quinta-feira, 30 de março de 2017

Carta de um jovem de Abril a um jovem de Hoje



Inspirada pelo André, pela Beatriz, pela Carolina, pela Íris, pelo Lucas, pela Mafalda e por todos os jovens do projecto “ABRIL HOJE” da Escola Básica e Secundária de Carcavelos. 
E pelo meu Pai.


Caro Jovem de Hoje,

Se em 1965, quando andava no 6º ano do liceu, correspondente ao teu 11º ano, me tivessem pedido para identificar cinco preocupações ou problemas que me afectavam, não sei o que responderia. É difícil voltar mais de 50 anos atrás mas penso que provavelmente falaria da guerra para onde alguns amigos mais velhos já tinham sido chamados, das restrições ao convívio com as meninas dos liceus femininos (sim, havia escolas só para rapazes e escolas só para raparigas!), da dificuldade de comprar discos dos Beatles ou de ver os filmes proibidos ou cortados pela censura, coisas que hoje não te dizem nada.

Desemprego, provavelmente não me lembraria de indicar. Até porque eu, graças ao esforço e sacrifício dos meus avós e dos meus pais, era um privilegiado. Fazia parte dos cerca de 9% de jovens portugueses da minha geração que completaram o secundário. Num país em que mais de 30% da população não sabia ler nem escrever e em que a faixa etária dos 25 aos 34 anos era a menos qualificada da OCDE, pertencia a uma minoria para a qual o emprego estava garantido, fosse logo à saída do liceu ou fosse mais tarde, à saída da universidade, concluída por uma minoria ainda mais reduzida, de cerca de 1%. Mas se a pergunta tivesse sido feita aos amigos que completaram comigo a 4ª classe na escola primária de uma aldeia do Oeste a 90km de Lisboa e que, ao contrário de mim, não continuaram a estudar porque tiveram de ir trabalhar no campo (a maioria) ou na indústria (um ou dois), é provável que indicassem a falta de trabalho ao longo de todo o ano ou o trabalho mal remunerado como a sua maior preocupação. Aliás julgo que quase todos acabaram por emigrar para o Canadá, para França, para a Alemanha, na busca de trabalho e de condições de vida mais dignas.

Para os que como eu fizeram todo o percurso desde a primária até ao “canudo” do ensino superior, o emprego era um dado adquirido. Não o via como uma garantia para toda a vida como hoje o descrevem, mas como a possibilidade de exercer uma profissão que assegurava a subsistência pessoal e da família ao longo da vida. Havia quem o fizesse no Estado, outros escolhiam o sector privado, outros experimentavam ambos, mas é certo que, em regra, uma vez contabilista, professor, advogado, médico, engenheiro, militar, etc., o caminho era tentar ser o melhor na profissão escolhida, fossem qual fossem as circunstâncias em que a exercesse.

Em 1974, como jovem militar, aderi ao Movimento que derrubou a ditadura em 25 de Abril. Sonhei com a liberdade e a democracia para Portugal e com melhores condições de vida para o seu povo. Com os camaradas de armas que partilhavam o mesmo sonho, interviemos civicamente e tentámos dar o nosso contributo na revolução. Profissionalmente, continuei a acumular múltiplas e diversas experiências, como camadas que se foram sobrepondo e fundindo, formando um corpo único. Ser aluno e mais tarde professor do Técnico, fazer uma pós-graduação nos Estados Unidos, ser oficial de Marinha, navegar por diferentes oceanos e continentes, viver períodos longos em países da Europa e da América, ser engenheiro projectista e de produção, coordenar e fiscalizar obras em estaleiros portugueses, alemães e britânicos, dirigir equipas e projectos de engenharia naval e de tecnologias de informação, negociar contratos com empresas e organizações de todo o mundo, trabalhar na administração pública e em empresas públicas e privadas, ser um pequeno empresário, fizeram de mim o que sou hoje e autorizam que te escreva esta carta, a ti jovem de 2017 que estás preocupado com o desemprego.

