sábado, 25 de outubro de 2025

O 25 de Abril e o separatismo açoriano


Passados 50 anos, reconheço que a reação imediata do MFA e do poder instituído após a Operação Viragem Histórica, ao desafio político separatista nos Açores não terá sido a mais adequada. Num contexto geopolítico em que os EUA consideraram apoiar a independência dos Açores, os movimentos separatistas açorianos, com fortes e evidentes ligações ao regime deposto, emergiram como uma reação conservadora e de extrema-direita ao processo revolucionário. O poder instituído e o MFA responderam inicialmente à agitação e violência separatista, como a manifestação de 6 de Junho de 1975, com repressão militar, ordenando detenções, mas optaram posteriormente, em Agosto de 1975, pela criação da Junta Regional dos Açores que assumiu o papel de governo provisório. Finalmente, a consagração da autonomia político-administrativa na Constituição de 1976, neutralizou a ameaça e levou ao declínio daqueles grupos com matriz ideológica fascista.

Alguns dos meus amigos açorianos, que conheciam bem a História dos Açores e os factores sociais e políticos por detrás do desafio separatista, afirmam que os militares de Abril não conheciam os Açores e, por isso, não terão tomado as melhores decisões. De facto, os militares de Abril, salvo o caso dos açorianos por nascimento ou afinidade, não tinham razões para conhecer melhor os Açores do que qualquer outra região desfavorecida de Portugal. É certo que as ilhas tinham condições geográficas particulares que agravaram as condições socioeconómicas a que o regime do Estado Novo votava tudo o que estava afastado do poder político e económico centralizador, burocrático, arrogante e autoritário, ou seja, de Lisboa e pouco mais. Não era preciso atravessar o Atlântico para conhecer a pobreza, o atraso, as dificuldades de sobrevivência que condenaram milhares e milhares de portugueses à emigração, em condições duríssimas, para as Américas e a Europa.

No entanto, não devemos esquecer que a sublevação militar contra a ditadura, concretizada por um grupo muito heterogéneo de jovens militares, foi preparada em poucos meses em torno de uma plataforma política mínima que naturalmente não contemplou a questão das regiões ou das autonomias. E depois do dia 25 de Abril de 1974, a torrente de problemas e conflitos não permitiu uma reflexão profunda no seio do MFA. A questão dos Açores e da Madeira, que alguns comparam errada e abusivamente à questão das colónias, nunca foi uma prioridade da acção do MFA e todas as decisões foram tomadas, para bem ou para mal, pelas forças políticas e partidárias da sociedade civil a quem foi entregue o poder. Os militares de Abril podem ser acusados de muitos erros, mas nesta questão não terão muitas responsabilidades.

No meu caso pessoal, pouco sabia sobre os Açores quando ali desembarquei durante o período de actividade mais acesa da FLA. Pouco mais de um mês depois do comunicado que reproduzo, em Novembro de 1975, cheguei a Ponta Delgada como oficial da guarnição da corveta “António Enes”, nomeada para uma comissão de seis meses nos Açores. Era um dos dois primeiros navios da Marinha que iriam permanecer nos Açores por um período prolongado depois dos incidentes de Junho. A "António Enes", comandada pelo então Capitão-tenente Duarte Costa, um oficial íntegro e competente implicado no 25 de Abril, era um navio altamente disciplinado e operacional, e talvez por isso tenha recebido aquela difícil missão.

É desnecessário descrever a hostilidade e as provocações ensaiadas pela minoria independentista, em particular em Ponta Delgada. Mas apesar disso, fomos capazes de cumprir integralmente a nossa missão. Permanecemos em Ponta Delgada nos períodos em que se justificava a nossa presença, sem nunca cedermos às ameaças de várias origens. Navegámos por todo o mar dos Açores, verificámos todos os alertas, em regra falsos, de pesca ilegal, actualizámos o roteiro de todos os fundeadouros como há muito não se fazia, tocámos todas as ilhas, arrostámos com temporais violentos para levar mantimentos e medicamentos a ilhas isoladas, em especial à Graciosa e a S. Jorge, cumprimos tudo o que nos foi exigido ao serviço do povo açoriano. E lembro-me que fomos sempre muito bem recebidos por quem compreendia a nossa missão. Passámos a quadra do Natal na Horta e a população tudo fez para que esquecêssemos a saudade das nossas famílias. Descontado o triste folclore dos apoiantes da FLA, só tive razões para gostar dos Açores e respeitar as suas gentes.

Regressado a Lisboa em Maio de 76, desembarquei para uma missão diferente noutro navio, mas a "António Enes" regressou aos Açores para nova comissão no Verão. Sei que, com outras unidades da Marinha, participou no esforço de transporte de material para construção ou melhoria das infraestruturas aeroportuárias das ilhas mais desfavorecidas. Em Novembro de 1976, regressei ao Açores na “João Roby” para uma nova comissão de seis meses. Cumpri de novo a missão com muito gosto, mesmo quando lutámos contra vagas impressionantes para transportar um doente grave das Flores para a Terceira.

Depois andei pelo mundo e tive oportunidade de conhecer alguma coisa da diáspora portuguesa e, em particular, da originária dos Açores. E apesar das características particulares relacionadas com a cultura e os hábitos de cada uma das regiões de origem, senti-me sempre, como português, profundamente irmanado com todos os açorianos, assim como com todos os madeirenses, transmontanos, beirões, alentejanos, algarvios, etc., que encontrei.

É por isso que sempre relativizei as questões do separatismo, do independentismo ou o que lhe queiram chamar. Para mim a questão fundamental em Portugal não era essa. Era sim a luta contra uma máquina do Estado e um poder económico centralizador, autoritário e burocrático, contrário aos interesses da maioria dos portugueses. E essa sim, foi uma luta que o MFA não teve engenho e arte para vencer.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Memória de uma casa


Vista da casa em 1955 (foto colorida)

Uma casa não é apenas pedra, tijolo e argamassa. Cada tábua do soalho, cada parede interior, cada telha do telhado guarda em si os ecos dos risos e dos prantos da família que ali viu nascer e desaparecer várias vidas. Por isso, estou certo de que a casa que os meus avós madeirenses — Maria Isabel Jardim Bettencourt, da freguesia de São Jorge, concelho de Santana, e António Jorge Bettencourt, da freguesia de Gaula, concelho de Santa Cruz — construíram em Moçambique, na Avenida Pinheiro Chagas, em Lourenço Marques, também guarda os ecos da minha família paterna.

Três gerações da família na casa (1955)

Nela vivi o meu primeiro ano de vida. Contava a minha mãe que só chorava ao fim do dia, quando o meu avô se atrasava a pegar-me ao colo para me mostrar todos os relógios da casa. Nela brinquei com os meus primos nas breves passagens por Lourenço Marques, determinadas pela atividade profissional do meu pai. Era o porto de abrigo na capital quando o meu pai foi colocado, primeiro, em Inhambane e, depois, em Quelimane. Nela fiz os trabalhos de casa durante o curto período em que frequentei a escola primária Rebelo da Silva, mesmo em frente, do outro lado da avenida. Dela me despedi há sessenta e seis anos, quando a grave doença do meu pai nos trouxe definitivamente para Portugal.

Mas a casa continuou a ser o lar da avó Isabel e do avô Bettencourt até à sua morte e, depois, do tio Toni e da tia Carlota. Só deixou de ser habitada pela minha família paterna quando os ventos da História permitiram que a terra onde nasci se tornasse um país independente. Depois disso, nada sei sobre quem ali viveu. Mas para mim, será sempre a casa dos avós.

