terça-feira, 30 de julho de 2024

Farsa populista


 

Comprei este livro há uma meia dúzia de anos porque prometia abordar a crise provocada pelas políticas neoliberais e a globalização nas cidades industriais do Ohio.
 
Na década de 1980, durante a recepção das turbinas para as fragatas da classe “Vasco da Gama”, tive oportunidade de conhecer a região e, em particular, a fábrica onde aqueles equipamentos foram fabricados, não muito distante de Middletown, a cidade onde a história do livro se desenrola. Mais tarde, a crise financeira de 2008 levou a indústria da região à beira do colapso e tornou mais evidentes a pobreza e a fragilidade moral de uma população trabalhadora branca culturalmente desenraizada, maioritariamente migrada das áreas rurais montanhosas, isoladas e pobres.

Mas para além do interesse em perceber a transformação económica e social do tecido industrial do Ohio, fui também espicaçado pela anunciada “profunda introspeção sobre Trump e o Brexit”. Recordo-me, no entanto, de que apesar de ser um relato realista e bem construído das difíceis condições de vida de uma população que se viu atingida pelo desemprego, em muitos aspectos semelhante ao ocorrido na grande depressão, com personagens marcantes como Mamaw, a avó materna do autor, o livro ficou aquém das minhas expectativas.
 
Primeiro, porque não foi à raiz do problema, ou seja, às causas profundas destas crises periódicas do sistema de produção capitalista norte-americano; segundo, porque nada continha sobre Trump e sobre o Brexit; finalmente, porque tratando-se da autobiografia de alguém que escapou à miséria económica e moral que ameaçava a família e a comunidade onde cresceu, foi fuzileiro e participou na guerra do Iraque, tirou o curso de Direito em Yale, uma das oito universidades privadas mais conhecidas e caras dos EUA, e se tornou um consultor de sucesso de grandes organizações, havia qualquer coisa na história que soava a falso ou mal contado.

Apesar do êxito do livro nos EUA, como não conhecia o autor J.D. Vance, não pensei mais nele até há poucos dias. É que o agora senador republicano pelo Ohio, JD Vance (sem pontos), foi escolhido por Trump para seu vice-presidente!
 
Voltei a ler o livro com mais atenção, desta vez o original com o título “Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis”. Estudei a evolução das posições políticas do autor, alegadamente próximo da nova direita populista norte-americana representada pela “American Compass” de Oren Cass.
 
Devo confessar que confirmei a ideia de que o projecto populista de Vance, aparentemente preocupado com a classe trabalhadora, é uma história mal contada. E que, afinal, o Independent tinha razão: tem tudo a ver com Trump.

sábado, 27 de julho de 2024

As Amigas


Da Maria Júlia dizia que era amiga desde que nasceu. Claro que sim e as raízes dessa amizade estavam numa aldeia no sopé da serra de Montejunto.

Conheceu a Miete no liceu, em Lisboa. Reencontraram-se em Quelimane, nos idos anos 50 do século passado. Desde então, nada, nem mesmo a imensidão do triângulo Portugal-Moçambique-Brasil, as separou.

Observei estas amigas desde miúdo e em nenhum momento senti qualquer indício de que algo não corria bem entre elas. Sempre as vi felizes, solidárias e cúmplices, no melhor e no pior que a vida lhes deu.

Que bela lição, mais uma, que a minha Mãe nos deu.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

A cunha*



 
Ou a lei da vida segundo o Chefe da Casa Civil do Presidente da República

Já conhecia o papel da cunha no relacionamento dos portugueses com os serviços públicos. Em 2021, uum estudo da Transparency International concluiu que Portugal era, com a França, o 2.º país da União Europeia onde mais se recorria às cunhas. Nesse estudo, o 1.º lugar do pódio foi ocupado pela República Checa.

Mas ainda não tinha ouvido alguém com competência para isso defender a cunha como um direito do cidadão, enquadrado pela nossa lei, e até como uma lei da vida. Quem o fez foi o distinto jurista que desde março de 2016 é Chefe da Casa Civil do Presidente da República, durante a audição na “Comissão Parlamentar de Inquérito - Gémeas Tratadas com o Medicamento Zolgensma”, mais conhecida como a Comissão Parlamentar de Inquérito à cunha do filho do Presidente da República ao pai.

