sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

A expansão marítima e a Inquisição

 

Tabela astronómica do “Almanach Perpetuum” de Abraão Zacuto

Sou dos que pensam que um dos factores que determinou o declínio da liderança do projecto científico e tecnológico que foi a expansão marítima portuguesa do século XV terá sido a instalação da Inquisição em Portugal por iniciativa do rei Manuel I. 

Se a expansão marítima foi um processo de afirmação essencialmente interno que teve o seu apogeu no final do século XV e raízes no passado de convivência e aprendizagem dos portugueses com outros povos e religiões, os processos inquisitoriais foram um fenómeno social e político importado do centro da Europa no século XVI que, para além de outras consequências profundamente negativas, prejudicou a continuidade das realizações científicas e tecnológicas do século XV por perseguir e expulsar os homens de ciência não cristãos ou incómodos.
 
O caso do judeu Abraham bar Samuel Abraham Zacut, conhecido em Portugal por Abraão Zacuto, é um bom exemplo dos malefícios da Inquisição e da intolerância do Estado. Nascido em Salamanca, refugiou-se em Portugal quando os reis católicos de Castela e Aragão obrigaram os judeus à conversão ao cristianismo ou ao exílio. 

O “Almanach Perpetuum Celestium Motuum” de Abraão Zacuto, traduzido do hebreu para o latim e do latim para o castelhano por Mestre José Vizinho, também judeu e médico astrónomo da corte de D. João II, foi por isso impresso em 1496 em Leiria na oficina de Abraão Samuel Dortas, também ele judeu. Foi do “Almanach Perpetuum” de Zacuto que se deduziram todas as tabelas solares quadrienais calculadas em Portugal até à publicação das tábuas do Sol de Pedro Nunes.
 
Com o astrolábio e as tabelas astronómicas do “Almanach Perpetuum” de Zacuto, um piloto comum que conhecesse a data e medisse a altura do Sol ao meio-dia podia determinar com precisão razoável a latitude do lugar onde se encontrava, tanto no hemisfério Norte como no hemisfério Sul, independentemente de alguém lá ter estado antes. 

A determinação da latitude passou a ser assim um acto repetível por qualquer piloto que usasse os instrumentos adequados e por isso, na viragem do século XV para o XVI, os marinheiros portugueses estavam habilitados a estabelecer a latitude de qualquer ponto do globo, em terra firme ou no alto-mar. Foi a ciência de Zacuto, foi o astrolábio que melhorou e foram as tabelas astronómicas deduzidas do seu “Almanach Perpetuum” que foram usadas por Gama e por Cabral nas suas viagens.

Pois Abraão Zacuto viveu apenas seis anos em Portugal porque D. Manuel seguiu o exemplo dos reis católicos, decretou a expulsão de todos os judeus que recusassem a conversão ao catolicismo através do baptismo e criou as condições para que a Inquisição desencadeasse a barbárie que bem conhecemos.
 
Como Zacuto, muitos outros saíram de Portugal, foram servir outros poderes, como por exemplo holandeses e ingleses, e transmitir o saber e as técnicas dos portugueses aos seus navegantes.

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