Vista da casa no Google Maps (2025)

Hoje, a casa está diferente: mudou de cor, tem uma cobertura estranha, uma antena de satélite e aparelhos de ar condicionado. A avenida é agora Eduardo Mondlane, a escola primária chama-se 3 de Fevereiro e a cidade é Maputo. Nela está instalada a Direção Operacional da Lin Ambulâncias, uma das empresas do Grupo Lin, do empresário moçambicano Lineu Candieiro.

Mas não duvido que, de vez em quando, ao fim do dia, quem estiver mais atento naquela casa ouve o choro de uma criança à espera do colo do avô.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O Miguel e o Avô Aníbal




− Mamã, eu conheci o Avô Aníbal[1]?

− Não sei, meu Amor... o que tu achas?

− Eu acho que sim!

A paixão pela terra, pela natureza, o fascínio por transformar e construir coisas a partir de tudo e mais alguma coisa, o interesse no outro e a vontade de cumprimentar estranhos na rua ou no trânsito parado, herdaste do teu Bisavô.

Sim, Miguel, conheceste o teu Bisavô Aníbal! Tenho a certeza!



[1] Aníbal Jardim Bettencourt, nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique, em 6 de Junho de 1924. Casado com Maria da Conceição Martins Bettencourt, tiveram dois filhos, seis netos e doze bisnetos. Faleceu em 16 de Setembro de 2015, em Cascais, dois dias depois do Miguel nascer.


Saudade

 


Faz hoje dez anos que o meu Pai partiu, tinha cumprido o seu último objectivo.

Os últimos anos da vida do meu Pai foram difíceis. A saúde, bastante frágil, obrigou-o a sucessivos internamentos hospitalares. Mas, por mais grave que fosse a crise, dizia sempre que só iria para o forno crematório quando nascesse o décimo segundo bisneto. Como nem sequer havia projeto para esse bisneto, brincávamos com ele.

Mas inesperadamente, a neta Joana engravidou do Miguel. E durante toda a gravidez, sempre que estava com a Joana, o meu Pai perguntava quanto tempo faltava para o Miguel nascer. A resposta, mesmo que o tempo fosse cada vez menor, suscitava sempre a mesma reacção do meu Pai: "Eh pá, tanto tempo!"

Na semana que antecedeu o nascimento do Miguel, o meu Pai estava de novo internado, em estado muito crítico. Durante toda a semana, a Joana foi ao hospital à hora do almoço. No início da tarde, eu levava a minha Mãe, que tinha autorização para estar ao lado do meu Pai até eu voltar ao fim do dia, para o ver e trazê-la de volta a casa.

No dia 12, sábado, a Joana viu o Avô pela última vez. Aproximou-se, disse-lhe ao ouvido que gostava muito dele e que podia descansar, faltavam apenas dois dias, e tudo correria bem. O Avô respondeu com o seu habitual "Eh pá!!! Dois dias!". No domingo, a Joana já não foi ao hospital. Na segunda-feira, dia 14, nasceu o Miguel, em Lisboa — o tão desejado décimo segundo bisneto!

Os primeiros dias do Miguel não foram fáceis, devido a problemas respiratórios. Quando fui visitar a Joana na maternidade e conhecer o Miguel, não pude deixar de reparar na coincidência: o número do quarto era o mesmo daquele onde o meu Pai estava internado. E, ao olhar para o Miguel, impressionou-me a semelhança entre os equipamentos de suporte de vida de que ambos necessitavam.

Na terça-feira, dia 15, alterei a rotina: deixei a minha Mãe em Cascais e fui para Lisboa, para estar com a Joana e o Miguel. Depois, regressei a Cascais para ver o meu Pai e trazer a minha Mãe para casa. Pensava que aquela rotina se manteria por mais alguns dias, mas no dia seguinte, quarta-feira, 16, tudo mudou.

Estava com a João no quarto da maternidade em Lisboa, depois de deixar a minha Mãe em Cascais, quando recebi a má notícia. E recorro ao testemunho da Joana: “Recordo vivamente o que aconteceu no dia 16, na neonatologia, quando o Miguel começou a chorar desalmadamente do nada... quando cheguei ao quarto e vos contei, recebeste o telefonema da Avó. Há coisas que não se explicam, sentem-se. E é esse sentir que me conforta o coração. O Avô conseguiu alcançar o seu último objectivo. Tenho a certeza.”

Regressei imediatamente a Cascais para dar o último beijo ao meu Pai.

________________

“Perguntava muitas vezes se eramos felizes.
Preocupava-o não o sermos.
Para ele a felicidade nada tinha de supérfluo.
Fazer os outros felizes, respeitá-los e ser fiel eram a sua forma de ser e estar na vida, a fórmula correcta para descobrir a felicidade.
O outro era o lado maravilhoso da vida, da sua vida.
O privilégio foi nosso.
O lado maravilhoso da sua vida fomos nós.
Foi assim que nos fez sentir desde sempre e até ao fim.
E é assim que nos sentimos hoje.
Vivemos com saudade.
Mas celebraremos a vida e a felicidade.
Por ele e por causa dele.”

As palavras são da neta Catarina.
A saudade, essa, é de todos nós.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Pesar o Sol

 


Em 2019, para assinalar o Dia dos Oceanos, com o meu amigo professor Carlos Saraiva da Costa, falámos aos jovens do uso do astrolábio náutico na expansão marítima portuguesa e ensinámos a "Pesar o Sol", no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, junto à praia de Santo Amaro de Oeiras (hoje abandonado e degradado).

O Carlos usou o seu saber e experiência náutica, e um PowerPoint do projeto educativo "Este Mar" da Escola Secundária de Carcavelos, para enquadrar historicamente o uso do astrolábio. Eu procurei explicar o mecanismo de funcionamento daquele instrumento.
 
Preparei para isso um texto em que, para além dos componentes do astrolábio, citava a descrição de João de Barros e de Camões, no Canto V dos Lusíadas, da chegada da esquadra de Vasco da Gama à Angra de Santa Helena, onde desembarcaram para aguada e "tomar do Sol a altura". E na introdução, deixei esta brincadeira poética que intitulei "Pesar o Sol":

Suspende o piloto a roda, em metal forjada,
Com medeclina e pínulas, a luz a mirar.
No convés, um círculo solar vai projetar,
No limbo inverso, a distância é contada.

"Pesar o Sol", buscar seu ponto zenital,
Quando a alidade pára, em meio-dia exato.
Lê-se o grau preciso, em registo ou em trato,
Para a latitude certa, avanço capital.

Instrumento simplificado, de invenção lusa,
Do astrolábio planar, ao mar adaptado.
Superando o balanço, com engenho provado.

Foi farol na incerteza, rota que se recusa,
A navegar por estima, método limitado,
Traçando o Império, em caminho desvendado.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Do grito ao sonho

 


No palco de um país que um dia se sonhou,
Chegam vozes de longe, um grito ecoou.
Promessas de pão, de um futuro largo,
Mas o drama se revela, cruel e amargo.

No sítio que labuta, sob o sol a queimar,
Mão-de-obra que a terra insiste em chamar.
Qualificados na alma, com saber e pensar,
Em trabalhos sem rumo, a vida a definhar.

Nos contentores que abrigam, sem lei, sem pudor,
Muitas almas num espaço, de humilhação e dor.
Rendas que disparam, serviços a escassear,
Terra sonhada, a dignidade a roubar.

