domingo, 22 de maio de 2022

Originalidade ou continuidade?

 


Porque ocupei uma boa parte da vida profissional em actividades de aquisição e manutenção de navios militares, não podia deixar de notar as notícias que nos últimos tempos têm saído sobre a contratação da IdD Portugal Defence para gerir o programa de aquisição de seis novos navios de patrulha oceânicos (NPO) para a Marinha Portuguesa.

De acordo com uma resolução do anterior governo, de Junho do ano passado, foi autorizada a despesa de quase cinco milhões de euros do Orçamento do Estado para remunerar aqueles serviços da IdD Portugal Defence.

Em entrevista ao DN e à TSF no Dia da Marinha, o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) declarou que estava confortável com a resolução do Governo e considerou útil a ajuda da IdD Portugal Defence na “parte da contratação pública” e na “parte da gestão desses contractos”. E clarificou: “Vejo sempre com utilidade essas ajudas, não vejo que haja qualquer competição sobre as responsabilidades da Marinha, porque a Marinha está envolvida em muitos projetos neste momento.”

Compreendo a resposta do CEMA porque na verdade, no quadro legal que regula os programas de aquisição de novos navios, a Marinha tem pouca margem de manobra. Malgrado a experiência e a competência das suas direcções técnicas, julgo que únicas na administração e nas empresas públicas, os termos e a execução do processo de aquisição de novos navios são estabelecidos pelo Governo e Ministério da Defesa Nacional e a Marinha só tem de cumprir as tarefas que lhe forem atribuídas. Assim sendo, a questão que parece relevante é saber se a IdD Portugal Defence tem as capacidades e competências compatíveis com as responsabilidades que lhe foram atribuídas pelo Governo.

Depois de consultar o site da IdD Portugal Defence, fiquei a saber que é uma sociedade de capitais exclusivamente públicos com tutela conjunta do Ministério da Defesa Nacional e do Ministério das Finanças. Como não refere e não se conhece qualquer experiência ou competência daquela sociedade na gestão e acompanhamento de programas de aquisição de navios militares, procurei perceber como é que IdD Portugal Defence poderia acrescentar valor ao programa e maximizar o impacto positivo na economia nacional, tal como consta na resolução do governo.

Percebi então que os quase cinco milhões de euros do Orçamento do Estado servirão para mobilizar empresas onde o Estado Português tem participação assim como outras que integram a designada “Base Tecnológica e Industrial de Defesa” gerida pela IdD Portugal Defence, para apresentarem propostas para fornecerem serviços e equipamentos para os NPO.

A gestão de um programa de aquisição ou construção de navios militares (refiro militares porque são aqueles onde tenho experiência, mas julgo que com os comerciais se passa o mesmo) é um processo tão dinâmico, complexo e exigente que não se compadece com a partição de responsabilidades por diversas entidades. Quem dirigir tal processo, deve ser responsável por todos os seus componentes e a escolha das soluções técnicas e contratação dos respectivos fornecedores é um dos principais. A quem gere um programa (indivíduo, grupo ou entidade) devem ser definidos os requisitos dos navios, o orçamento, o prazo e o quadro legal e contratual do programa. Depois o gestor deve usar as suas capacidades, competências e autoridade para atingir o objectivo estabelecido para o programa, sem que possa atribuir a outros a culpa dos fracassos.

Por outro lado, se existe em Portugal uma “Base Tecnológica e Industrial de Defesa” constituída por empresas públicas e privadas, pareceria razoável que essas empresas se organizassem autonomamente e apresentassem soluções tão completas e coerentes quanto possível, que satisfizessem os requisitos do programa de construção dos NPO, com o menor risco para o comprador. Na solução adoptada afigura-se estranho o paternalismo do comprador, o Estado Português, ao tentar organizar os fornecedores, assumindo com isso riscos desnecessários e, provavelmente, ainda não avaliados.

Ao longo da minha carreira profissional, tive oportunidade de reflectir sobre a forma de dinamizar a indústria naval militar nacional e estudar as soluções adoptadas por outros países para a gestão e acompanhamento de programas de aquisição de navios. Contudo, devo confessar que não encontrei uma justificação semelhante à apresentada pelo Governo para contratar a IdD Portugal Defense.

Face ao que li, admito duas hipóteses: a primeira é que o governo descobriu uma solução original que vai revolucionar os procedimentos de aquisição de navios das Marinhas militares de todo o mundo; a segunda, talvez mais provável, é que o exíguo Orçamento do Estado Português continua a alimentar os grupos político-partidários que dominam a burocracia estatal, assim como as empresas e entidades públicas e privadas que sobrevivem à sua sombra.

