quinta-feira, 18 de julho de 2019

O nosso Navio




Para os que servem e serviram na Marinha, a "Sagres" será sempre o nosso navio. Todos navegámos em muitos outros a que chamámos “o meu navio”, mas a barca é um caso à parte. É certo que para as gerações mais antigas, as viagens de instrução eram feitas numa outra “Sagres”, hoje atracada num cais de Hamburgo com o nome e a pintura originais, mas desde 1962 é o navio que nasceu "Albert Leo Schlageter" e foi "Guanabara" que todos consideramos nosso.

Cada um de nós sente a “Sagres” de acordo com as suas próprias vivências a bordo ou em terra. No meu caso, para além da viagem de instrução a Cabo Verde e ao Brasil em 1971, estive envolvido nas décadas de 80 e 90 na modernização e depois na manutenção da nossa "Sagres".

O programa de modernização liderado pelo camarada e amigo Martins Guerreiro foi um grande desafio porque se tratava de trazer a “Sagres” dos anos 30 para a modernidade em termos tecnológicos, de habitabilidade e de segurança, com um orçamento financeiro exíguo. Ao longo de quase uma década, cada um de nós, na sua esfera de competência e responsabilidade, deu o seu melhor para que a modernização fosse um sucesso. Tratando-se de uma intervenção muito profunda e complexa, tinha de ser preparada e executada sem perturbar as viagens de instrução anuais. Apesar de se ter mexido em elementos estruturais do navio, de se ter substituído muita chapa, de se ter alterado radicalmente a compartimentação estanque, de se ter substituído toda a instalação eléctrica, todos os equipamentos electromecânicos auxiliares e o motor de propulsão, de se ter instalado um sistema de tratamento de esgoto e de produção de água doce, etc, só não se realizaram as habituais viagens de instrução em 1987 e 1991. Foi um esforço prolongado, intenso, de centenas de técnicos da Marinha e do Arsenal do Alfeite, militares e civis, que concretizaram com êxito o que parecia uma missão impossível. É verdade que tinham uma referência, a modernização do "Eagle" da Guarda Costeira americana, mas muito do que fizeram foi novidade.

E houve quem não sendo da Marinha, também tenha dado o seu precioso contributo. Foi o caso do saudoso Wilfried Kurt Paul John, então gerente da empresa Induma Máquinas Industriais que representava e representa a MTU, na altura o mais importante fabricante alemão de motores para fins militares. Por volta de 1988, estando eu também envolvido na discussão da especificação de construção das fragatas da classe "Vasco da Gama" e depois de uma reunião em Hamburgo com a MTU para discutir os interfaces com os motores propulsores e geradores das novas fragatas, fui convidado pelo Sr. John para jantar comida típica alemã, julgo que salsichas de Nuremberga, num restaurante do Mundsburg Center, sem imaginar que iria viver num apartamento a dois passos dali durante três anos. Mas o que importa é que durante o jantar, o Sr. John disse-me que a MTU gostaria de fazer uma oferta à Marinha ao abrigo da lei de mecenato, uma novidade que estava a ser introduzida no quadro legal português. Farto dos problemas com o velho motor MAN da “Sagres”, sugeri que oferecessem um novo motor propulsor para o substituir. A ideia foi bem recebida pela MTU e depois de obter luz verde do saudoso Almirante Moreira Rato, o assunto passou a ser tratado pelo Gabinete de Estudos da Direcção Geral do Material Naval, organismo responsável pelo projecto de modernização da “Sagres”. Foi assim que em 1991 a “Sagres” recebeu um novo motor propulsor, então ainda da marca Mercedes, muito mais compacto e mais potente que o antigo.

Vem esta longa conversa a propósito do que se está a passar com a modernização do "Gorch Fock", o navio-escola da mesma classe da Marinha alemã, construído pelo mesmo estaleiro e de acordo com os mesmos planos mas vinte anos depois da nossa “Sagres”. Em Janeiro de 2016, o "Gorch Fock" entrou num estaleiro próximo de Bremen, o Elsflether Werft, para uma intervenção de modernização de meses com um orçamento que rondava os dez milhões de euros. O custo da intervenção foi sucessivamente crescendo, 35 milhões em Outubro de 2016, 75 milhões em Janeiro de 2017, 100 milhões em Janeiro de 2018, 135 milhões em Março de 2018; em Agosto de 2017, cinquenta e cinco cadetes alemães embarcaram no navio-escola romeno “Mircea” para fazerem a sua viagem de instrução; em Janeiro de 2019 o Tribunal de Contas responsabilizou o ministério da Defesa pela derrapagem dos custos e o ministério público começou a investigar suspeitas de corrupção e fraude de responsáveis do estaleiro; na comunicação social pôs-se em dúvida o futuro do navio e saíram notícias de que a Marinha alemã estaria a procurar um substituto para o "Gorch Fock"; as comemorações dos 60 anos do navio foram canceladas; a ministra da Defesa Ursula von der Leyen veio a público em Março de 2019 anunciar um controlo rigoroso das contas e dizer que se o custo dos trabalhos ultrapassasse os 135 milhões de euros o "Gorch Fock" seria transformado em museu; o navio foi entretanto judicialmente penhorado por empreiteiros que se queixam de atrasos nos pagamentos pelo ministério da Defesa. Quase quatro anos depois do início dos trabalhos, ninguém tem certezas quanto ao futuro do navio e a forma como terminará a saga da sua modernização.

É verdade que alguns anos depois assisti a uma saga parecida na construção dos dois primeiros NPO. Mas imagino o que diriam de quem liderou e executou a modernização da “Sagres” se tivesse acontecido algo semelhante ao que se está a passar com a modernização do "Gorch Fock" na imaculada e doutoral Alemanha.

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