segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

A História e a política

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Gravura Ferdinandes Magalanes Lusitanus de Giovanni Stradano, 1569


Embora a realidade da viagem de Fernão de Magalhães até às Filipinas seja muito mais fascinante do que a ficção evocada pelo Presidente da República e pelo Ministro do Mar na largada da Sagres para a viagem de circum-navegação, os responsáveis políticos preferiram mais uma vez usar a História para um exercício de patriotismo primário de exaltação de feitos do passado à luz de um certo presente, esquecendo o essencial da viagem de Magalhães: o desafiar do estabelecido para realizar o impossível, utilizando com rigor e disciplina as metodologias e os instrumentos técnicos e científicos disponíveis à época. Uma cerimónia pública não é o momento adequado para dissertações históricas mas também não deve ser o palco para leituras políticas de um passado ficcionado.

É um facto que a primeira travessia do Pacífico por navios que partiram da Europa e navegaram para ocidente foi um marco na História que se deveu ao português Fernão de Magalhães. O saber, a experiência e a obstinação de Magalhães foram determinantes para que a esquadra atingisse as Filipinas. Foi ele que percebeu que a Terra era um planeta oceânico que podia ser navegado em todos os sentidos e que podia usar as tecnologias náuticas e os conhecimentos de cartografia e astronomia adquiridos e acumulados por navegadores portugueses ao longo de quase um século de expansão marítima para atingir o objectivo que definiu para a expedição: alcançar as ilhas Molucas, que julgava estarem na área de influência castelhana definida em Tordesilhas, e dominar o comércio das especiarias raras que a coroa portuguesa geria a partir de Malaca através da rota da Índia.

Foi Fernão de Magalhães quem apresentou o projecto ao rei Carlos I de Castela e Aragão, que obteve a autorização e o financiamento para a constituição da esquadra. Foi ele quem teimou, contra os sublevados que queriam desistir e regressar a Sevilha, em prosseguir para sul até encontrarem a passagem marítima no extremo meridional do continente americano e foi ele que teve o conhecimento e a intuição para traçar a rota certa para atravessar o oceano Pacífico sem dispor de qualquer informação prévia.

Mas também é verdade que Fernão de Magalhães nunca teve a intenção de circum-navegar a Terra, assim como também não tinha Juan Sebastián Elcano, um homem com uma personalidade bem menos vincada e que desempenhou um papel activo na sublevação falhada de Porto São Julião. O plano de Magalhães era ir às Molucas e regressar pelo mesmo caminho. Tinha-se comprometido a não sulcar águas sob jurisdição portuguesa e caso não tivesse sido morto em Mactan a 27 de Abril de 1521, teria tentado regressar pelo Pacífico. Depois da morte de Magalhães e atingidas as Molucas, Elcano e Espinosa decidiram que cada um tomaria um rumo diferente para regressar à Europa: o primeiro, com a Victoria, pelo Cabo da Boa Esperança, o caminho mais curto e conhecido mas dominado pelos portugueses; o segundo, com a Trinidad, pelo desconhecido Pacífico. Espinosa fracassou por falta de conhecimentos náuticos e Elcano chegou a Sevilha em condições muito precárias porque teve de evitar os navios portugueses.

A primeira viagem de circum-navegação foi assim fruto das circunstâncias e nunca esteve nos planos de Fernão de Magalhães e daqueles que comandou até alcançar as Filipinas. É por isso que se queremos festejar a circum-navegação da nau Victoria ao serviço do rei Carlos I de Castela e Aragão, conde de Barcelona e imperador Romano-Germânico Carlos V, lembremos Elcano. Se queremos festejar a descoberta do Estreito, a travessia do Pacífico e a perícia de um navegador português, celebremos Fernão de Magalhães e o seu feito.

E façamo-lo no mar e em terra, em especial nas escolas, com um discurso diferente do que se ouviu na largada da Sagres.

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