Redes de engano, com sorrisos de luz,
Retêm passaportes, amarrando à cruz.
Dívidas que sufocam, sem fim à vista,
Ameaças de denúncia, na sombra que insiste.

O medo das autoridades, uma prisão sem grade,
Onde a precariedade é mestre, e a liberdade se evade.
Exploração velada, em cada canto a espreitar,
Um trabalho sem contrato, que pode matar.

Discriminação, um olhar que fere e exclui,
Sobrecarga de horas, a saúde se esvai.
Frustrações e desânimo, no rosto se vê,
Um sonho que se perdeu, sem saber porquê.

Mas a solução não está no que já foi,
Nem no lamento, do que o tempo levou.
É erguer novas estruturas, num futuro a criar,
Onde terra, teto e trabalho sejam para se dar.

Que a economia não mate, mas sim faça viver,
E que a dignidade humana possa florescer.
Dar poder os oprimidos, para ouvir a sua voz,
Porque o sonho comanda a vida, e nos faz caminhar.


(Inspirado pelos artigos do jornal Público "Trabalho: estrangeiros sobrequalificados são quase o triplo dos nacionais" e "Mais de 2200 presumíveis vítimas de tráfico de seres humanos em seis anos. Apenas 11 tiveram direito a indemnização". E também pelo Papa Francisco e António Gedeão.)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Educação, Democracia e Cidadania em Portugal - Uma Análise Crítica




A comparação dos documentos da Direção-Geral da Educação (DGE) sobre a educação para a cidadania em consulta pública – "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" (ENEC) 2025 - consulta pública e "Cidadania e Desenvolvimento - Aprendizagens Essenciais" (AE) - consulta pública) – com os documentos antigos – "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" (ENEC) de setembro de 2017 e "Educação para a Cidadania – linhas orientadoras" de novembro de 2013 – revela uma evolução significativa na estrutura, obrigatoriedade e no aprofundamento de conteúdos, reflectindo o que a DGE entende serem novos desafios da sociedade contemporânea.


Comparação dos Documentos

1. Reorganização das Dimensões de Cidadania

  • Antigo Modelo (ENEC 2017): A estratégia antiga organizava os domínios em três grupos com diferentes níveis de obrigatoriedade.
    • 1º Grupo (Obrigatório em todos os níveis e ciclos): Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa), Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).
    • 2º Grupo (Obrigatório em pelo menos dois ciclos do ensino básico): Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva), Media, Instituições e participação democrática, Literacia financeira e educação para o consumo, Segurança rodoviária.
    • 3º Grupo (Opcional em qualquer ano de escolaridade): Empreendedorismo (nas suas vertentes económica e social), Mundo do Trabalho, Risco, Segurança, Defesa e Paz, Bem-estar animal, Voluntariado.
  • Novo Modelo (ENEC 2025): A nova estratégia congrega oito Dimensões, organizadas em dois grupos.
    • Grupo 1 (Obrigatório em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico e do Ensino Secundário): Direitos Humanos, Democracia e Instituições Políticas, Desenvolvimento Sustentável, Literacia Financeira e Empreendedorismo.
    • Grupo 2 (Obrigatório no 1.º ciclo do Ensino Básico, no conjunto dos 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico, e no Ensino Secundário, cabendo à escola escolher o(s) ano(s) de escolaridade em que cada uma será desenvolvida): Saúde, Risco e Segurança Rodoviária, Pluralismo e Diversidade Cultural, Media.

Esta reorganização significa uma clarificação e um reforço da obrigatoriedade de certas dimensões, que passam a ser abordadas de forma contínua ao longo de todo o percurso escolar.

2. Alterações e Redefinições de Dimensões Específicas

2.1. Retirado como Dimensão Autónoma

  • Sexualidade: Esta dimensão, que era explicitamente listada no 2º Grupo da estratégia antiga, foi retirada como dimensão autónoma na nova ENEC. A "Educação para a Saúde e a Sexualidade" na antiga estratégia visava dotar os alunos de conhecimentos, atitudes e valores para decisões adequadas à sua saúde e bem-estar, com foco na proteção da saúde e prevenção de risco, nomeadamente na área da sexualidade.
  • Igualdade de Género: Era um domínio explícito no 1º Grupo da estratégia antiga. Deixou de ser uma dimensão autónoma na nova ENEC.
  • Educação do Consumidor: Presente no 2º Grupo da estratégia antiga, não aparece como dimensão separada na nova ENEC.
  • Outros Domínios: Domínios do 3º Grupo da estratégia antiga como "Mundo do Trabalho", "Bem-estar animal", e "Voluntariado" não são dimensões autónomas na nova estrutura.

2.2. Conteúdos Integrados e Aprofundados (mesmo que a dimensão autónoma tenha sido retirada)

  • Sexualidade e Educação Sexual (Integração): Embora não seja uma dimensão autónoma, as Aprendizagens Essenciais (AE) da nova ENEC integram aspetos relacionados em outras dimensões:
    • A dimensão Saúde foca-se na promoção do "bem-estar físico e mental" e na "proteção contra todas as formas de violência (incluindo a exploração, o abuso e a ciberviolência)". No 2.º e 3.º ciclos, é explicitamente mencionada a necessidade de "Respeitar questões relacionadas com a intimidade e a privacidade de cada pessoa" e "Estabelecer relações interpessoais saudáveis, baseadas no respeito, na comunicação, na confiança e no consentimento".
    • A dimensão Direitos Humanos no 3.º ciclo inclui a análise de casos de "abusos sexuais" e "violência de género", bem como "violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas".
  • Igualdade de Género (Integração): Os conteúdos são integrados principalmente na dimensão Direitos Humanos, com aprendizagens como "Reconhecer que meninos e meninas podem realizar as mesmas atividades e ter as mesmas oportunidades" no 1.º ciclo, e "Debater a (des)igualdade de género em contextos como a educação, o trabalho e o exercício de cargos políticos" no 3.º ciclo. Na dimensão Democracia e Instituições Políticas do Ensino Secundário, a "desigualdade de género" é abordada como um desafio atual da democracia.
  • Educação Ambiental (Integração): Parece ser totalmente absorvida pela dimensão Desenvolvimento Sustentável na nova ENEC, que aborda explicitamente tópicos como a conservação da biodiversidade e práticas de produção e consumo sustentável.
  • Segurança, Defesa e Paz (Integração): Aspetos da segurança, defesa e paz, que eram um domínio opcional na antiga estratégia, são agora integrados na dimensão Democracia e Instituições Políticas da nova ENEC, que prevê o debate sobre o papel internacional de Portugal, nomeadamente na União Europeia, na co-construção de um mundo pacífico e livre, e a análise da importância da União Europeia na defesa da democracia e da paz.

