domingo, 12 de novembro de 2017

Português universal



Para mim ser Português é sentir, como Miguel Torga, "dividido em cada sítio onde me encontro", ter "a alma inteira em parte nenhuma", sem nunca perder as referências. As minhas foram trazidas de Trás-os-Montes, da Madeira, da Estremadura, de Moçambique. Ganharam raízes em Lourenço Marques, Inhambane e Quelimane, em Lisboa, na serra de Montejunto e na península de Peniche. Revigoraram um pouco por todo o Mundo, nas Américas, na Europa e na Ásia. Foram essas referências, revisitadas em múltiplas vivências, que deram o sentido da universalidade a um português como eu.

Um sentido da universalidade consolidado pela leitura da obra de Miguel Torga e Vitorino Nemésio, dois escritores e homens do Mundo que tão bem trataram os mais importantes regionalismos portugueses: a interioridade e a insularidade, ou açorianidade. Com os “Contos da Montanha” de Torga e o “Mau Tempo no Canal” de Nemésio, aprendi a relação entre o regional e o universal e como essa relação moldou o que somos como povo. Um povo para o qual o universal é o local sem fronteiras, que permanece igual no essencial esteja onde estiver, em Portugal, no Brasil, em França, nos EUA, em Angola, na Alemanha, em Timor, no Canadá, no Havai, no Luxemburgo ou nas Bermudas.

Um povo de mulheres como a Maria Lionça, a cachopa mais bonita, dada e alegre de Galafura que, como muitas mulheres da montanha, no meio do gosto do amor enviuvou com o homem vivo do outro lado do mar, que viu o filho abalar para Lisboa e fazer-se marinheiro, que o foi buscar a Leixões, a exalar o último suspiro, que se meteu no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, e subiu a serra para que dormisse o derradeiro sono na terra onde nascera. Um povo de homens como o padre João de Vilarinho, que disse ao Bispo que sabia haver outros mais finos que ele, que às fêmeas chamavam criadas e aos filhos, afilhados, mas que ele não largava a mulher, gostava dela, e filhos já tinha cinco e queria criá-los; que tudo fez para que o tragamundos Firmo, filho de cavadores, cavador até aos vinte, incapaz de se deixar penetrar da verdade dos tojos e das leiras e sempre com desejos do mundo, quase fosse mordomo na festa da Senhora da Agonia.

Um povo representado pelo ti Amaro de Mirateca, trancador de baleias, duplamente universal como português e ilhéu atlântico sempre pronto a emigrar, que andou um ano no Arriôche (Oceano Glacial Árctico), três no Oeste Negrão (Mar das Antilhas) e dois nos Japanis (Mares do Japão), e que com os outros baleeiros contestou o arresto das canoas pela Justiça. E pela Margarida da Terra Clark Dulmo, ilustre tataraneta do capitão Fernão Dulmo, fidalgo da casa do Infante D. Henrique, que foi enfermeira de um criado pestífero, que atravessou o Canal numa canoa rebocada por um cachalote arpoado por caçadores picarotos, que falava com o povo no seu próprio dialecto, que foi madrinha tauromáquica terceirense e que acabou por casar com o pretendente menos interessante, o herdeiro do barão da Urzelina. E não fosse o meu avô transmontano e os homens comandados pelo seu conterrâneo Carvalho Araújo, não teria viajado no San Miguel, conhecido o estudante de Coimbra e atirado ao mar o anel da serpente cega.

Num tempo do patriotismo de lapela, é importante estudar as nossas raízes familiares e culturais e perceber o que somos e qual o nosso papel no mundo. E a ancestralidade descrita por Nemésio e Torga, ajudam-nos nesse processo. Compreender o ti Amaro e a Margarida é tão importante como compreender a Maria Lionça ou o padre João e o Firmo. Em todos o amor à terra é tão absoluto como a relação com a vastidão do mundo.

É isso que torna o Português universal.

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