12 comentários:

  1. Muito esclarecedor. A sua segunda hipótese e a mais provável é muito preocupante.
    Como cidadão e como ex-oficial da Armada (licença Ab) agradeço-lhe muito o seu artigo, que conheci através do Luis Costa Correia.
    Tenho confiança no método: Ver+julgar (avaliar) + agir. Graças ao seu artigo o "Ver" está a à vista. Mas falta quem se queira juntar para "Julgar-discernir". E o "agir" viria com mais energia.
    Eugénio Boléo, frade dominicano, ex-fuz esp, presentemente em Bruxelas. Grande bem haja, pelo seu artigo estimulante. E também ao Luis C.C. que tem a vista bem apurada para o que é importante.

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  2. Há muito que defendo a formação de um consórcio empresarial singular, nacional e autónomo, responsável pela construção e reparação naval militar e reconhecido como aliado e interlocutor privilegiado da Defesa Nacional. Num sector monopsonista dominado pelo Estado (Defesa Nacional) como único comprador, julgo ser a melhor forma de assegurar a estabilidade e continuidade necessárias para a existência em Portugal de empresas viáveis com competências e capacidades específicas nas áreas da Defesa e Segurança no mar e da construção e reparação naval militar. Mas como condição essencial também defendo que o Estado não deve ter o controlo maioritário do capital dessa nova entidade empresarial, seja através da Defesa Nacional ou de qualquer outra entidade estatal. Entendo que a sua organização operacional deveria autónoma e de acordo com as melhores práticas do sector, tendo o Estado apenas visibilidade da gestão e desempenho sem interferir nas suas actividades operacionais.
    Coisa bem diferente dessa entidade empresarial é a idD Portugal Defence, uma empresa 100% pública tutelada pelo Ministério da Defesa Nacional que na prática é um departamento do Estado que supostamente vai fazer o mesmo que um outro departamento do Estado, a Marinha, sempre fez. Mas como não tem competência para isso porque os técnicos com experiência que poderia contratar estão todos a prestar serviço na Marinha (os que estão na reserva e ou na reforma, por lei, não podem ser contratados por uma empresa pública), muito provavelmente o programa de aquisição dos novos navios de patrulha oceânicos será mal gerido, a não ser que a Marinha dê uma ajuda sem receber as verbas do orçamento que serão desviadas para a idD Portugal Defence.

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  3. Bem haja por manifestar a sua opinião. Espero que haja quem queira discutir consigo esta sua opinião. "Ver" foi o seu artigo. "Julgar-Discernir" é uma etapa necessária antes de "Agir". E se não há quem aja, será bem triste, a meu ver.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Agradeço as suas palavras mas duvido que alguém esteja interessado na discussão deste tema. Em 2010, com o falecido Fernando Ribeiro e Castro, tentámos motivar as empresas associadas do Fórum Empresarial da Economia do Mar a discutir uma estratégia para o sector e a assumir um papel que não fosse de mera dependência do Estado, mas sem qualquer resultado positivo. O que propúnhamos está aqui: http://aminhavivencia.blogspot.com/2010/10/uma-estrategia-para-industria-naval.html.

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  4. Penso que o capital do consórcio é que deverá ditar o respectivo controlo o qual poderá ser ou não maioritário, consoante as entidades constituintes.

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    1. Concordo naturalmente com o princípio geral que enuncia sobre o controlo mas, em Portugal, quando o Estado tem a maioria do capital, o estatuto público da empresa impõe regras que não são compatíveis com o modelo de entidade empresarial proposto. Além disso, se o Estado (comprador único) dominar a nova entidade empresarial, caímos de novo na situação monopsonista cujos efeitos queríamos atenuar com a sua criação e o resultado final será apenas a duplicação de estruturas na esfera pública..

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  5. Estamos a falar de consórcio de fornecimento e, naturalmente (e julgo que legalmente), o controlo do consorcio terá sempre de se fazer consoante o capital das entidades consorciantes no consórcio que, por regra, costuma ser proporcional aos intencionais fornecimentos. Se as empresas públicas do consórcio, isolada ou conjuntamente, tiverem a maioria do capital consorciado é justo que o dominem. Doutra forma, seria adulterar as regras do jogo com claro favorecimento das empresas privadas em detrimento das públicas só pelo facto do seu estatuto. As regras do jogo são assim e, como tal, "les jeux sont faites..."

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    1. A condição que preconizo não é relativa às empresas ou aos consórcios fornecedores, essas e esses podem e devem ter qualquer natureza. Refiro-me apenas à entidade empresarial singular, nacional e autónoma, interlocutora privilegiada da Defesa Nacional e responsável pela gestão dos programas de construção e reparação naval militar, cuja criação sugeri.

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  6. Conforme início do seu escrito "Há muito que defendo a formação de um consórcio empresarial singular, nacional e autónomo, pensei que se tratava dum consórcio em termos de direito comercial. Quanto à entidade a que se refere ela, no meu entender, depende apenas da vontade dos (privados?) que a queiram constituir e da vontade do cliente, Defesa Nacional, em a reconhecer como parceiro válido.

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