2.3. Destaques e Novas Abordagens em Dimensões Atuais

  • Democracia e Instituições Políticas:
    • Maior Obrigatoriedade: Elevada para o Grupo 1, tornando-se obrigatória em todos os anos de escolaridade, o que representa um aumento significativo face ao modelo anterior onde estava no 2º Grupo.
    • Foco na Ética e Combate à Corrupção: A nova ENEC introduz explicitamente a temática da ética e integridade na governança democrática, detalhando a aprendizagem para "identificar comportamentos de integridade e de corrupção" (1.º ciclo), "compreender a natureza, incidência e extensão do fenómeno da corrupção" (2.º ciclo), "compreender as causas e os múltiplos efeitos da corrupção" (3.º ciclo) e "refletir, criticamente, sobre o papel dos cidadãos, do Estado e das organizações da sociedade civil na prevenção e combate à corrupção" (Ensino Secundário).
    • Papel Internacional de Portugal e União Europeia: Maior ênfase no debate sobre o papel internacional de Portugal e da UE.
  • Literacia Financeira e Empreendedorismo:
    • Combinação e Maior Obrigatoriedade: Na nova ENEC, estas duas áreas são combinadas e elevadas para o Grupo 1 (obrigatório em todos os anos). Na anterior, "Literacia financeira e educação para o consumo" estava no Grupo 2 e "Empreendedorismo" no Grupo 3.
    • Aprofundamento: Foco na tomada de decisões informadas sobre orçamento, poupança e investimento, e na ética e responsabilidade social no empreendedorismo.
  • Saúde:
    • Foco Ampliado: Além da alimentação e atividade física, a nova dimensão "Saúde" destaca a promoção da saúde mental e do bem-estar dos jovens, a "proteção contra todas as formas de violência (incluindo a exploração, o abuso e a ciberviolência)" e a "prevenção de consumos, comportamentos aditivos e dependências", bem como os "malefícios do uso excessivo de ecrãs".

·         Risco e Segurança Rodoviária:

    • Combinação: Combina o "Risco" e a "Segurança Rodoviária" da antiga estratégia (que estavam em grupos diferentes) numa só dimensão do Grupo 2.
    • Abordagem Integrada: Foco na identificação de perigos, minimização de vulnerabilidades e ações conscientes face a riscos naturais, tecnológicos e mistos, além da mobilidade segura e sustentável.
  • Media:
    • Novos Desafios: A nova ENEC aborda explicitamente o impacto da Inteligência Artificial na edição e publicação de conteúdos nas redes sociais, e foca-se na prevenção dos riscos online como "dependência, cyberbullying, discurso de ódio, polarização, trolling, sexting, sextorsão". Há um reforço da ênfase na "utilização crítica e segura das tecnologias digitais, da informação e dos conteúdos gerados por inteligência artificial".
  • Pluralismo e Diversidade Cultural:
    • Nova Designação e Abordagem Detalhada: Substitui a "Interculturalidade" da antiga estratégia por uma dimensão mais abrangente no Grupo 2.
    • Foco na Discriminação: Inclui a análise de "diferentes formas de discriminação, como racismo, xenofobia, anticiganismo, islamofobia, antissemitismo, misoginia, entre outras". Aborda também os desafios vivenciados por pessoas migrantes e a proteção dos direitos das minorias.

3. Aprendizagens Essenciais (AE) e Abordagem Pedagógica

  • Acréscimo de Detalhe nas AE: Os novos documentos, especialmente o "Cidadania e Desenvolvimento - Aprendizagens Essenciais ", fornecem uma descrição muito mais detalhada das Aprendizagens Essenciais por ciclo de ensino para cada dimensão. Isto inclui conhecimentos, capacidades, atitudes e valores, bem como ações estratégicas de ensino. A estratégia antiga de 2017 listava apenas os domínios sem o mesmo nível de detalhe nas AE por ciclo.
  • Ênfase na Experiência e Atitude Cívica: Ambas as estratégias enfatizam que a cidadania se aprende através de processos vivenciais e da participação ativa. A nova ENEC reforça a importância de os alunos serem autores e terem situações de aprendizagens significativas.

4. Operacionalização e Governança da Estratégia

  • Estrutura Mantida: A operacionalização mantém a abordagem transdisciplinar no 1.º ciclo do ensino básico, a disciplina autónoma nos 2.º e 3.º ciclos, e a componente transversal no ensino secundário.

·         Maior Detalhe e Clarificação de Papéis (Novo):

    • A nova ENEC especifica que o agrupamento de escolas/escola não agrupada deve elaborar e aprovar a sua própria "Estratégia de Educação para a Cidadania da Escola", definindo os anos para as dimensões do Grupo 2, o modo de trabalho, os projetos com a comunidade, as parcerias e os critérios de avaliação.
    • São claramente definidas as competências do Conselho Geral (aprovação da estratégia da escola) e do Conselho Pedagógico (aprovação dos critérios de avaliação).
    • O papel e as responsabilidades do Coordenador da Estratégia de Educação para a Cidadania da Escola são detalhados.
    • A avaliação interna das aprendizagens deve ser contínua, sistemática e com formas de recolha diversificadas.

5. Contexto e Desafios

  • Atualização dos Desafios (Novo): A nova ENEC atualiza a lista de desafios contemporâneos, adicionando explicitamente "a emergência da inteligência artificial, a saúde mental e o bem-estar dos jovens, as desigualdades socioeconómicas, a sustentabilidade, as migrações e a mobilidade internacional". A estratégia anterior mencionava desafios como sustentabilidade, interculturalidade, igualdade, e os riscos de fragmentação social, desinformação e polarização.


Fragilidades Estruturais da Educação para a Cidadania

Antes de prosseguir, quero expressar a minha opinião de que, enquanto a Educação para a Cidadania for um edifício com fundações muito frágeis, construído de cima para baixo com textos oriundos do Ministério da Educação, e a responsabilidade pela Educação para a Cidadania nas escolas for quase exclusivamente atribuída aos Diretores de Turma (DT), pouco do que se propõe terá real impacto.

Para que as estratégias sejam bem-sucedidas, mesmo as bem pensadas com boas intenções, é necessário que a maioria das escolas tenha vontade ou condições para fazer da Educação para a Cidadania um projeto multidisciplinar que envolva a direção, professores de diferentes áreas, assim como especialistas e entidades externas.

No entanto, há escolas que apesar de tudo continuam a realizar "milagres" na área da Cidadania. A título de exemplo, refiro os projetos "Semear Abril" e "Abril Hoje", nos quais participei nos últimos anos, considerando-os muito gratificantes para mim e, a julgar pelas avaliações, para os alunos.

Análise da Nova Dimensão Democracia e Instituições Políticas

Revistas as alterações globais que os documentos em consulta pública introduzem na Educação para a Cidadania, concentrar-me-ei agora na análise crítica do que é estabelecido, em particular, para a dimensão Democracia e Instituições Políticas, anteriormente designada Instituições e Participação Democrática.

Em 2018, participei na elaboração de uma proposta da Associação 25 de Abril à DGE para um referencial do domínio Instituições e Participação Democrática. Com base nas recomendações do Conselho da Europa, definimos objetivos para os diferentes níveis de escolaridade. O nosso propósito era preparar os futuros cidadãos para viver em sociedade, resolver conflitos, assumir responsabilidades, compreender e aceitar as regras do Estado de Direito e os mecanismos de representação democrática, e participar na governação do país.

O referido referencial, que contou com contributos de outras instituições, só foi divulgado em 2024, após uma muito longa gestação para uma muito curta vida (um ano). Embora não tenha cumprido os objetivos nele estabelecidos, irei usá-lo como referência para a avaliação das Aprendizagens Essenciais (AE) definidas nos novos documentos para a dimensão Democracia e Instituições Políticas.


