quinta-feira, 25 de julho de 2024

A cunha*



 
Ou a lei da vida segundo o Chefe da Casa Civil do Presidente da República

Já conhecia o papel da cunha no relacionamento dos portugueses com os serviços públicos. Em 2021, uum estudo da Transparency International concluiu que Portugal era, com a França, o 2.º país da União Europeia onde mais se recorria às cunhas. Nesse estudo, o 1.º lugar do pódio foi ocupado pela República Checa.

Mas ainda não tinha ouvido alguém com competência para isso defender a cunha como um direito do cidadão, enquadrado pela nossa lei, e até como uma lei da vida. Quem o fez foi o distinto jurista que desde março de 2016 é Chefe da Casa Civil do Presidente da República, durante a audição na “Comissão Parlamentar de Inquérito - Gémeas Tratadas com o Medicamento Zolgensma”, mais conhecida como a Comissão Parlamentar de Inquérito à cunha do filho do Presidente da República ao pai.

O Chefe da Casa Civil do Presidente da República deu-nos conta de que já recebeu e encaminhou 190 mil pedidos de cidadãos ao Presidente da República, mas entende que é algo normal e até traduz o que, segundo ele, é a lei da vida. Para o Chefe da Casa Civil do Presidente da República, “é assim que a vida funciona. Há pessoas que perante uma oportunidade, a agarram, que vão atrás dela. Há pessoas que têm a iniciativa de se dirigirem a uma administração, ou de se dirigirem a uma entidade qualquer, e há pessoas que não têm.”
 
E esclareceu: “Quando escrevem ao Presidente da República, nós tratamos as coisas assim. Do nosso ponto de vista, por respeito pelo cidadão, por respeito pelo seu pedido, por respeito pelo seu direito de ter uma resposta do órgão de soberania. São as instruções que temos e que me parecem corretas e acho que os cidadãos têm direito. (…) Nós tentamos encaminhar, tentamos responder às pessoas de forma positiva. O que não escreveu não teve essa resposta, não. O que teve a iniciativa de escrever, teve., é assim. E eu acho que sinceramente podemos ver isto no campo dos princípios do Estado ideal em que tudo é perfeito, mas nós não somos perfeitos. Esta é a realidade.

Admito estar enganado, mas estou convencido que uma boa parte dos 190 mil pedidos feitos ao Presidente da República só muito dificilmente podem ser considerados petições à luz da lei e, de acordo com esta, deveriam ser liminarmente indeferidos. Para além de poupar trabalho, tal procedimento ajudaria a disciplinar os falsos peticionários.

No caso das gémeas, em que alguém pediu ao pai Presidente da República para interceder no processo de tratamento pelo SNS de duas crianças filhas de amigos, parece ser claro que não havia fundamento para ser considerada petição e poderia ter sido liminarmente indeferida, poupando muito trabalho e confusões.

Tudo indica que a preocupação de proteger o Presidente da República e blindar o processo na Casa Civil, fará com que nada de relevante sobre o encaminhamento da cunha do filho do Presidente da República saia da Comissão Parlamentar de Inquérito. Mas teria sido bom que este episódio servisse para esclarecer a diferença entre o exercício do direito de petição consagrado na lei e o péssimo hábito da cunha de que os mails do filho do Presidente da República são um bom exemplo.

Lamento que o Chefe da Casa Civil do Presidente da República não tenha esclarecido a diferença entre petição e cunha e, pelo contrário, tenha posto tudo no mesmo saco. Talvez evitasse que o Presidente da República continue a ser atulhado com os 25 mil pedidos anuais, provavelmente simples cunhas na esmagadora maioria dos casos.


*Pessoa influente que pede em favor de outra com empenho. Empenho ou recomendação de pessoa importante ou influente. ("Cunha", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/cunha.)

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