sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Kurika e Dulcineia

Há 60 anos, na noite de 21 para 22 de Janeiro de 1961, um grupo de activistas políticos constituído por 12 portugueses, 11 espanhóis e 1 venezuelano, comandados pelo ex-capitão do Exército português Henrique Galvão e pelo ex-suboficial da Marinha de Guerra espanhola republicana e combatente da Guerra Civil de Espanha José Fernandéz Vásquez, conhecido como Jorge de Sottomayor, sequestrou o navio de passageiros português “Santa Maria” no mar das Caraíbas, pouco depois de largar de Curaçau com destino a Miami.

Inspirado pela personagem feminina da obra de Cervantes, Henrique Galvão escolheu o nome de código “Dulcineia” para a operação porque, segundo ele, “também éramos românticos lutando por nossa dama – a Liberdade”.

O objectivo político da operação “Dulcineia” era atrair a atenção da opinião pública internacional para a situação sociopolítica dos povos sujeitos às ditaduras ibéricas. O objectivo operacional era um ataque de surpresa à ilha de Fernando Pó e à Guiné Equatorial, para obtenção de munições e de outro material de guerra, incluindo canhoneiras e aviões, e o posterior desembarque em Angola, com o apoio de forças rebeldes locais (sobretudo em Luanda, Benguela e no Lobito). Seguir-se-ia a constituição, em Luanda, de um governo hostil ao regime de Salazar, pois Henrique Galvão estava convicto de que poderia derrubar o regime a partir de África.

Quando no dia 24 a censura deixou que fossem divulgadas as primeiras notícias sobre o assalto ao “Santa Maria”, o regime de Salazar apresentou-o como um ignóbil acto de pirataria executado por um bando de indivíduos de várias nacionalidades com derramamento de sangue e a morte do piloto Nascimento Costa que não chegou a conhecer a filha recém-nascida. Foi logo dito aos portugueses que o “Santa Maria” estaria a ser perseguido por navios de guerra ingleses e americanos.

São bem conhecidos os detalhes do que se passou até ao dia 17 de Fevereiro, quando o “Santa Maria” atracou no cais da Rocha do Conde de Óbidos, saudado por uma multidão e pelo próprio Salazar, que proferiu a célebre frase: "Obrigado, portugueses. O Santa Maria está connosco."

O laconismo de Salazar não terá resultado apenas do facto de o sequestro do “melhor navio português e um motivo de orgulho da navegação comercial” ter sido realizado por quem foi um dos seus mais fiéis apoiantes antes de se tornar o seu mais temível inimigo; nem do facto de os principais aliados de Portugal não terem considerado o sequestro do navio como um acto de pirataria e não terem actuado militarmente contra os sequestradores. Muito provavelmente Salazar já tinha a percepção que a acção quixotesca de Henrique Galvão poderia ser o primeiro de uma série de acontecimentos nefastos para o seu regime.

De facto, 1961 foi o anno horribilis da ditadura salazarista, com uma sucessão de acontecimentos de que nunca se recomporia: em Janeiro, foi a revolta da Baixa do Cassange em Angola e o sequestro do "Santa Maria"; em Fevereiro, foi o assalto às prisão e esquadra da polícia em Luanda; em Março, foram os massacres no norte de Angola pelas forças da UPA; em Abril, foi a tentativa de golpe de Estado perpetrada pelo então ministro da Defesa, general Júlio Botelho Moniz; em Agosto, foi a expulsão da Fortaleza de São João Baptista de Ajudá pelas tropas do Benim; em Novembro, foi o desvio de uma aeronave da TAP em voo entre Casablanca e Lisboa que sobrevoou Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, lançando milhares de panfletos contra o regime salazarista, e retornando incólume a Casablanca; em Dezembro foi a invasão militar pela União Indiana dos territórios que constituíam o designado Estado Português da Índia; e, finalmente, na noite de passagem de ano, foi a intentona militar fracassada de Beja.

É certo que para Henrique Galvão os resultados da operação “Dulcineia”, mal planeada e pior executada, com os líderes e os participantes a discutirem a forma de tomar a ponte do navio até poucos minutos antes do início da acção, ficaram muito aquém do sonhado. Sem tropas, sem recursos financeiros e sem o apoio que esperava dos EUA apenas porque o seu projecto político era marcadamente anticomunista, teve de desembarcar no Recife e, com os companheiros de aventura, pedir asilo político ao Brasil. Restou-lhe a consolação de ter atraído a atenção da opinião pública internacional, ao ponto do recém-empossado Kennedy se ter referido ao sequestro do “Santa Maria” nas duas primeiras conferências de imprensa como presidente dos EUA.

Para mim, que só conhecia Henrique Galvão como autor do primeiro romance de que me lembro de ler e gostar muito, tudo o que ouvia sobre a operação “Dulcineia” e o seu mentor foi profundamente perturbador. Não conseguia perceber como é que o escritor do romance “Kurika” podia ser um bandido!

O Kurika de Henrique Galvão é um pequeno leão órfão recolhido pelo negociante branco Conceição e criado no convívio com os homens, juntamente com o cão Janota e a macaca Paulina que o adoptaram, ele como irmão e ela como filho. Aos 21 meses, movido pelo desejo instintivo de liberdade e ajudado pela Paulina, conseguiu libertar-se e fugiu para o mato, atravessando o rio que separava a casa do Conceição da vida selvagem. No seu meio natural, Kurika transformou-se num imponente leão, sem se esquecer do passado junto dos que o criaram.

Consciente de quanto lhe custaria a liberdade, Kurika trocou o conforto da casa e a comida abundante por uma vida incerta e uma subsistência difícil. Preferiu passar fome e dificuldades a viver amarrado a uma coleira. Esta ideia é repetida ao longo de toda a narrativa, não só através da descrição das dificuldades vividas pelo leão e pela macaca nos primeiros tempos na savana angolana, como também no final do romance, quando Kurika recusa voltar para casa do Conceição por causa da coleira: “Se não fora a coleira e a corrente de ferro – quem sabe! – talvez seguisse a tentação do Janota.

Só bem mais tarde percebi a coerência do pensamento do autor do romance “Kurika” e da operação “Dulcineia”. Percebi com Saramago que, Dulcineia, "do sangue de Quixote te alimentas, da alma que nele morre é que recebes a força de ser tudo."

Mas também aprendi o conselho de José Gomes Ferreira em “A Morte de D. Quixote”:

Dulcineia, Dulcineia,
deixe de ser Ideia
e torne-se a carne e a alma
da nova luta.

Sem comentários:

Enviar um comentário