Omissões e Modificações Relevantes nos Novos Documentos

Abaixo, apresento um levantamento do que é retirado ou modificado nos novos documentos da DGE, em comparação com o referencial de 2024:

  • História da Democracia Portuguesa: É retirada qualquer alusão a factos relevantes da História da democracia e das instituições democráticas em Portugal. Não é referida nem reconhecida a importância do 25 de Abril de 1974 na construção da democracia política em Portugal.
  • Conceitos Fundamentais da Democracia: São omitidos os critérios que permitem identificar as características de uma democracia, os princípios e os valores em que assenta, assim como a distinção entre os tipos de democracia (directa, semidirecta, representativa) e a sua aplicação ao sistema português.
  • Poderes do Estado e Órgãos de Soberania: Não há qualquer referência à importância da separação e interdependência dos três poderes do Estado – legislativo, executivo e judicial – nem aos órgãos de soberania que os exercem.
  • Sistemas de Governo e Actores Políticos: Não são identificados e comparados os diferentes tipos de sistemas de governo: parlamentarismo, presidencialismo, semipresidencialismo. Não é abordado o papel dos partidos políticos e dos movimentos de cidadãos no exercício do poder político.
  • Funcionamento do Estado Português: Não é dado a conhecer como funciona o Estado Português, incluindo os princípios fundamentais da organização do Estado português, o Orçamento do Estado como instrumento de coesão política e social, e a importância do Orçamento do Estado na vida dos cidadãos.
  • Regiões Autónomas e Comunidades Portuguesas: Não são referidas as Regiões Autónomas (importância da existência de órgãos de governo próprio nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira). Não são referidas a diversidade das comunidades portuguesas fora do território de Portugal e as suas preocupações.
  • Mecanismos de Participação Cívica: Não são especificadas as formas de participação no processo legislativo (petição, referendo, iniciativa legislativa de cidadãos), nem outros mecanismos de participação para além do voto.
  • Sistema Eleitoral e Responsabilidade dos Eleitos: Não é explicado o sistema eleitoral português, a responsabilidade dos eleitos e os diferentes tipos de eleições.
  • Instituições de Defesa de Direitos: Não é explicitado o papel de instituições como o Provedor de Justiça, Ministério Público e Tribunais na defesa de direitos, nem a forma de recorrer ou reclamar junto das instituições públicas.


Novos Focos Introduzidos pelos Documentos

Por outro lado, os documentos em consulta pública introduzem novos focos, com especial ênfase em:

  • Combate à Corrupção: Abordado em todos os ciclos de ensino, desde a identificação de comportamentos de integridade (1.º Ciclo) até à reflexão crítica sobre o papel dos cidadãos, do Estado e da sociedade civil na prevenção e combate (Ensino Secundário).
  • Desenvolvimento de Competências de Diálogo: Valoriza a importância da paz e da não-violência no convívio diário.
  • Boa Governança: Salienta a importância dos valores constitucionais e dos princípios éticos e de integridade para uma governança democrática.
  • Reflexão Crítica sobre Desafios Contemporâneos da Democracia: Incentiva os alunos a refletir sobre desafios atuais como o discurso de ódio e a desigualdade de género.


Conclusão Crítica

Em suma, a nova "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" e as "Aprendizagens Essenciais" para a componente curricular de Cidadania e Desenvolvimento representa uma reestruturação mais coesa e focada, elevando a obrigatoriedade de dimensões consideradas fulcrais para a cidadania ativa (como a Democracia e Instituições Políticas), e integrando explicitamente novos desafios sociais (como a ética e combate à corrupção, a saúde mental e os riscos da inteligência artificial e online). Paralelamente, os conteúdos de dimensões como a sexualidade e a igualdade de género são integrados transversalmente em outras áreas, em vez de terem um estatuto autónomo. A operacionalização é mais detalhada, com uma clarificação de responsabilidades e uma forte ênfase na implementação de Aprendizagens Essenciais concretas.

No que concerne às Aprendizagens Essenciais da dimensão Democracia e Instituições Políticas, omitem os conceitos históricos da construção da democraticidade de Portugal e a sua contribuição para o exercício da cidadania na democracia representativa e participativa consagrada na Constituição da República Portuguesa.

Embora a nova dimensão Democracia e Instituições Políticas seja elevada para o Grupo 1, tornando-se obrigatória em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico e Secundário, ela tende a focar-se exclusivamente no atual sistema político, em detrimento do estudo de outras soluções ou do aprofundamento dos mecanismos de participação dos cidadãos no governo do país.

Parece-me também haver uma clara influência dos "novos ventos políticos", em particular do discurso populista da corrupção. No entanto, estou convencido de que a corrupção não é a causa principal da fragilidade da Democracia portuguesa e do afastamento dos portugueses do regime democrático. Outros factores relevantes para o mau funcionamento do regime democrático como, por exemplo, o processo eleitoral de escolha dos representantes dos cidadãos, não são sequer abordados

Podemos encarar a Educação para a Cidadania como a construção de uma casa. Os novos documentos da DGE são como as "plantas" mais recentes para esta casa. Apesar de algumas novidades e reforços (como o combate à corrupção em todos os andares), estas novas plantas removeram importantes pilares históricos do alicerce da casa (como o 25 de Abril e os princípios fundamentais do nosso regime democrático). Além disso, a casa continua a ter "fundações muito frágeis", pois a sua construção depende demasiado de um pequeno grupo de "empreiteiros" (os Diretores de Turma) e de ordens "de cima para baixo". É como tentar modernizar uma casa adicionando novas comodidades, mas, ao mesmo tempo, ignorando ou removendo elementos cruciais da sua estrutura e da sua história, o que pode comprometer a sua solidez a longo prazo.


terça-feira, 22 de julho de 2025

PBS NewsHour



Foi com preocupação que assisti a esta declaração dos apresentadores do PBS NewsHour sobre o corte do financiamento federal da PBS (Public Broadcasting Service), uma medida que atinge cerca de 15% a 16% do seu orçamento total. Como espectador quase diário do PBS NewsHour, não posso deixar de me sentir solidário com os jornalistas da PBS.

A PBS, oficialmente lançada nos EUA em outubro de 1970 como sucessora da National Educational Television, emergiu da visão de que a televisão pública deveria oferecer um serviço de qualidade, focado na educação e informação, livre das pressões comerciais. A sua importância para os EUA, e para o mundo, é inegável. Lembro-me bem de como foi importante para a minha família quando vivi na Califórnia. Programas como o icónico "Sesame Street" foram cruciais para a minha filha Joana, ajudando-a a aprender inglês de uma forma divertida e envolvente. 


Este programa infantil, é reconhecido por ensinar empatia, curiosidade e inclusão, moldando gerações em todo o mundo. Em Portugal, a versão portuguesa do programa, intitulada "Rua Sésamo", estreou-se na RTP1 em novembro de 1989 e foi transmitida pela RTP até maio de 1996. Marcou a infância de muitos trintões e quarentões portugueses.

Além da educação, a PBS tem sido consistentemente reconhecida pela confiabilidade e objetividade do seu jornalismo. O PBS NewsHour, em particular, é aclamado pela sua reportagem sólida, fiável e credível, sendo classificado como a instituição mais confiável nos EUA há 13 anos consecutivos. Esta reputação deve-se, em parte, à sua política de independência editorial, que estabelece uma "barreira de proteção" entre as decisões de cobertura noticiosa e as suas fontes de receita.

Foi a essência deste serviço público que Trump atacou com o decreto executivo intitulado "Ending Taxpayer Subsidization of Biased Media". Trump justificou a medida alegando que a PBS e a NPR (National Public Radio) forneciam "cobertura noticiosa tendenciosa", classificando-as como "máquinas de propaganda de esquerda radical". Apesar de tentativas anteriores de republicanos para cortar este financiamento desde a era de Richard Nixon, esta acção de Trump constituiu um sucesso sem precedentes, depois da aprovação final pela Câmara dos Representantes.

