segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Crónica de Abril Hoje




Quando os jovens discutem, planeiam e concretizam soluções para os problemas que os afectam, num exercício de cidadania e construção de uma sociedade mais justa, acontece Abril. Aconteceu em 1974, no “dia inicial inteiro e limpo” segundo Sophia, mas também está a acontecer hoje, na Escola Básica e Secundária de Carcavelos, quando as turmas do secundário identificaram as cinco preocupações ou problemas que afectam os jovens portugueses; quando uma assembleia de delegados de turma votou o desemprego e o bullying para serem estudados e, colectivamente, serem encontradas soluções para apresentar à Escola e a outras entidades públicas; e quando o André Santos, a Beatriz Ferreira, a Carolina Conceição, a Íris Ramos, o Lucas Gabriel e a Mafalda Silva, eleitos para dinamizar o projecto, dirigiram uma reunião com quase centena e meia de colegas para apresentar os resultados do inquérito de atitude aos alunos da escola e iniciar o debate sobre as estratégias de prevenção e contenção do bullying a serem implementadas na escola.

E como o raciocínio e a memória, sendo duas faculdades distintas, só se desenvolvem completamente uma com a outra, convidaram dois membros da Associação 25 de Abril, jovens militares em Abril de 1974, para evocarem as suas memórias e reflexões. O Jorge Bettencourt sobre o Portugal do Estado Novo e a primeira fase da conspiração do 25 de Abril, e o Fernando Cavaco sobre a violência entre os jovens e nos grupos sociais. É que a evocação de memórias individuais e colectivas e a reflexão sobre impressões, fragmentos e imagens do passado são instrumentos essenciais para uma sociedade consciente construir soluções sólidas e de acordo com as necessidades do seu presente.

 

Preparação do 25 de Abril

Do Portugal de antes do 25 de Abril, os alunos reunidos no auditório da Escola Secundária de Carcavelos na manhã de 12 de Dezembro de 2016, lembraram a falta de liberdade e o regime autoritário e repressivo imposto pelo Estado Novo, a restrição dos direitos das mulheres consagrada na Constituição de 1933, os baixos índices de desenvolvimento económico e as condições de vida difícil que levaram à emigração em larga escala de muitos portugueses. Lembraram os treze anos de guerra em África que afectou profunda e negativamente oitocentos mil jovens, tirando a vida a quase nove mil. Lembraram a contestação ao congresso dos combatentes e a génese do Movimento dos Capitães.

Lembraram a primeira reunião plenária em Alcáçovas, em 9 de Setembro de 1973, e o carácter de insubordinação da movimentação dos jovens oficiais do Quadro Permanente do Exército, que nunca foram mais de 700 em 4 165. Lembraram como à medida que se realizavam as reuniões, a questão corporativa perdeu terreno perante outros objectivos, dos quais a dignificação das forças armadas e a solução política da guerra se apresentavam como os mais significativos. Lembraram a importância da reunião de 45 militares do Exército e alguns observadores da Marinha na Casa da Cerca em S. Pedro do Estoril, em 24 de Novembro de 1973, uma casa emprestada que desconheciam ter servido de esconderijo de propaganda e material explosivo da LUAR, de local de reuniões clandestinas de oficiais da Marinha com exibição de filmes sobre a Guerra no Vietnam e O Couraçado Potemkin e onde actuou José Afonso.

Na reunião de S. Pedro do Estoril, onde foi pela primeira vez sugerido o derrube do regime, foi preparada a agenda da reunião de Óbidos de 1 de Dezembro de 1973. Foi pedido às unidades que enviassem àquela reunião delegados com respostas sobre a via a prosseguir: Hipótese A - «Conquista do poder para, com uma Junta Militar, criar no país as condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional (democratização)»; Hipótese B - «Legitimação do Governo, através de eleições livres, devidamente fiscalizadas pelo Exército, seguindo-se um referendo sobre o problema do Ultramar»; Hipótese C - «Utilização de reivindicações exclusivamente militares, como forma de alcançar o prestígio das Forças Armadas, e de pressão sobre o Governo, com vista à obtenção da hipótese B». Além da posição sobre a via a prosseguir, os delegados deveriam também dar resposta às seguintes questões: 1.ª - «Deve o assunto ser circunscrito ao Exército ou alargar-se ao âmbito das Forças Armadas?»; 2ª - «Como será constituída a próxima Comissão Coordenadora? Quem a constituirá e que funções terá?»; 3ª - «Devem ou não escolher-se chefes militares de prestígio, aos quais nos liguemos e que orientarão politicamente a nossa acção, face a uma das três hipóteses? Em caso afirmativo, qual ou quais os chefes a eleger?». Com a reunião de S. Pedro do Estoril, o Movimento entrou numa fase marcadamente política.

