quinta-feira, 27 de maio de 2021

O outro Bérrio

 


Assisti à "grande entrevista" do ministro da Defesa João Gomes Cravinho à RTP3 com a atenção que ainda dedico aos assuntos de uma área onde trabalhei durante a maior parte da minha carreira profissional. 

Confesso que as minhas expectativas relativamente às entrevistas ministeriais são normalmente muito baixas e esta esteve dentro do esperado, não trouxe nada de novo. Contudo, surpreendeu-me a atenção dada à Marinha, não é habitual um ministro aventurar-se nos detalhes do seu funcionamento. Deixo os comentários ao que foi dito para os camaradas mais bem informados do que eu sobre a situação actual da Marinha, mas não resisto a apontar duas afirmações que me fizeram voltar ao tempo em que nela prestei serviço.

A primeira foi que com a aprovação em conselho de ministros da “possibilidade de encomenda” de seis novos navios de patrulha oceânicos, ficaremos com a Marinha mais bem equipada que alguma vez tivemos. Andou tanta gente a trabalhar duramente para obter financiamentos e para construir e manter navios que satisfizessem as necessidades mínimas da Marinha e afinal a solução era tão simples: bastava reunir um conselho de ministros e aprovar uma possibilidade de encomenda!

A segunda foi que a Marinha teria previsto que o Bérrio "estaria em condições, viveria", disse o ministro, até 2028 ou 29. Tendo em conta a minha experiência pessoal, tenho dificuldade em admitir tal possibilidade e só vejo duas hipóteses: alguém mentiu ao ministro ou havia outro Bérrio que não aquele que fui buscar a Inglaterra em 1993 e depois fui responsável pela sua manutenção.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

"Café Milhafre"

 

O romance de João de Melo "Livro de Vozes e Sombras" (Dom Quixote, 2020), descreve o ambiente do independentismo açoriano que conheci quando servi nos Açores entre 1975 e 1977. A corveta onde estava embarcado chegou a Ponta Delgada na véspera da manifestação de 17 de Novembro de 1975, em princípio uma reedição da de 6 de Junho. A informação que tínhamos era que a FLA tencionava declarar a independência hasteando a bandeira no palácio do governador. Depois de um Verão agitado no Continente, caímos de repente no centro do movimento independentista que estava muito activo em São Miguel e, especialmente, em Ponta Delgada.

Embora os activistas da FLA, ou do que resta dela, continuem a dizer que em Novembro saíram para a rua umas 15 mil pessoas (no 6 de Junho teriam participado 10 mil), os objectivos políticos não foram atingidos. A bordo da corveta estávamos preparados para usar as mangueiras de incêndio como dissuasor caso houvesse uma provocação, mas nada de extraordinário aconteceu para as bandas do porto de mar. Depois desta estreia atribulada, a agitação política em Ponta Delgada foi acalmando e conseguíamos fazer uma vida quase normal sempre que por lá passávamos. A guarnição tinha instruções para evitar dois cafés frequentados por gente da FLA, o Lys e o Royal, para evitar provocações e eventuais confrontos, mas de resto era possível movimentarmo-nos em Ponta Delgada sem qualquer restrição.

Acontece que João de Melo conta um episódio que apesar da advertência de “que não devam as personagens deste livro associar-se a pessoas reais, conhecidas ou não”, não pude deixar de reconhecer traços familiares no "Capitão de Abril" que foi sozinho ao “Café Milhafre, a dois passos da doca”, pedir aos da FLA o favor de lhe dizerem o que pretendiam dele. Em cerca de três páginas, João de Melo dá-nos conta de como os planos de expulsar um "Capitão de Abril" que era visto como a “personificação simbólica e maldita do domínio colonial” português, se desfizeram em poucos minutos, apenas porque os executores se viram confrontados, cara a cara, com a eventual vítima.

Não tenho qualquer dúvida que o autor se inspirou num episódio protagonizado por Salgueiro Maia e ocorrido em 1976 ou 77, quando nos encontrámos em Ponta Delgada, estava eu já embarcado numa outra corveta. Só não estou certo do local onde ocorreu mas julgo que o “Café Milhafre” terá sido o nosso conhecido Café Royal.