Este ataque à PBS alinha-se com o que é detalhado no "Project 2025", um plano abrangente da direita americana para o governo de Trump. Este projeto defendia o fim do financiamento federal para a radiodifusão pública, alegando que é "ultrapassado e desnecessário" e que os organismos como a NPR e a PBS são "emissoras esquerdistas". A execução rigorosa deste roteiro por parte de Trump, neste como em muitos outros sectores, acaba por ser um "manual" para a extrema-direita global, reverberando em movimentos políticos por todo o mundo, incluindo na direita radical portuguesa.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

O salário mínimo é uma prisão?


Carlos Moreira da Silva  Rui Gaudêncio

Quando regressei da pós-graduação em Engenharia Mecânica nos EUA, fui colocado no Gabinete de Estudos. O Gabinete de Estudos era um organismo da área do Material da Marinha que, para além de outras funções, servia de depósito de dois tipos de oficiais de engenharia: os “politicamente incorrectos” como, por exemplo, o Begonha e o Serrano, e os com qualificações que a área do Pessoal não sabia ou não queria gerir, como era o meu caso e de outros oficiais, dos quadros permanentes ou a cumprir o serviço militar obrigatório.

Entre os últimos, lembro-me de um em particular. Depois de se formar em Engenharia Mecânica no Porto, porque gostava de automóveis, foi convidado para professor assistente de Investigação Operacional na Universidade e para trabalhar com o engenheiro Valente Oliveira na Comissão de Planeamento Regional do Norte, onde "aprendeu a fazer coisas bem feitas, coisas que ninguém fazia ainda, e que iam contribuir para melhorar o país." Na sequência dessa actividade, fez o Mestrado em 1978 e o Doutoramento em Inglaterra, em 1982, sempre na área da investigação operacional e da gestão empresarial. Quando, em 1983, foi chamado para o serviço militar na Marinha, com 31 anos, já tinha casado duas vezes e tido dois filhos, mas nunca tinha exercido engenharia mecânica.
 
Mas para a Marinha o currículo em investigação operacional e gestão empresarial era irrelevante e o doutorado foi colocado no Gabinete de Estudos a desempenhar funções de técnico especialista de ar condicionado de navios! Ocupou a secretária em frente da minha durante seis meses e, muitas vezes, partilhámos o sentimento de que o investimento que o país tinha feito em nós não estava a ser aproveitado. Cumpríamos o que o chefe nos mandava fazer, mas bastantes frustrados.

Passados os seis meses, o doutorado conseguiu que o pusessem a dar aulas na Escola Naval e ali completou os dois anos de SMO, a ganhar uma ridicularia que quase não dava para pagar as viagens de comboio entre Lisboa e o Porto, onde tinha a família e, entretanto, tinha nascido a terceira filha. Naturalmente que com a ida para a Escola Naval, diminui o contacto com ele, mas de quando em vez fui tendo notícias da sua carreira profissional e empresarial.

Uma carreira empresarial de sucesso que fez do Carlos Moreira da Silva – sempre os três nomes a evidenciarem a importância de se chamar Silva, como notava o Begonha – o nono mais rico de Portugal, segundo o ranking da Forbes dos 50 milionários portugueses. De acordo com a revista, o empresário nortenho tem uma fortuna avaliada em 1 613 milhões de euros.

Como os nossos caminhos nunca mais se cruzaram, devem estar a pensar por que razão me lembrei agora dele. É que hoje, quando tomava o pequeno-almoço e ouvia o noticiário das 7 da TSF, a jornalista introduziu uma notícia com a afirmação de que “o salário mínimo é uma prisão que está a atrasar o crescimento da economia”! Esclareceu depois que tal leitura era do Presidente da Associação Business Roundtable Portugal, que junta as 43 maiores empresas portuguesas e que iria promover uma conferência com o sugestivo lema “Ctrl+Alt+Portugal - Reiniciar para Crescer”1.
 
E passou a palavra ao Presidente da Associação, Carlos Moreira da Silva, que esclareceu: “Portugal, enfim, a partir de 2000, perdeu o sonho coletivo e cresceu muitíssimo pouco durante mais de 20 anos. Isto acontece porque nós não temos sido capazes de ativar a economia de uma forma mais contundente. Nomeadamente os temas da burocracia, portanto um Estado muito pesado que cerceia a capacidade de crescimento da economia, um sistema fiscal muito pesado. Repare, nós passámos de 4% das pessoas que tinham um salário mínimo em 2000 para 24% em 2023. É inadmissível e isto, esta prisão ao salário mínimo afeta de forma significativa o crescimento da economia.”

Claro que o Carlos Moreira da Silva não ligaria nenhuma ao que eu lhe dissesse, mas se por acaso o encontrasse, dir-lhe-ia que se preocupasse menos com o Estado e incentivasse mais os seus amigos empresários da associação que dirige a libertar os trabalhadores portugueses da prisão do salário mínimo. Portugal ficaria bem melhor.



1 Grande Conferência BRP 2025.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Edifício Arte Contínua - Memória


Desenho de Eduardo Salavisa

Há cinco anos, abruptamente, o sonho terminou.


Em 3 de Outubro de 2019, três semanas antes de deixar o cargo, a Secretária de Estado da Defesa Nacional do XXI governo de António Costa e do Ministro da Defesa Nacional João Gomes Cravinho, assinou um protocolo entre o Ministério da Defesa Nacional (MDN) e o Município de Oeiras (CMO) que previa a futura cedência pelo primeiro ao segundo do edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, junto à praia de Santo Amaro de Oeiras, para instalação de um “Centro de Interpretação da Barra” cujo director seria “nomeado pelo Ministério da Defesa Nacional, o qual asseguraria a respetiva remuneração.” Nesse protocolo, que foi celebrado pelo prazo de um ano, prorrogável por iguais períodos, o Município de Oeiras comprometeu-se a assegurar desde logo a segurança, conservação e manutenção do edifício.


Na prática, depois da assinatura do protocolo com o MDN e do convite público ao Dr. Boiça para coordenar o "Centro de Interpretação dos Fortes de Defesa da Linha de Costa Aqui de Lisboa, no dito Forte do Areeiro, que não é forte...", em 19 de Outubro de 2019, a CMO comprometeu-se a manter o estado em que o edifício lhe foi entregue pela associação cultural “Colectivo a Postos” em Junho de 2020, depois da interrupção do projecto Edifício Arte Contínua que o Vice-Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, numa intervenção na sessão da Assembleia Municipal de Oeiras do dia 18 de Fevereiro de 2020, desvalorizou e caluniou.


Aquele senhor, de nome Emanuel Francisco dos Santos Rocha de Abreu Gonçalves, na intervenção na sessão da Assembleia Municipal difundida em directo para todo o mundo através da Internet, decidiu tecer considerações sobre o projecto Edifício Arte Contínua e sobre a associação cultural sem fins lucrativos “Colectivo a Postos”, de que fui membro fundador e cujos órgãos sociais integrei, que o dinamizou no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa.