Mas compreendo que perguntes o que é que alguém que quando jovem não se preocupou com o emprego e que quando adulto beneficiou do apogeu do Estado social, pode dizer de útil a um jovem de hoje, ameaçado pela ausência e precariedade do emprego e pelo colapso da segurança social. De facto, devo desde já dizer que não tenho solução para o teu problema. Já lá vai o tempo em que acreditei em utopias e em soluções fáceis. Hoje tento estudar e debater os problemas com jovens como tu e com isso espero que consigam encontrar as soluções mais adequadas. Aliás não faço nada de original. Há 50 anos houve outros, mais velhos do que eu e com experiências de vida bem diferentes das minhas, que debateram comigo os problemas que então me preocupavam e me ajudaram a fazer as escolhas e a encontrar os caminhos que depois trilhei para os resolver. Se o mesmo acontecer contigo, ficarei muito satisfeito.

Mas antes de ir mais longe quero contar-te uma história. A história de um jovem nascido em Moçambique nos anos vinte do século passado que vamos encontrar no liceu Camões, em Lisboa, nas aulas de Química do 7º ano, actual 11º, do professor Rómulo de Carvalho (sim, o poeta António Gedeão da Pedra Filosofal). Era filho de um casal de madeirenses que três ou quatro anos antes da primeira Grande Guerra cumpriram a sina de muitos portugueses, deixaram a ilha natal e emigraram para Moçambique para fugir à pobreza e procurar uma vida melhor. O pai teve vários empregos, foi colocado na ilha de Moçambique e mobilizado para combater os alemães no norte da província ultramarina até que estabilizou como funcionário dos correios na capital. A mãe, uma lutadora, criou os filhos, uma menina e quatro rapazes, e fazia o possível e o impossível para dilatar o magro ordenado do marido. Com os negócios que inventava, conseguiu mandar três filhos para a metrópole para tirarem cursos superiores. Medicina ou engenharia, queria ela. Os mais velhos fizeram-lhe a vontade e matricularam-se no Técnico. O nosso jovem, excelente aluno, decidiu ser diferente e escolheu Agronomia, o que não lembraria a ninguém. A mãe dizia que ele iria ser “engenheiro das nabiças” mas não deixou de apoiar a escolha. Terminou o curso de engenheiro agrónomo em 1948 e foi estagiar na Junta de Hidráulica Agrícola, no projecto de Idanha-a-Nova. Terminado o estágio ficou desempregado e regressou a Moçambique.

Concorreu aos Serviços de Agricultura e depois de meses de espera, foi admitido na Secção de Hidráulica Agrícola. Quando ocorreu um problema no vale do rio Incomáti, encarregaram-no de ir à Manhiça saber o que se passava. Elaborou um projecto de enxugo e rega para uma parcela do vale mas não o pôde executar por falta de financiamento e vontade política. Convencido que a burocracia de Lourenço Marques nunca o deixaria fazer obra válida, pediu transferência para Inhambane para estudar e trabalhar a cultura do café racemosa, espécie espontânea no litoral arenoso de Moçambique. Aí dedicou‑se de corpo inteiro a apoiar os pequenos agricultores que encontravam na cultura do café uma alternativa às culturas do algodão, caju, chá, sisal, arroz e cana-de-açúcar, impostas pela administração colonial. Para estas culturas, cabia às empresas concessionárias, protegidas pelo Estado colonial, a organização de mercados de venda e o monopólio da compra do produto final. Em Moçambique o café escapava a estes circuitos monopolistas e durante alguns anos o mercado funcionou normalmente. O nosso jovem agrónomo foi instalando de raiz estações experimentais a centenas de quilómetros de casa, primeiro na Malamba, a sul de Inhambane, e depois no Gurué, na Zambézia, para o arábica, quando foi transferido para Quelimane. Produzia e distribuía sementes aos fazendeiros e agricultores que assumiam por inteiro todo o circuito de produção e venda do café. Claro que esta situação era intolerável para os poderes coloniais e em 1958 a cultura do café foi proibida em Moçambique. Quem quisesse trabalhar em café, que fosse para Angola!