O Chefe da Casa Civil do Presidente da República deu-nos conta de que já recebeu e encaminhou 190 mil pedidos de cidadãos ao Presidente da República, mas entende que é algo normal e até traduz o que, segundo ele, é a lei da vida. Para o Chefe da Casa Civil do Presidente da República, “é assim que a vida funciona. Há pessoas que perante uma oportunidade, a agarram, que vão atrás dela. Há pessoas que têm a iniciativa de se dirigirem a uma administração, ou de se dirigirem a uma entidade qualquer, e há pessoas que não têm.”
 
E esclareceu: “Quando escrevem ao Presidente da República, nós tratamos as coisas assim. Do nosso ponto de vista, por respeito pelo cidadão, por respeito pelo seu pedido, por respeito pelo seu direito de ter uma resposta do órgão de soberania. São as instruções que temos e que me parecem corretas e acho que os cidadãos têm direito. (…) Nós tentamos encaminhar, tentamos responder às pessoas de forma positiva. O que não escreveu não teve essa resposta, não. O que teve a iniciativa de escrever, teve., é assim. E eu acho que sinceramente podemos ver isto no campo dos princípios do Estado ideal em que tudo é perfeito, mas nós não somos perfeitos. Esta é a realidade.

Admito estar enganado, mas estou convencido que uma boa parte dos 190 mil pedidos feitos ao Presidente da República só muito dificilmente podem ser considerados petições à luz da lei e, de acordo com esta, deveriam ser liminarmente indeferidos. Para além de poupar trabalho, tal procedimento ajudaria a disciplinar os falsos peticionários.

No caso das gémeas, em que alguém pediu ao pai Presidente da República para interceder no processo de tratamento pelo SNS de duas crianças filhas de amigos, parece ser claro que não havia fundamento para ser considerada petição e poderia ter sido liminarmente indeferida, poupando muito trabalho e confusões.

Tudo indica que a preocupação de proteger o Presidente da República e blindar o processo na Casa Civil, fará com que nada de relevante sobre o encaminhamento da cunha do filho do Presidente da República saia da Comissão Parlamentar de Inquérito. Mas teria sido bom que este episódio servisse para esclarecer a diferença entre o exercício do direito de petição consagrado na lei e o péssimo hábito da cunha de que os mails do filho do Presidente da República são um bom exemplo.

Lamento que o Chefe da Casa Civil do Presidente da República não tenha esclarecido a diferença entre petição e cunha e, pelo contrário, tenha posto tudo no mesmo saco. Talvez evitasse que o Presidente da República continue a ser atulhado com os 25 mil pedidos anuais, provavelmente simples cunhas na esmagadora maioria dos casos.


*Pessoa influente que pede em favor de outra com empenho. Empenho ou recomendação de pessoa importante ou influente. ("Cunha", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/cunha.)

quinta-feira, 11 de julho de 2024

"Land of Milk and Money"

 


Lembrei-me do título do romance do matemático, professor e escritor norte-americano com raízes na ilha Terceira, Anthony Barcellos, quando vi a apresentação de Mike Moyle sobre a herança portuguesa, maioritariamente dos Açores e da ilha de São Jorge, no californiano Marin County, a noroeste de San Francisco.
 
O romance de Anthony Barcellos retrata a vida das famílias portuguesas que emigraram para o interior rural do San Joaquin Valley, em busca da terra prometida. Maioritariamente açorianos como os que foram para o Marin County, quer uns quer outros foram trabalhar nas herdades agropecuárias, acabando muitos por dominar o sector. No Marin County, a pesca e a construção naval foram também sectores onde a iniciativa e a capacidade de trabalho dos portugueses se evidenciaram.
 
Quando fui estudar para Monterey em 1977, confesso que não olhava os EUA e a Califórnia como a terra prometida e tinha até uma relação difícil com o sistema capitalista americano. E quanto à comunidade portuguesa da Califórnia, convivia mal com as manifestações de nacionalismo açoriano que por vezes sentia. Os meses embarcado em corvetas nos Açores nos anos quentes de 1975 e 1976 criaram em mim aversão pelo discurso independentista que na época era popular em terras californianas.

O tempo e as experiências de vida suavizaram ou eliminaram as minhas reservas e hoje sou o primeiro a reconhecer o que a Califórnia tem de bom e a ressaltar o enorme mérito da comunidade portuguesa açoriana que lá vive e trabalha e entre a qual tenho muitos bons amigos.
 