O Vice-Presidente da CMO afirmou ou deu a entender:
  • Que a CMO só foi convidada a ter um papel activo na utilização e conservação do edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa depois do protocolo que assinou com o MDN em Outubro de 2019; 
  • Que desconhecia o papel dos serviços da CMO na concepção e arranque do projecto Edifício Arte Contínua em 2018; 
  • Que não teve conhecimento da intervenção realizada pelo “Colectivo a Postos” e pelos seus parceiros, na fase inicial com o apoio da CMO, para a recuperação do edifício e do espaço envolvente depois de uma década de abandono, saque, vandalismo e ocupação com práticas degradantes; 
  • Que não sabia que a CMO foi informada de todas as iniciativas e propostas para que o projecto Edifício Arte Contínua e as suas iniciativas tivessem a mais ampla participação de todas as entidades públicas, privadas, de solidariedade social e associativas do Concelho de Oeiras, incluindo a própria CMO; 
  • Que desconhecia que nada foi realizado no edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa sem conhecimento do proprietário e da CMO; 
  • Que ignorava que a direcção do “Colectivo a Postos”, depois de ter conhecimento, através das redes sociais, da assinatura do protocolo com o MDN, se reuniu com a presidência da CMO para discutir e definir o futuro do projecto Edifício Arte Contínua
  • Que desconhecia que o responsável pela cultura da CMO informou o “Colectivo a Postos” que o projecto Edifício Arte Contínua poderia permanecer no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa até Junho de 2020.
Apesar de tudo o que sabia, ou devia saber, o Vice-Presidente da CMO resolveu tecer publicamente considerações surpreendentes sobre o projecto Edifício Arte Contínua e a associação “Colectivo a Postos” que o dinamizava, considerações essas falsas ou caluniosas.

Depois de uma vida e de uma carreira profissional que procurei que fosse exemplar como cidadão, militar, democrata e homem de bem, foi preciso chegar aos setenta anos para que um político que tem idade para ser meu filho e não me conhecia de lado nenhum, ousasse insinuar publicamente, entre outros dislates, que não cumpri as regras e a lei; que fiz um “gato” ou baixada eléctrica da rede pública, que roubei água sabe-se lá de onde e que ocupei ilegalmente um edifício público, sem autorização do proprietário, no caso o Ministério da Defesa Nacional.
 
E o problema é que as insinuações caluniosas do Vice-Presidente da CMO não atingiram só a mim. Atingiram, em especial, as minhas filhas, os meus amigos e os inúmeros cidadãos que comigo e, principalmente, com as minhas filhas, se esforçaram para, num acto singelo e desinteressado de cidadania, prestar um serviço à comunidade e contribuir para a construção de uma sociedade melhor.

Posteriormente, em Maio de 2021, ano de eleições autárquicas, a CMO promoveu a exposição 'Fortificações de Oeiras - Património do Tejo e do Mundo' no Centro Cultural no Centro Cultural Palácio do Egipto. Constatei então que a imagem do que antes era uma quase ruína e foi recuperado por iniciativa da associação “Colectivo a Postos”, serviu de cenário para uma operação de propaganda do executivo da CMO. Nela foi anunciado que o edifício seria o "núcleo central" de um futuro “Museu do Tejo”.


Mas malgrado os discursos dos responsáveis da CMO, hoje, mais de cinco anos depois da CMO assumir a guarda do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa e pôr fim ao projecto Edifício Arte Contínua, a realidade é bem diferente do prometido.

O edifício militar que foi primeiro Bateria e depois Posto de Vigilância durante o século XX, foi abandonado, vandalizado, saqueado e ocupado por marginais durante boa parte da segunda década do século XXI. Por iniciativa da associação “Colectivo a Postos” e na sequência de um acordo com o MDN, o edifício foi reabilitado com o projecto Edifício Arte Contínua

Dinamizado por cidadãos que voluntariamente, com sacrifício dos tempos livres e sem nenhuma contrapartida financeira ou de qualquer outra natureza, o projecto Edifício Arte Contínua recuperou o espaço e realizou uma série impressionante de eventos culturais com a participação de muitas centenas de jovens e menos jovens.



Em Outubro de 2019 estava caiado a amarelo por fora e a branco por dentro. Tinha 25 chaves de portas de espaços e salas limpas e recuperadas por miúdos e graúdos. Tinha nele mais História guardada.

Desenho de Eduardo Salavisa

Durante um ano foi uma "casa que não se quis margem, mas antes convergência, encontro e centro", vivenciados na recuperação, na preparação das iniciativas mensais, nas contribuições de todos aqueles que ali criaram e deram de coração. Permitiu que centenas de alunos encontrassem os poetas à beira-mar. Abriu as portas à fruição do teatro, da literatura, da pintura, da escultura, da ilustração, da música, da arte, por todos os que quiseram entrar. Sentiu o mar e ensinou a navegá-lo. Celebrou a liberdade, a cidadania e o 25 de Abril.

Com a assinatura do protocolo entre o MDN e a CMO, terminou o projecto Edifício Arte Contínua. E cinco anos depois do espaço ser entregue à guarda da CMO, voltou a estar abandonado, degradado e vandalizado. Desta vez ainda mais do que antes!

Vale a pena espreitar o edifício quase irreconhecível com janelas e portas emparedadas, junto à Marginal, a oeste da praia de Santo Amaro de Oeiras, entre o parque de estacionamento automóvel e o Forte de Santo Amaro ou do Areeiro. Terão oportunidade de constatar a degradação do património público que um dia foi motivo de orgulho dos muitos adultos, jovens e crianças que viveram o sonho do projecto Edifício Arte Contínua.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Emigrantes envergonhados

 


Na mais recente edição das conversas “Olhos nos Livros: Palavras de Costa a Costa” organizadas pelo meu amigo Diniz Borges e pelo Portuguese Beyond Borders Institute que dirige na Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno, participaram, para além do próprio Diniz Borges, o professor José Luís da Silva, na Califórnia, e a professora Manuela Marujo, que leccionou no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Toronto entre 1985 e 2017 e onde, actualmente, é Professora Associada Emérita.

Para além da habitual e sempre interessante resenha de livros sobre a experiência da emigração portuguesa na América do Norte, designadamente nos Estados Unidos e no Canadá, desta vez os participantes terminaram com uma reflexão sobre a forma como portugueses, no território nacional, encaram a emigração que continua a engrossar as comunidades de quatro milhões de portugueses e luso-descendentes espalhadas pelo mundo.
 
A professora Manuela Marujo, depois de lamentar a inexistência em Portugal de um centro de estudos da emigração onde fosse possível aos investigadores e aos jovens que fazem mestrados e licenciaturas sobre aquela temática, consultar os livros e ensaios publicados no seio das comunidades emigrantes e encontrar referências sobre os processos de integração social e de preservação da identidade cultural, da língua e cultura portuguesas, que essas comunidades asseguraram e asseguram, na esmagadora maioria dos casos sem qualquer apoio do governos em Portugal, procurou reflectir sobre as razões do desinteresse pelo estudo da emigração em Portugal.
 
A professora Manuela Marujo notou que, neste momento, todas as suas amigas em Portugal continental têm os filhos no estrangeiro, um na Holanda, outro na Itália, outro no Dubai. Mas apesar da emigração continuar, ninguém se considera emigrante. E quando esteve numa universidade da terceira idade e disse “sou emigrante há 40 anos,” as pessoas olharam para ela “assim um bocadinho incomodadas,” e perguntaram: “Quer dizer, a professora…, é professora, não é?” Emigrar e emigrante são palavras que as pessoas não querem usar. “Ninguém usa a palavra emigrada.”

