser consultado e descarregado na HemerotecaDigital da Câmara Municipal de Lisboa.

O número do CF de 25 de Abril de 1974 não faz qualquer referência nem foi influenciado pela Operação Viragem Histórica. Foi escrito e imprimido antes da vitória do MFA e por isso documenta bem o que era o CF na ditadura.

Por se considerar “o único órgão anti-fascista da imprensa regional” e tudo fazer para honrar essa caracterização, o CF tinha naturalmente problemas com a censura. Estou convencido que os censores não entendiam os debates ideológicos e as reflexões indirectas sobre a guerra colonial, mas mesmo assim eram implacáveis e tudo faziam para dificultar o trabalho dos colaboradores, na generalidade “pro bono”.

O número de 25 de Abril de 1974 trazia desde logo três trabalhos que denunciavam as preocupações políticas e sociais do jornal: um sobre a Indústria Vidreira com testemunhos de operários da Marinha Grande, outro sobre a Indústria de Pesca e “Os armadores, o gasóleo e os pescadores” com homens do mar de Setúbal e o terceiro sobre os bairros “marginais” das grandes cidades, habitados por uma população que procurava fugir à pobreza do Portugal rural e interior.

Depois lá está página de análise das eleições francesas por Vicente Jorge Silva e as tradicionais polémicas ideológicas tão comuns nos jornais progressistas da época, neste caso com um texto de Fernando Piteira Santos que os censores, ao verem a abundância de frases latinas, de certeza não leram. Assim como não terão dado importância à divulgação da Nota da DGS que dava conta da prisão de 15 indivíduos em Lisboa e 15 no Porto por incitarem “a acções revolucionárias no 1º de Maio” contra o “esforço da Nação em defesa dos territórios portugueses no Ultramar” e “a defesa das organizações terroristas que nos atacam e dos métodos que empregam, com os quais criminosamente se solidarizam”, dos dados completos de identificação dos militares mortos na guerra entre 15 e 23 de Abril de 1974 extraídos dos comunicados oficiais, ou da transcriação a negrito da referência do Comando-Chefe das Forças Armadas de Angola que em Março “as baixas sofridas pelas nossas forças totalizaram 12 mortos e 20 feridos”.

Para mim foi particularmente saboroso ler as “Passagens do discurso do Ministro do Interior Dr. Moreira Baptista na cerimónia de posse do novo Governador Civil do Porto Dr. Mário Valente Leal”. O governante marcelista recordou a sua passagem por um liceu do Porto, num “momento da vida nacional politicamente muito agitado”. Disse ele que “Os espíritos andavam perturbados, as propagandas desenfreadas, e os conluios e conspirações faziam-se e desfaziam-se ao sabor das manobras dos que ambicionavam travar o passo ao ressurgimento nacional que, então, se iniciava”. E lembrou que “Foi na altura em que, na Madeira, eclodiu uma intentona que marcaria o fim do aventureirismo de uns quantos que, por essas épocas, intentavam usar as forças armadas procurando fazê-las intervir em dissidências da política que nada tinha a ver com os autênticos interesses da Nação”, numa alusão clara ao falhanço do 16 de Março, sem suspeitar do destino próximo do regime.

Mas acima de tudo apreciei a publicação em página inteira da «Conclamação de universitários à juventude portuguesa intitulada «Autêntico Sentido da Grandeza Lusa» feita pelo «Centro Cultural Reconquista» com sede em Coimbra. Nela os signatários António Carlos de Azeredo e Simão Pedro de Aguiã conclamavam a continuação da defesa da "Civilização Cristã, que esquerdistas e comunistas querem extirpar," e apelavam os jovens portugueses a "insurgirem-se contra os móveis, obviamente censuráveis e maus, da campanha oposta à união das províncias do Ultramar à Metrópole" e a "formar fileiras, mais do que nunca, em torno da bandeira portuguesa, num protesto veemente contra essa fermentação antilusa."


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