E quando estive em Sausalito em Abril, tive o prazer de conhecer o Mike Moyle, um americano com raízes no Hawaii que se dedica a estudar a herança portuguesa no Marin County. O Mike foi-me apresentado pelo Ruben da Silva, que emigrou para os EUA e ali vive, depois de deixar a Marinha.

O Mike proferiu uma palestra no IDESST Sausalito Portuguese Cultural Center no passado dia 9 e partilhou a apresentação no YouTube. Como referências da sua investigação citou o “Guidebook for the Sausalito Portuguese Heritage Walking Tour” e a lista de algumas das pessoas de quem falou.

A apresentação é longa, mas vale a pena porque se aprende muito sobre nós próprios, como povo.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

O "Otimista" na Marinha

 


Domingo à noite. O novo canal NOW anunciava ser dia de “Otimista, um programa de António Costa, a mostrar o que de bom e positivo existe no país”. No anúncio do programa mostrava António Costa e Pedro Mourinho a serem recebidos na entrada do Palácio do Alfeite pelo Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Gouveia e Melo, e a maquete do “Navio / Plataforma Naval Multifuncional” encomendado ao Grupo Damen.

Não podia perder tal programa, desde logo porque iam falar da Marinha que, para mim, continua a ser uma referência do que de bom e positivo existe em Portugal. Depois porque o “Otimista” António Costa, como Primeiro-Ministro, dirigiu o apressado Conselho de Ministros de 23 de dezembro de 2021 que exonerou o anterior CEMA sem a adequada explicação e nomeou Gouveia e Melo para o cargo, com a correspondente promoção a Almirante. O inusitado de assistir à conversa do agora Presidente do Conselho Europeu com o chefe militar que nomeou há menos de três anos em tais circunstâncias, aguçou ainda mais a minha curiosidade.

Assisti com atenção e confesso que fiquei surpreendido com uma parte substancial do que vi e ouvi. Refiro-me em particular às afirmações do actual CEMA sobre a indústria naval militar nacional. Claro que o cidadão Gouveia e Melo pode opinar sobre o tema e dizer o que entender, mas quando o faz na condição de CEMA, o caso muda de figura. Trata-se de um sector de actividade em que a o Estado, através da Marinha, tem um papel central. Do ponto de vista económico, é o principal, senão mesmo o único, cliente. Poucos países têm clientes externos para a sua indústria naval militar e Portugal não está certamente entre eles. E dada a relevância da Defesa Nacional e da Marinha nesse mercado monopsonista, responsáveis como o CEMA devem ter particular cuidado com as mensagens que transmitem.

Ao longo da carreira profissional, tive oportunidade de reflectir sobre a indústria naval militar nacional. Em 2010, quando participei no extinto Fórum Empresarial da Economia do Mar coordenado pelo saudoso camarada, amigo e colega Fernando Ribeiro e Castro, com ele e com outros profissionais do sector debati e delineei uma possível estratégia para a indústria naval militar nacional com o objectivo de evitar o colapso que todos adivinhávamos. Devo confessar que não tivemos sucesso, mas foi por ter consciência da complexidade e dificuldade da questão que fiquei surpreendido com algumas das afirmações do actual CEMA.

Embora o programa tenha passado num canal novo e provavelmente apenas tenha sido visto por alguns (poucos) interessados no tema, não tendo por isso impacto numa população entretida com o futebol, pode ter deixado a ideia de que é possível fazer com mil o que até agora muitos só foram capazes de fazer com um milhão!

O actual CEMA afirmou que olha “para o futuro da Marinha com muito mais otimismo do que olhávamos há uns anos atrás” e que a Marinha hoje “tem, com menos recursos, mais capacidade”. Não me quero meter nas questões operacionais nem na sua avaliação, mas não pude deixar de registar o optimismo do chefe da Marinha, que chegou mesmo a superar o do entrevistador. Em determinado momento, o actual CEMA afirmou: “Eu estive há muito pouco tempo no estrangeiro, num país de referência, em que os líderes da Marinha desse país me disseram, de forma muito clara, que nós conceptualmente, e o que estamos a desenvolver, está 10 anos à frente de tudo o que está a ser feito.” No meu caso, quando estava ao serviço, se os líderes de uma outra Marinha me dissessem que estávamos “10 anos à frente de tudo o que está a ser feito”, pensaria que estavam a tentar ser simpáticos com uma mentira bondosa. Aparentemente, o actual CEMA não pensou o mesmo…

