Sabendo da minha ligação a Peniche, o Vítor Manuel Birne ofereceu-me o livro do nosso camarada Raúl Patrício Leitão, “Putos da Minha Rua”, uma memória da sua infância e adolescência, dos amigos e da terra onde nasceu e cresceu. Numa escrita muito agradável, o Patrício Leitão descreve, com um detalhe impressionante, os mais variados episódios da juventude de um grupo de rapazes, na maioria penicheiros como ele, desde a instrução primária até à vida adulta.
Sendo eu quase sete anos mais novo que o Patrício Leitão, só o encontrei em 1974 na corveta António Eanes, ele Imediato e já com experiência de guerra como Fuzileiro em Moçambique e muitas horas de navegação na Hidrografia, eu ainda um jovem guarda-marinha no início da carreira naval. Apesar da diferença de idade, os meses da comissão nos Açores em circunstâncias muito particulares aproximaram-nos e permitiram perceber que os nossos percursos de vida na juventude tinham muitos pontos comuns.
Ao ler o livro “Putos da Minha Rua”, confirmei a percepção de há 45 anos e revi-me em muitos dos episódios contados pelo Patrício Leitão, embora tenha vivido a minha infância em latitudes bem diferentes. Quis a vida que, para além da Marinha, Peniche fosse o nosso elo de ligação, no caso dele porque lá nasceu e cresceu, no meu caso porque me casei com a Maria João, que só por capricho da natureza não nasceu em Peniche, mas lá cresceu e tem as raízes familiares.
As personagens principais do livro do Patrício Leitão são ele próprio e o amigo “Necas”, de seu nome completo Eduardo dos Anjos Costa. Três anos mais velho, o “Necas” foi o líder da “Seita do Soma e Segue”, o grupo de amigos que protagonizam as deliciosas aventuras e transgressões contadas pelo Patrício Leitão.
O “Necas” foi o primeiro neto da Guilhermina do Rosário Leitão, irmã do José do Rosário Leitão, proprietário do “Armazém de Pescarias - Amiga de Peniche”, na Avenida do Mar em Peniche. Tratava-se de um armazém de preparação e distribuição de peixe de que já falei noutra ocasião a propósito da Amiga de Peniche, um negócio que já vinha do pai Joaquim do Rosário Leitão, o primeiro dos Baterremos, a que se juntava um outro: a distribuição de água salgada aos outros armazéns da Ribeira a partir de um depósito de cimento e através de uma rede completa de encanamentos com bombas, válvulas e contadores!
Acontece que o José do Rosário Leitão, o “Zé Baterremos” lembrado no livro por ser tio-avô do “Necas” e lhe confiar conhecimentos náuticos e outros saberes, era o avô paterno da minha mulher e o meu elo de ligação com algumas das personagens das histórias contadas pelo Raúl Patrício Leitão.
As vivências contadas no livro, ressalvando os detalhes mais pessoais, acabam por ser as vivências de muitos da minha geração que, nascidos junto ao mar, cresceram a brincar na praia, fizeram incursões no interior rural e, pouco a pouco, se aproximaram de Lisboa, dos seus liceus e universidades e, finalmente, da Escola Naval e da Marinha. A luta diária das famílias pela sobrevivência, as escolas primárias das pequenas localidades, as regras e as cumplicidades dos bandos de putos que cresciam juntos, os jogos condicionados pelos caprichos do dono da bola, a ida à fruta nas fazendas dos outros, as paixonetas e os namoricos, a aprendizagem do corpo feminino através das cartas de jogar, as festas de aldeia e os bailaricos nas colectividades, a descoberta da vida boémia lisboeta, a entrada no mundo universitário, a vertigem das lutas académicas, a ida de amigos para a guerra, a sua perda, a imersão no mundo da Marinha, tudo isso fez parte da minha vida, não muito diferente do que o Patrício Leitão tão bem descreveu.
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