sábado, 6 de setembro de 2014

Baptismo de Voo


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Apesar do ruído do motor, ouviu-se alto e claro:
– Dói-me a barriga, quero fazer cocó!
A avioneta pilotada pelo pai acabara de levantar para o baptismo de voo do menino mas aquela proclamação não deixava alternativa, tinha de voltar à pista do campo de aviação. O amigo que o levava ao colo, no lugar de trás, não podia sofrer as consequências. Mas logo que o menino sentiu os pés em terra e correu para a mãe, foi-se embora o medo e com ele, todas as aflições fisiológicas.

As alturas e o espaço exíguo não eram claramente a sua zona de conforto, mesmo gostando muito de aviões. Sempre conviveu com as avionetas do aeroclube, faziam parte do seu imaginário infantil. Não tanto o tristonho “Filipito”, um Piper Vagabond baptizado com o diminutivo do filho do governador, tiques do poder colonial, mas muito o reluzente Chipmunk. Para o menino, o mundo mágico dos aviões era acima de tudo o Chipmunk e só depois duas ou três avionetas sem muita graça.

Estava habituado a passar os domingos a ver o pai subir e descer nos ares naquelas máquinas de tela e metal, a tentar a aterragem perfeita. Sabia também que o pai saía naquelas avionetas para ir trabalhar. E principalmente sabia que a mãe ficava muito feliz e ele voltava a ter o colo do pai, quando uma daquelas avionetas sobrevoava a baía e acenava com as asas, antes de seguir para o campo de aviação.

Mas nem sempre as coisas correram assim. Uma tarde, terminado o trabalho no campo experimental que instalou a centenas de quilómetros de casa, o pai deu início ao procedimento de preparação da avioneta. Feitas todas as verificações, pediu ao regente agrícola que rodasse a hélice mas o motor da avioneta não pegou. Novas verificações, novas insistências, mas o motor teimava em não responder.

Quando finalmente e depois de muitas tentativas, o motor resolveu trabalhar, tinha ficado tarde para a viagem de regresso. A alternativa era voar na manhã seguinte mas não tinha forma de avisar quem o esperava no destino. Por isso, após um momento de reflexão, fez-se à pista e levantou voo, confiante que seria poupado à lei de Murphy.

Mas enganou-se redondamente. Ao fim de pouco tempo de voo solitário, levantou-se um vento que contrariava o avanço do avião e que quase o parava quando a rajada era mais forte. O tempo foi passando com o combustível a esgotar-se e o pai percebeu que não iria alcançar a cidade antes do anoitecer. Era um problema sério porque nem o avião tinha faróis nem a pista de aterragem tinha iluminação.

Contornou a larga baía para manter as referências no terreno, não sobrevoou a casa nem acenou como de costume e dirigiu-se logo para o campo de aviação. Ficou muito admirado ao ver uma fila de faróis de carros a deslocarem-se na mesma direcção. Soube depois que era uma cadeia de ajuda organizada por um amigo, alertado pela mãe do menino quando viu a noite a cair sem sinais da avioneta do marido.

E assim alcançou o campo de aviação com a gasolina no zero, mas com a pista iluminada pelos faróis dos carros, uns ao lado dos outros. Como não sabia a que altura estava do solo mas tinha uma ideia aproximada da altura do hangar, passou rente ao topo do telhado e fez-se à pista. Quando estimou que estava perto do solo, deixou a avioneta cair em perda.

O embate com o solo foi um tanto violento, muito diferente da suavidade domingueira, mas não houve prejuízos. O problema mais sério foi acalmar a mãe do menino quando chegou a casa.

Quanto ao menino, acabou por perder o medo de voar nas muitas viagens aéreas entre continentes e um dia, já adolescente, pensou tirar o brevet. Mas a mãe foi peremptória:
– Nem penses nisso, para sustos já me chegou o teu pai!

E assim se perdeu um potencial marinheiro aviador.

3 comentários:

  1. Gostei imenso de tomar conhecimento destas aventuras do teu pai que de facto foi preciso ele já não estar entre nós para eu por mero acaso em conversa com a tua mãe ter o início deste episódio !

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  2. Enternecedora e cheia de graça esta estória! Parabéns! Calculo que o menino se sentia melhor no mar…

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