sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Mafalda


Foto Rui Oliveira

Compreendo a surpresa da senhora de Alvão. Abrir a porta num dia de tempestade, de chuva grossa e vento forte, e deparar com jovens escuteiros a oferecer os seus serviços em troca de alimentos para o jantar, é de facto inesperado. Por isso também compreendo a pergunta: – Alguém vos está a obrigar?

Mas o teu sorriso, a tua calma e as tuas explicações devem ter dissipado as dúvidas da senhora e, arrisco-me a dizer, terás feito uma amiga. A conversa que me contaste e a emoção da despedida foram a prova disso.
 
Disseste-me que o abraço e os beijos da senhora quando se despediu de ti resultaram da preocupação convosco, mas estou convencido de que a explicação será outra. 

Acredito que tocaste a senhora de Alvão com a tua serenidade, com a tua simplicidade, com a tua maturidade. Porque essas, minha neta, são as tuas grandes qualidades, a tua força, cada vez mais marcantes. 

E que muito nos orgulham.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Natal moçambicano

 


Para o menino de Inhambane, no Natal não havia pai natal, nem renas, nem neve ou frio. Havia um presépio com o menino Jesus que trazia prendas num canto da sala e, principalmente, havia calor e a praia ali mesmo em frente da casa.

Com os outros meninos, descia as escadas de betão e entrava no mar quando lhe apetecia. A pouca profundidade da água e a rede para os tubarões permitiam que brincassem e as mães não ficassem preocupadas. Mas as escadas não serviam só para o acesso à praia. Quando a maré estava vazia, a cavidade por baixo dos degraus era o sitio ideal para as conversas que não queriam que os adultos ouvissem.

Aquele espaço exíguo transformava-se, pela esperteza e experiência dos mais velhos e pela curiosidade dos mais novos, numa escola onde se aprendia tudo o que os adultos não queriam ou não sabiam ensinar. Ali o menino aprendeu, por exemplo, que a pilinha não servia só para fazer xixi. Um dia, um dos mais crescidos, ou sabidos, deu uma aula teórica da matéria, com modelo de demonstração e tudo. Desenhou uma figura feminina na areia húmida, fez um buraco com o dedo no sítio devido, deitou-se sobre ela e mostrou como os adultos faziam. O menino registou o novo conhecimento mas não percebeu porque razão os mais velhos faziam aquilo. Só uns bons anos mais tarde, noutras latitudes, completou a disciplina com as indispensáveis aulas práticas.
 
Foi também na escola das escadas para a praia de Inhambane que o menino aprendeu que as prendas de Natal eram dadas pelos pais e que Jesus nada tinha a ver com isso. Neste caso, apesar de ter percebido a matéria toda, preferiu continuar a colaborar e não estragar a festa dos pais. Embora fossem só brinquedos para a irmã e para ele, os pais ficavam tão contentes com a abertura das prendas deixadas pelo menino Jesus que ele não podia de forma alguma desmanchar-se.

E assim se mantiveram as coisas por mais uns bons anos até que o avô do menino, também noutras latitudes, resolveu pôr fim à representação.

Um feliz Natal, acreditem ou não no menino Jesus!

domingo, 1 de dezembro de 2019

A Fábrica de Santa Catarina



... ou divagações a propósito de umas conservas de atum.

Há uns dois anos a Joana trouxe-me dos Açores duas latas de filetes de atum com temperos da marca Santa Catarina. Não conhecia mas gostei da embalagem e do conteúdo. Interessei-me pela origem, a ilha de São Jorge, que conheci como João de Melo descreveu: “a ilha mais profundamente ilha dos Açores”. 

Gostei de saber que o atum era pescado por “Salto e Vara”, uma arte de pesca tradicional pouco predadora, que preserva a vida e o habitat dos golfinhos e permite aos pescadores capturarem apenas o peixe necessário sem pôr em risco outras espécies ou peixes mais pequenos. Por isso procurei perceber a história da fábrica que produzia tal produto de qualidade, num concelho e numa ilha com uma população de 3 773 e 9 171 habitantes, respectivamente (censo de 2011).

Recursos humanos 

Aprendi que a Fábrica de Santa Catarina, na Calheta, existe desde 1940. Que em 1995 foi desactivada pela Sociedade Corretora de São Miguel e reactivada com o apoio do município da Calheta. 

Que faliu em 2009 e o governo regional comprou-a por 1 euro e transformou-a numa empresa de capitais públicos por intervenção da Lotaçor - Serviço de Lotas dos Açores, para evitar o encerramento. Que é o principal empregador de São Jorge, na sua maioria mulheres que dificilmente encontrariam trabalho remunerado noutra área. Que o financiamento do governo regional de cerca de 13 milhões de euros para que se mantivesse em laboração desde então foi considerado contrário às regras europeias e denunciado pelos concorrentes. 

Que por ter 100% de capital público não é elegível para apoios do Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas. 

Que segundo o relatório de contas de 2018 a dívida aos fornecedores é de 3,3 milhões de euros. Que o governo regional tenciona privatizar 80% do capital da Santa Catarina e que a sua recuperação requer um investimento da ordem dos 6 milhões de euros. 

Que há dias a Associação de Armadores da Pesca Artesanal do Pico se queixava que cinco dos seus associados não conseguiam receber valores que variam entre 20 e 50 mil euros correspondentes ao atum vendido durante a última safra à fábrica de Santa Catarina.

Trabalhadoras da fábrica de Santa Catarina

Sempre que encontro conservas Santa Catarina no supermercado, compro.
 
Porque gosto do produto. Porque vivi uma situação análoga à da Santa Catarina numa área de actividade do sector empresarial do Estado bem mais atraente e moderna que a conserveira. E acima de tudo, por solidariedade com as trabalhadoras da fábrica de Santa Catarina na Calheta e os pescadores de “Salto e Vara” do Pico.