O nosso agrónomo entregou toda a obra feita e preparou-se para mudar para Angola. Mas a destruição abrupta de mais de uma década de trabalho intenso afectou-o, física e psicologicamente, e adoeceu gravemente. Depois de quase um ano de tratamento em Portugal, recuperou mas viu-se de novo à procura de emprego. Dada a sua experiência na cultura do café, conseguiu um trabalho precário no Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro, uma instituição científica sediada em Oeiras que se dedica ao melhoramento genético das plantas com o objectivo de encontrar variedades produtivas e resistentes às pragas e doenças que atacam as plantações nos países produtores de café. Consolidou e expandiu as suas competências com o trabalho para o Instituto do Café de Angola, com o qual tinha uma ligação administrativa, e para o Instituto Brasileiro do Café, dado que o Brasil era um dos países produtores mais afectados pela ferrugem do cafeeiro. Quando ocorreu o 25 de Abril, foi colocado no Quadro Geral de Adidos e partilhou a saga da integração vivida por milhares de portugueses das ex‑colónias, mas nem por isso deixou de ser um apoiante incondicional do movimento libertador. Ao longo de mais de trinta anos, seleccionou e apurou variedades híbridas de cafeeiros resistentes, distribuiu as suas sementes por todo o mundo produtor de café. Pediam-lhe para trabalhar em Angola, Brasil, Venezuela, Colômbia, México, Guatemala, Nicarágua, Honduras, Costa Rica, Panamá, República Dominicana, para criar estações experimentais, para ensinar nas universidades, para apoiar centros de investigação, a tal ponto que passava no máximo dois meses por ano em Portugal e o resto andava a calcorrear o mundo. Ganhou reconhecimento mundial como um dos maiores cientistas no melhoramento genético do cafeeiro. Reformou-se aos 70 anos e publicou o último de inúmeros artigos científicos em 2008, encerrando a carreira científica.

Esta foi a história da carreira profissional do jovem aluno de Química do poeta António Gedeão, a história de quem me marcou indelevelmente por ser meu pai!

Contei-ta porque ele, em circunstâncias completamente diferentes das tuas, também sentiu a mesma preocupação que tu: a falta de emprego. Ao longo da vida fez várias rupturas e recomeços, uns voluntários, outros não. Mas lutou sempre e venceu. Mudou várias vezes de posto de trabalho, devo‑te até dizer que nunca lhe conheci um posto de trabalho fixo. Conheci-lhe várias mesas de trabalho atulhadas de livros e manuscritos, mas a imagem que guardo do meu pai é a movimentar-se permanente nas estufas ou entre fiadas de cafeeiros em plantações a perder de vista, motivando as diversas equipas de trabalho que formava e liderava. Trabalhou para diversas chefias e organizações, mantendo sempre o vínculo ao Estado. Mas nada nele pode ser assimilado ao estereótipo que criaram para o servidor do Estado ou para as gerações que dizem que procuravam empregos para a vida.

Nesta questão do emprego, como em muitas outras da economia, há quem defenda, com bons argumentos, que o mercado é o melhor regulador da sociedade, uma entidade imune aos defeitos humanos que, como uma mão invisível, controla os desvios nocivos e assegura os interesses de todos; uma espécie ajustamento mútuo entre pessoas livres, um mecanismo de selecção e decisão colectiva natural que deixa as pessoas ajustarem-se livremente. Segundo esses defensores, os mecanismos de oferta e procura do mercado fariam com que a grande maioria das pessoas encontrasse o equilíbrio entre o esforço despendido no trabalho e a retribuição justa em áreas de actividade úteis para a sociedade. Chegaram mesmo a prever que eliminadas as ineficiências de outros modelos de sociedade, maximizada a produtividade das organizações e aproveitados os avanços tecnológicos, em especial da automação, a força de trabalho necessária seria drasticamente reduzida e às pessoas seriam propiciados empregos estimulantes e justamente recompensados, com horários de trabalho da ordem das 15 horas semanais, que deixariam tempo livre para a família e para eles próprios fazerem o que lhes desse prazer. O tempo livre das pessoas seria aproveitado para viajar, para actividades de diversão e culturais, promovendo novas indústrias do lazer e da cultura que assim se tornariam lucrativas. Às crianças e aos jovens seriam oferecidas condições de ensino cada vez mais aliciantes. À medida que a massificação do ensino induzida pela revolução industrial fosse suavizada pelos novos instrumentos tecnológicos, as escolas facultariam uma formação equilibrada a todos, adaptada aos interesses da sociedade e de cada um, apoiando os que têm dificuldades na aprendizagem e conduzindo a níveis de conhecimentos mais profundos os que manifestam qualidades de excepção.

