quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A minha crónica dos bons malandros

 

Wilson “Sabu” no julgamento

Teria uns quinze anos quando conheci os irmãos Ormonde. Conheci bem o João, da minha idade, não tão bem o José João, quatro ou cinco anos mais velho do que nós.

Os pais Ormonde dos Santos eram proprietários e dirigiam Colégio Nuno Álvares que funcionava num prédio da praceta João do Rio, perto do Areeiro. Moravam na rua Carlos Mardel e o João, como estava muitas vezes de castigo e proibido de sair de casa, pedia-me para lá ir. Provavelmente o pai, um senhor austero e de poucas palavras, considerava que eu seria uma boa companhia para o filho e autorizava a minha presença.

O João tinha perdido uma vista numa brincadeira em criança. Julgo que se sentia complexado por isso e tinha alguma tendência para a asneira. O José João juntava-se a nós de vez em quando, mas sinceramente não tenho grandes recordações dele.

Quando o João tinha autorização paterna para sair, juntava-se ao grupo que se reunia no jardim da praceta João do Rio. Dali partíamos para as incursões a locais mais ou menos recomendáveis, numa descoberta do mundo por jovens adolescentes de origens sociais muito diversas.

Um dos nossos companheiros de aventura, o Joninho, morava na rua Actor Isidoro. Sonhava emigrar para os EUA, tinha uma irmã um pouco mais velha, a Olga Maria e uma mãe simpática, a Dona Suzette. No processo de reunir forças, passávamos muitas vezes pela casa dele sem me aperceber que houvesse uma relação especial dos irmãos Ormonde com a família Coelho.

Os anos passaram e cada um seguiu o seu caminho. Quando mudei para Carcavelos, perdi o contacto com a malta da praceta João do Rio e deixei de ter notícias do João, do José João, da Olga e da Dona Suzette. Até ao assalto da dependência da Pinto de Magalhães Banqueiros (Banco Pinto de Magalhães) na Avenida de Roma, no dia 21 de Junho de 1971, já eu estava na Marinha.

Perto do meio-dia, pouco antes do encerramento para o almoço, quatro homens entraram na agência bancária armados com dois revólveres e uma pistola-metralhadora. Imobilizaram o polícia e tiraram-lhe a arma, taparam as cabeças dos clientes e funcionários com sacos de pano com a palavra “Pão” bordada a cores, meteram cerca de 2 mil e quinhentos contos numa mala e saíram sem ninguém ter percebido para onde foram.

O subgerente, que se escondeu na casa de banho e tinha uma arma, teve medo de aparecer durante o assalto. Quando percebeu que já não havia perigo, veio para a rua e disparou sobre um carro que alguém apontou como dos assaltantes. O condutor, um oficial de Marinha, não gostou da façanha e apresentou queixa à polícia.

A avenida de Roma foi isolada, a PSP, a PJ e a DGS vasculharam toda a zona e foi reforçada a vigilância das fronteiras terrestres e aéreas. Traçavam-se os cenários mais mirabolantes, mas ninguém fazia ideia do paradeiro dos assaltantes e do dinheiro. Até que o telefonema de uma mulher para a PSP esclareceu o caso e levou à detenção dos assaltantes.

Todos ficámos a saber que o assalto foi planeado pelo José João e executado pelo João e três cúmplices aliciados para o efeito!

Meses antes, os irmãos Ormonde contrataram o bate-chapa e ex-marinheiro Wilson Filipe “Sabu”, uma figura do Bairro Alto e do Intendente, para ajudar nas aulas de Educação Física no colégio Nuno Álvares onde o já Dr. José João era subdirector. Não tardou muito que lhe propusessem o assalto e lhe pedissem que contratasse dois cúmplices: o António “Choco” ou “Feio”, engraxador no café Granada do Conde Barão e profissional da “vermelhinha”, e o Fernando Pio, ajudante de mecânico e antigo marinheiro.

O “Sabu”, o “Choco” e o Pio entraram na agência, neutralizaram os clientes, os funcionários e o polícia com um revólver e uma pistola-metralhadora de brincar (só um revólver e a arma que tiraram ao polícia eram a sério) e entregaram a mala com o dinheiro recolhido ao João que tinha ficado no exterior.

Depois do assalto, o “Choco” e o Pio, os dois “indivíduos aciganados” que segundo a descrição das testemunhas tinham “um aspecto terrível, com a barba por fazer, pareciam cadastrados”, foram à sua vida. O “Sabu” foi comprar um fato e cortar o cabelo enquanto o João foi a pé até à casa da Dona Suzette onde o irmão José João o esperava.

É que os irmãos Ormonde viviam agora em casa da Dona Suzette. O José João esteve noivo da Olga até poucos meses antes e instalou-se com o irmão em casa da família Coelho. Os irmãos chegaram mesmo a pedir 447 contos emprestados à Dona Suzette para abrir um restaurante que nunca se concretizou porque o José João preferiu comprar um Abarth 1300 por 100 contos. Com o rompimento do noivado com a Olga e a entrada em cena da Rosalina, convidada pelo José João para viver na casa da Actor Isidoro, a Dona Suzette exigiu o pagamento da dívida.

No final da tarde do assalto, os irmãos entregaram 25 contos à Dona Suzette com a promessa de que em breve lhe dariam mais 230 contos. Guardaram a mala com o dinheiro na despensa com a recomendação de que não deviam mexer porque tinha um frasco com um líquido perigoso que se podia entornar.

Logo que os irmãos saíram de casa, a curiosidade da mãe e da filha venceu o medo que tinham dos irmãos que se intitulavam viscondes. Foram bisbilhotar a mala e descobriram o dinheiro roubado.

Depois de conversarem durante alguns dias sobre o assunto com a vizinha Leonor e a porteira Encestina, decidiram telefonar à polícia. Do telefonema à detenção dos irmãos e cúmplices, foi um ápice. O dinheiro e as armas foram recuperados e o Abarth 1300 confiscado.

Realizado o julgamento, o José João foi condenado a 14 anos de prisão, o João a 12 anos, o “Sabu” a 7 anos e o “Choco” e o Pio a 6 anos cada.

Do João e do José João nunca mais ouvi falar. Do Wilson “Sabu” tive notícias em 1975 quando, libertado depois do 25 de Abril, liderou a ocupação da famosa herdade Torre Bela e a cooperativa que lá se constituiu. Vi-o discutir com o homem que não queria entregar a enxada à "comprativa". Morreu há menos de um mês, na véspera do Natal de 2020.

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