Já tinha construído tudo de raiz em Inhambane e no Mangorro,
próximo de Inharrime, e voltaria agora a fazer em Quelimane e em Alverca, próximo
do Gurué. Para o jovem agrónomo o importante era criar uma estrutura de apoio
aos cafeicultores da Zambézia porque para as outras culturas já existiam as grandes
companhias. O café era a única cultura que permitia aos pequenos agricultores
libertarem-se dos monopólios da comercialização que existiam para produtos
agrícolas como o chá, o algodão ou o sisal.
Para fazer o seu trabalho e atingir os objectivos, precisava
de muita energia e paciência para lidar com as autoridades administrativas
coloniais; em Quelimane com o governador do distrito da Zambézia, um
funcionário civil da Metrópole em comissão de serviço; em Lourenço Marques com
o governador-geral, um oficial de Marinha que partilhava com o jovem agrónomo
as raízes madeirenses. Talvez para vingar as frustrações de tais
relacionamentos, pôs alcunhas a ambos: o primeiro era o “Narciso” e o segundo,
o “Fadista”.
Se não fossem as eleições presidenciais de 1958, a comissão
do “Narciso” teria corrido sem sobressaltos e de Quelimane poderia ter
descolado para voos políticos bem mais relevantes. Mas a candidatura de
Humberto Delgado exigiu dele uma resposta para a qual não estava preparado e
apesar do empenho com que tentou angariar votos para o candidato da União
Nacional, este acabou derrotado na Zambézia.
Nas eleições do Estado Novo, os poucos eleitores votavam com
os boletins que cada uma das forças concorrentes lhes entregava previamente. A
grande dificuldade da oposição era fazer chegar às pessoas os seus boletins de
voto. No entanto, em 1958, a oposição em Moçambique estava bem organizada e
conseguiu fazer chegar aos sítios mais recônditos os boletins de voto no
Humberto Delgado.
Em Ile, por exemplo, bem no coração da Zambézia, o “Narciso”
esteve na sede da circunscrição três dias antes da eleição para avisar o
administrador do trabalho de sapa da oposição e o administrador garantiu que
tudo estava a correr bem, que ficasse descansado, só contava com 6 ou 7 votos
da oposição. No entanto o administrador não imaginava que quase todos os
funcionários da firma Monteiro & Giro, a maioria dos eleitores da região,
iam votar no Humberto Delgado, isto apesar da gerência da firma lhes ter
recomendado o voto no almirante Américo Tomaz e de terem prometido ao
administrador que iriam cumprir a recomendação. Imagina-se o pânico do homem
quando percebeu, durante o acto eleitoral, que afinal estavam a votar no
Humberto Delgado e já nada podia fazer para o evitar!
Em Quelimane, o “Narciso” pediu ao jovem agrónomo que
convencesse os funcionários da Repartição de Agricultura a votar e lhes
entregasse os boletins de voto no almirante Américo Tomaz. O jovem agrónomo
aceitou com a condição de também distribuir boletins de voto no general
Humberto Delgado, o que naturalmente não foi aceite pelo “Narciso”. Apesar do
revés na Repartição de Agricultura, o “Narciso” manteve-se confiante que a
vitória era certa.
Depois das eleições e contados os votos, o “Narciso” passou
um mau bocado. Como outros governadores dos distritos de Moçambique, teve de
justificar a derrota do candidato da União Nacional. Todos apresentaram as suas
razões em relatórios classificados para o governador-geral em Lourenço Marques,
o “Fadista”, que depois elaborou sobre elas num relatório secreto para o
ministro na metrópole.
No relatório de 14 de Junho de 1958 para o “Fadista” (as
eleições foram a 8 de Junho), o “Narciso” escreveu: “Logo que se iniciou a
campanha eleitoral, conferenciei com os Presidentes das Comissões Distrital e
Concelhia de Quelimane e assentámos em que, com vista a permitir que a União
Nacional, praticamente reduzida à organização de Quelimane, pudesse ter todo o
tempo livre para trabalhar o eleitorado da sede do Distrito, o Governador se
encarregaria de toda a restante área, mais se combinando que, mesmo em
Quelimane, o Governador, junto das Chefias dos Serviços, das Direcções das
Companhias e Empresas importantes e de mais pessoas influentes no meio com quem
tivesse boas relações e em quem depositasse confiança pública, exercesse na
medida do possível, a sua acção no sentido de se conseguirem eleitores para o
candidato da situação.”
E concretizou: “Perdemos a eleição por uma diferença de 15
dos votos entrados e podemos, com a certeza de não nos enganarmos, atribuir
este insucesso aos funcionários públicos, principalmente aos do Caminho de
Ferro, Correios e Câmara, cuja grande maioria votou contra nós apesar de também
a grande maioria deles ter prometido votar favoravelmente.
Como estes procederam muitos funcionários doutros sectores.
Quando, como no caso desta cidade, mais de 50% dos eleitores
recenseados é constituído por funcionários públicos, melhor se poderá avaliar a
delicadeza da eleição.
Se porventura se tivesse podido formar uma ideia correcta da
verdadeira disposição dos funcionários, eu não teria hesitado em lhes falar
directamente, sendo de admitir que, assim, das centenas de funcionários que
votaram contra, convencesse pelo menos 15 e tantos bastavam para a eleição se
não perder, a alinharem connosco.”
E fez o mea culpa:
“Por minha parte reconheço-me responsável de não ter tido a
percepção da possível traição duma grande parte dos funcionários, que nos
garantiu iriam votar connosco e que foram votar na oposição.
Se a tivesse tido creio que, poderia ter convencido quinze
eleitores dos que nos foram desfavoráveis a votarem na lista da União Nacional.
Em último recurso ainda teria a solução, e tinha-a previsto
em caso de necessidade, de fazer votar em Quelimane, por meio de certidões, 30
ou 40 eleitores seguros da Assembleia de Namacurra e Secção de voto de
Inhassunge que para aqui faria transportar.
Fui atrás do que me disseram e garantiram e esta a minha
culpa que não rejeito.”
O “Narciso” foi tão convincente que o “Fadista” escreveu no
seu relatório para o ministro: “O (governador) de Quelimane trabalhou bastante,
mas confiou infundadamente no eleitorado da sede do Distrito. Pediu a sua
exoneração em consequência do resultado eleitoral em Quelimane, mas entendi não
dever fazer subir o pedido, porque, se errou, foi sem intenção, e a dura lição
deve ter-lhe aproveitado.”
E concluiu: “As últimas eleições, com todos os seus
malefícios, tiveram o mérito de pôr em relevo vários pontos fracos da vida
nacional, entre os quais, julgo, sobressai a “mentalidade” dos jovens
diplomados universitários: advogados, médicos, engenheiros e professores do
ensino liceal e técnico-profissional.”
O "Fadista" deixou o cargo no final de 1958 e no
ano seguinte foi nomeado administrador por parte do Estado do Banco Nacional
Ultramarino. O “Narciso”, aqui fotografado no exercício das suas funções
oficiais, manteve-se em Moçambique e foi nomeado Secretário Provincial em 1960.
O jovem agrónomo foi transferido para Angola em 1959, depois da cultura do café ser proibida em Moçambique por despacho ministerial.
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