Mas indo à matéria que conheci bem na Marinha, ou seja, a realização e aquisição de serviços para construir e manter os navios e os seus sistemas e equipamentos, não consigo deixar de me impressionar com o papel que o actual CEMA atribui aos drones, quase que os contrapondo aos navios militares. E mais impressionado fico com a facilidade com que, no caso dos drones, a Marinha parece ultrapassar as restrições administrativas que então condicionavam quem tinha responsabilidades na área do Material Naval.
Disse o actual CEMA que criou “uma pequena empresa dentro da Marinha para desenvolver estas coisas com 3 militares. Agora já são 40 e vamos tentar crescer para 100. 100 engenheiros e gente só dedicada à inovação.” Outro oficial disse que “funcionamos como uma start-up”. Qual será o quadro legal desta “pequena empresa”? Será um organismo fabril? Como está organizada? Como faz aquisições? A quem presta contas? Na Marinha que servi até 2000, a lei então em vigor inviabilizava qualquer actividade com os contornos descritos pelo actual CEMA, a não ser se fosse realizada por organismos fabris. E mesmo esses estavam sujeitos a regras administrativas muito restritivas.

Para perceber melhor o que se passa com a alegada produção de drones na e pela Marinha, fiz uma pequena pesquisa sobre os modelos referidos na reportagem. Concluí que não serão produtos totalmente concebidos e fabricados pela Marinha e alguns deles têm origem no estrangeiro. São comercializados por empresas portuguesas às quais, à semelhança do que se passa com todos os outros sistemas dos navios, a Marinha terá adquirido equipamentos, materiais e serviços segundo uma especificação técnica e, depois, procedido à sua recepção. Como acontece como muitos outros equipamentos, é provável que os requisitos da Marinha tenham influenciado o produto final, mas dizer que foram desenvolvidos pela Marinha parece ser exagerado.

Outra surpresa foi o actual CEMA contrapor a utilização dos drones ao que chamou “uma Marinha clássica”. Como engenheiro naval militar, não entendo o que é uma “Marinha clássica” nem sei qual é o modelo económico a que obedece. Sei sim que as Marinhas militares estão permanentemente a evoluir, a modificar os seus navios e a dotá-los de meios que optimizam a realização das missões que lhes são atribuídas. Foi assim com os radares, foi assim com os sonares, foi assim com o armamento, foi assim com os helicópteros, será certamente assim com os drones. O objectivo sempre foi cumprir as missões com menos recursos e maior eficácia. Em cada momento, as Marinhas militares são o que os requisitos operacionais exigem e as tecnologias permitem. Se neste momento as capacidades de vigilância dos navios militares podem ser alargadas e optimizadas com a utilização de drones, estou certo de que todas as Marinhas evoluirão rapidamente para a sua adopção generalizada.

Pareceu-me também estranho o conceito de construção de um navio militar do actual CEMA. Aparentemente, para ele, é “soldar chapa”. Talvez por falta de experiência nessa área, não saberá que o soldar da chapa é a actividade menos relevante da construção de um navio. O que é de facto relevante é “meter dentro dessa chapa depois de soldada” todos os sistemas e equipamentos, incluindo os “computadores, redes, software” que referiu. E essa actividade requer competências que se adquirem academicamente e com a prática e ajudam a identificar factores de risco que já apontei no programa de construção do “Navio / Plataforma Naval Multifuncional”, caracterizado pelo actual CEMA como “o primeiro conceito mundial de um navio que é um porta-drones”.

Duas notas finais:
  • Por princípio desconfio dos que invocam o interesse do Estado para estabelecer relações privilegiadas e por vezes obscuras com determinados fornecedores de serviços e equipamentos. Não sei se é o caso das aquisições dos drones, mas detectei alguns sinais preocupantes na forma como alguns dos entrevistados descreveram a relação da tal “empresa dentro da Marinha” com empresas externas;
  • Sou dos que defendem que o brincar é uma bonita forma de as crianças aprenderem e evoluírem. Mas receio os adultos que se recusam a crescer e continuam a brincar com brinquedos cada vez mais caros, pagos por todos nós.