segunda-feira, 27 de julho de 2020

A lutadora


Confesso que quando o vírus chegou, tive medo. Não por mim, mas pela minha mãe. Interrogava-me como é que uma pessoa com quase noventa e três anos, física e intelectualmente autónoma, ciosa da sua independência e das suas rotinas, muitas fora de casa, iria reagir ao isolamento social imposto pela ameaça da doença.

Os primeiros dois meses não foram fáceis. Quebrar o hábito de anos de grande proximidade física com filhos, netos e bisnetos, de convívio com as amigas em lanches e encontros gastronómicos e em estadias prolongadas noutras paragens, de uma agenda preenchida de acordo com a sua vontade, foi uma grande mudança.

A minha mãe diz que não foi difícil, mas eu sei que foi. Notei uma quebra física que teve consequências, felizmente não muito graves. Psicologicamente, senti nela os efeitos das primeiras semanas de isolamento. Mas como em m uitas outras ocasiões, vi a minha mãe resistir e lutar, sem nunca se dar por vencida.

Inicialmente, depois de um episódio febril, pensou que o vírus a tinha atacado e poderia ter adquirido resistências. Não descansou enquanto não fez todos os testes possíveis, mas os resultados foram sempre negativos. O vírus continuava à espreita e tinha de ter muito cuidado, seguir todas as regras de segurança. E assim fez.

Passo a passo foi aprendendo a viver com a ameaça do vírus, a adaptar-se a uma nova realidade, sem abdicar do essencial da vida. Retomou as idas ao cabeleiro para estar bonita, às várias lojas do bairro, cada uma com a especificidade que só a minha mãe conhece, os encontros e os passeios com as amigas, sempre cumprindo rigorosamente as regras sanitárias.

Mas acima de tudo, foi recuperando o contacto com os netos e bisnetos. É certo que não com a frequência anterior, mas com a proximidade suficiente para matar a saudade dos afectos. Tem consciência do risco, mas procura o equilíbrio possível.

É por isso que começou a celebrar o aniversário na sexta-feira e continuará ao longo desta semana. Para a minha mãe e para nós que a amamos, uma vida de lutas não se celebra num dia ou numa festa. Celebra-se em cada dia conquistado à doença e ao medo.


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