sexta-feira, 19 de março de 2021

O denunciante


Foi talvez o que mais estranhei. Para quem vinha do país dos “brandos costumes”, de gentes que “não querem confusões nem conflitos”, que dizem que “não se metem na vida dos outros” e que nunca viram nem sabem o que se passou, tive de me habituar a uma sociedade onde muitos, não sei se a maioria, aprendem desde tenra idade a comportarem-se como um híbrido de professor e polícia. Sempre que alguém não cumpre as regras, seja por fazer barulho em casa, atravessar uma rua fora da passadeira ou caminhar na faixa do passeio destinada às bicicletas, lá aparece um alemão carrancudo para dar uma descasca e o pôr na ordem.

Muitos alemães entendem que têm o direito, e provavelmente a obrigação, de ensinar a lei e as regras aos outros e de lhes impor o seu cumprimento. Nunca me habituei a tal comportamento e sempre que podia, revoltava-me. Com a ênfase com que, por exemplo, despachei, em português pouco suave, o hausmeister que às dez horas de uma noite de Natal, durante a ceia, nos veio lembrar que a partir daquela hora não podíamos fazer barulho. Por mais que tentasse racionalizar e compreender aquele traço cultural, nunca consegui dissociar o destino de muitas das vítimas do nazismo do comportamento policial e desumano dos seus vizinhos e conhecidos.

Claro que eu sabia que na terra dos brandos costumes de onde tinha vindo também havia muita gente que se metia na vida dos outros. Os arquivos da Pide estavam cheios de exemplos de quem prejudicou vizinhos, colegas, amigos e até familiares a pretexto da manutenção da ordem e a bem da Nação. Mas mantinha a ilusão de que por cá as coisas eram diferentes e os portugueses, apesar de tudo, portavam-se melhor que os alemães.

Infelizmente, trinta anos depois, sou obrigado a reconhecer que os portugueses são, ou estão cada vez mais, parecidos com os alemães. Denunciam os outros às autoridades policiais e administrativas por tudo e por nada, de uma forma até mais desprezível do que a chamada de atenção do hausmeister de Hamburgo. Fazem-no anonimamente, cobardemente, muitas vezes por inveja, para prejudicar os outros, mas sempre e alegadamente em defesa do bem público. E as autoridades aceitam e dão-lhes cobertura. Ainda há dias os proprietários de um estabelecimento comercial contavam-me que durante a pandemia, o seu e outros estabelecimentos da rua eram frequentemente visitados por polícias em consequência de denúncias de irregularidades que não se confirmavam.

Muito provavelmente, um dos efeitos da pandemia foi ter tornado os portugueses mais parecidos com os alemães. Infelizmente, apenas no que eu mais desprezava neles.