De facto, hoje ninguém que sai de Portugal para ir trabalhar no estrangeiro, é emigrante. É “residente no estrangeiro” ou “expatriado”. Para os portugueses de hoje, possivelmente vítimas do complexo da “mala de cartão da Linda de Suza” ou das condições de vida degradantes que Gérald Bloncourt tão bem soube captar com a sua câmara fotográfica, emigrantes eram os portugueses incultos que a pobreza e a ditadura salazarista empurraram para fora de Portugal; residentes no estrangeiro ou expatriados são os portugueses que actualmente, com os níveis de educação superior que o regime democrático de Abril proporcionou, vão procurar no estrangeiro as oportunidades de trabalho e realização pessoal e profissional que não encontram em Portugal.

Ou será, como admitiu a professora Manuela Marujo, que a negação da condição de emigrante é uma desculpa para a forma como tratamos os imigrantes? Ao não nos assumirmos como um povo emigrante, tratamos os outros como se fossem diferentes de nós.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Populismo e democracia

 

Resultados globais das eleições no território nacional

A relação entre populismo e democracia é complexa e desafiante. O populismo do Chega, semelhante ao que teve sucesso nos EUA e noutros países, utiliza os mecanismos da democracia representativa para tentar conquistar o poder, enquanto põe em causa os princípios e valores democráticos. Divide a sociedade em dois grupos antagónicos — o “povo puro” e a “elite corrupta” — e reivindica representar a vontade do “povo puro”, simplificando questões complexas e promovendo soluções rápidas, simplistas e autoritárias. Através de um discurso fácil de entender, fomenta a concentração do poder, ataca a imprensa livre e desvaloriza a importância do poder judicial. O populismo corrói a confiança pública e polariza a sociedade.

Instituições democráticas sólidas são a espinha dorsal da democracia, sendo crucial garantir a eficácia e independência do poder judicial, a transparência nos processos legislativos, nas ações governamentais, nas finanças públicas e nas decisões políticas, bem como a responsabilização dos representantes eleitos. É urgente realizar reformas institucionais que promovam o exercício da cidadania democrática. Uma cidadania bem informada é essencial para a democracia. Investir na educação cívica, ensinando os valores democráticos, os direitos e deveres dos cidadãos e a importância das instituições democráticas, pode criar uma população mais crítica e consciente. Além disso, a alfabetização mediática pode ajudar os indivíduos a reconhecer e resistir à desinformação e à propaganda populista.

Embora o populismo possa expor falhas e lacunas das democracias, é o seu maior inimigo. Por isso, é necessário defender o Estado de direito democrático consagrado na Constituição da República Portuguesa, o que exige um compromisso contínuo com o fortalecimento das instituições democráticas, a educação cívica, o diálogo pluralista e a transparência governamental. Infelizmente, este compromisso parece ainda não ter sido plenamente compreendido pelos partidos democráticos.

sábado, 17 de maio de 2025

Em dia de reflexão

 


A democracia é celebrada por muitos como o sistema político que melhor reflecte os desejos e necessidades dos cidadãos. No entanto, as suas complexidades e subtilezas são muito relevantes, especialmente quando se considera a participação e a representação no processo democrático.

A essência da democracia reside na soberania do povo, isto é, na ideia de que o poder emana dos cidadãos e deve ser exercido em seu benefício. Mas a democracia representativa consagrada na nossa Constituição não se limita apenas ao acto de votar. Ela inclui também a proteção dos direitos e liberdades individuais, a existência de um sistema judicial eficaz e independente e a garantia de que as decisões tomadas pelo governo, o são de maneira transparente e responsável.

Deste modo, a participação dos cidadãos é um dos pilares fundamentais da democracia. Envolve não apenas o direito de votar, mas também a possibilidade de os cidadãos expressarem suas opiniões, de se envolverem em debates públicos e influenciar as políticas governamentais. A participação activa dos cidadãos é essencial para garantir que o governo permanece responsivo e responsável. Sem uma participação efectiva dos cidadãos, a democracia corre o risco de se tornar uma mera formalidade, onde as eleições são realizadas, mas o verdadeiro poder permanece nas mãos de uma elite.

Por outro lado, a representação é um conceito central e é crucial para o funcionamento prático daquela democracia. Representar alguém ou “outrar”, exige uma relação próxima, consideração pelo outro e confiança. E compreende a "representação formal", que se refere ao sistema institucional pelo qual os representantes são escolhidos, e a "representação substantiva", que diz respeito à forma como os representantes realmente agem em nome dos representados.

Assim, a verdadeira representação política vai para além de simplesmente agir de acordo com a vontade dos eleitores. Inclui a capacidade de tomar decisões informadas e justas, mesmo que essas decisões não sejam populares no curto prazo. Este conceito é fundamental para entender a tensão entre a necessidade de os representantes darem resposta às exigências imediatas dos seus eleitores e a necessidade de tomar decisões que considerem o bem-estar a longo prazo da sociedade.

No entanto, a inter-relação entre democracia, participação e representação é complexa. A participação dos cidadãos é essencial para garantir que os representantes permaneçam identificados com as necessidades e desejos da população. Mas a representação também exige que os representantes tenham a liberdade de tomar decisões informadas, mesmo que essas decisões possam não ser imediatamente populares. Esse equilíbrio delicado é um dos principais desafios das democracias modernas.

Além disso, a exclusão de certos grupos da participação plena – seja por razões económicas, sociais ou culturais – pode minar a legitimidade e eficácia da democracia. Nunca é demais enfatizar a importância de garantir que todos os cidadãos tenham as mesmas oportunidades de participar e serem representados, de modo que a democracia possa realmente refletir a diversidade e complexidade da sociedade.

A democracia é um processo contínuo que exige a participação ativa e informada dos cidadãos, bem como uma representação responsável e justa. Somente através do equilíbrio entre esses elementos fundamentais podemos aspirar a uma sociedade verdadeiramente democrática e justa.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Carlos de Almada Contreiras



Este é o primeiro 25 de Abril em que não contamos com a tua presença física. Estávamos mal-habituados, porque sempre contámos contigo, mesmo antes do dia 25 de Abril de 1974.

Quando pela primeira vez discutiste os objectivos políticos do golpe militar com o Melo Antunes. Quando depois participaste na elaboração do Programa do MFA e assinaste a versão que julgavas final, mas que foi alterada por Spínola. Quando escolheste o sinal para o início das operações militares. Quando comandaste a intervenção da Marinha na sublevação e asseguraste a ocupação da DGS/PIDE e a libertação dos presos políticos.


Celebrar contigo o 25 de Abril era para nós tão natural como respirar. Por isso, Amigo e Camarada Carlos, sentimos muito a tua falta.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Mulheres mães, quase meninas



(Poema de Abril)

Parece um encontro marcado.

Às primeiras horas da manhã, no início do meu percurso, encontro na estação mulheres com filhos ao colo. Umas vão apanhar o comboio, outras desembarcaram e seguem as suas vidas.

São mulheres muito jovens, quase meninas. Pressinto que, como a Luísa do poema, saltaram da cama, sem alvorada, desembestadas; vestiram-se à pressa, pegaram nos filhos, saltaram para a rua; vão deixá-los e chegar ao trabalho, à hora marcada. Cumprem a rotina diária de muitas outras mulheres mães que só têm esta vida.

Sigo o meu percurso e encontro outras mulheres. Mulheres que são livres de andar, correr ou olhar o mar. Livres de fazer as suas escolhas, até mesmo a de não serem mães.

Mas a imagem das mulheres mães, quase meninas, acompanha-me no resto do meu percurso.