Mas a realidade que te preocupa é bem diferente. O tal mercado, que num mundo em que 1% dos humanos domina a maioria absoluta da riqueza mundial é afinal uma criação à imagem dos defeitos humanos para satisfazer os interesses desse 1%, criou um grupo amedrontado e discriminado de desempregados, muitos deles jovens; um grupo minoritário de empregados realmente produtivos que são implacavelmente triturados e explorados; e um grupo esmagadoramente maioritário de empregados frustrados que trabalham 50 ou mais horas semanais mas que são pagos, e às vezes muito bem pagos, para fazer tarefas muito pouco produtivas. Neste último grupo estão por exemplo os CEO das empresas financeiras, os consultores, os juristas, os relações públicas, os burocratas, os operadores de telemarketing e call centers, etc., uma imensa legião de milhões de indivíduos que ocupam postos de trabalho inúteis, contrariando um sistema onde a última coisa que organizações lucrativas deveriam fazer era desperdiçar dinheiro com empregados de que não precisam para produzir riqueza. Mas a arquitectura deste sistema de emprego não foi racionalmente desenhada pelo 1% dominante. Emergiu de um século de mercado controlado pelo poder do capital financeiro e os mecanismos de ajustamento funcionaram exactamente no sentido de beneficiar quem detém o poder, com o sacrifício do futuro de jovens como tu.

É claro que esta situação não é homogénea em todos os países. Países como a Alemanha, onde o desemprego jovem está nos 7%, sabem atenuar o problema. E tu que vives num país onde o desemprego jovem roça os 30%, deves tentar perceber as razões da diferença. Mas a história mostra-nos que a questão não é apenas económica, é também moral e política. O desemprego e o emprego social e economicamente inútil sempre foram usados como instrumentos de poder que afectaram sucessivas gerações de jovens. E muitas vezes de forma contraditória. Por exemplo, quando a desindustrialização foi uma das causas do fraco crescimento económico dos países europeus, vemos muitos dos apoiantes dos modelos e opções políticas que a determinaram, defender o futuro risonho da “reindustrialização”, da indústria ou revolução 4.0, onde os produtos serão desenhados, produzidos e distribuídos com um mínimo de intervenção humana, ao mesmo tempo que acenam com promessas de um aumento para 75% da taxa de emprego da população entre os 20 e os 64 anos, já para 2020.

Cabe aos jovens como tu, porque o futuro é teu, estudar, validar as promessas que te fazem e contrariar os mecanismos que criam situações que te podem ser prejudiciais. Como o jovem da minha história, deves dizer basta aos cantos da sereia do consumismo, da precariedade de emprego mascarada de inevitável mobilidade, e tentar encontrar caminhos que conduzam ao sucesso profissional e pessoal. Podes mudar de emprego, de posto de trabalho, de cidade e país, mas deves procurar um fio condutor, um projecto de vida coerente, num esforço contínuo de estudo e consolidação de experiências que te enriqueçam profissionalmente.

Há dias ouvi um jovem engenheiro português que durante a crise decidiu partir e procurar trabalho e condições dignas de vida na Alemanha, falar da sua experiência. Está satisfeito e explicou porquê: ─ Em Portugal tinha de agradecer a quem me dava trabalho, na Alemanha agradecem o meu trabalho. Ora aí está o único conselho prático que te posso dar:

TENTA SEMPRE QUE AGRADEÇAM O TEU TRABALHO!

Saudações calorosas,
Jorge Martins Bettencourt
Jovem de Abril