Dias depois, na Casa do Povo de Óbidos, 86 delegados de unidades em representação de 200, votaram a hipótese C, por estreita margem em relação à A. Embora a hipótese de derrube do regime tenha sido preterida por influência dos pára‑quedistas, que recusaram liminarmente qualquer acto de força, a crescente consciencialização política do Movimento, que passou a ser dos Oficiais das Forças Armadas com a decisão de alargamento à Marinha e à Força Aérea, assim como a convicção de que a guerra só seria resolvida se o Governo fosse derrubado, tinham tornado o processo irreversível. A estrutura organizativa do Movimento que iria derrubar o regime também ficou definida em Óbidos com a eleição da Comissão Coordenadora e Executiva, com três elementos da cada Arma ou Serviço do Exército. Na escolha dos chefes prestigiados o mais votado foi o general Costa Gomes, o segundo o general António de Spínola e o terceiro o general Kaúlza de Arriaga.

Depois de S. Pedro do Estoril e Óbidos, o Movimento tornou-se mais abrangente, quer em objectivos quer em participantes. É por isso que embora o Movimento dos Capitães tenha estado na génese do MFA, não corresponde exactamente à mesma realidade política e sociológica. Houve oficiais que pertenceram ao primeiro e não estiveram no segundo, assim como uma parte dos oficiais que integrou o MFA não pertenceu ao Movimento dos Capitães.

Em 5 de Dezembro, na reunião da Comissão Coordenadora na Costa da Caparica, a estrutura organizativa do Movimento é completada com a eleição da sua Direcção: Vítor Alves (orientação política), Otelo Saraiva de Carvalho (secretariado) e Vasco Lourenço (organização interna e ligações).

 

Bullying

"Se eu pudesse
ir para a escola
quando me apetece
jogar à bola
sem me chatear com quem me aborrece!"
(Mafalda)

A violência, entendida como uma acção ou comportamento que causa dano a outra pessoa ou ser vivo, que nega ao outro a autonomia, a integridade física ou psicológica e até mesmo o direito à vida, tem no ambiente escolar diversas manifestações; algumas afectam os professores, outras os funcionários, mas na sua maioria afectam os alunos de diversas faixas etárias. A violência escolar mais frequente entre colegas é conhecida como bullying e manifesta-se através de comportamentos agressivos de intimidação do outro de que resultam práticas violentas exercidas por um indivíduo ou por pequenos grupos, com carácter regular e frequente. Os comportamentos incluídos na categoria bullying são muito diversos e estão ligados a acções físicas, verbais, psicológicas e sexuais.

Na análise metodológica considera-se que existem três tipos de bullying: o físico ou directo, o psicológico e o indirecto. O primeiro abrange comportamentos como bater, pontapear, empurrar, roubar, ameaçar, brincar de uma forma rude intimidatória e usar armas. O segundo consiste em chamar nomes, irritar ou gozar, ser sarcástico, insultuoso ou injurioso, fazer caretas e ameaçar. Por fim, o terceiro, que é o mais dissimulado porque não é tão visível, inclui excluir ou rejeitar alguém de um grupo.

No teste de atitude relativamente ao bullying realizado por 131 alunos dos 7º, 8º e 9º anos (Básico) da escola, os resultados foram:

  • 45% considera que o bullying não passa de uma brincadeira entre amigos e que nem sempre é intencional e maldoso;
  • 77% considera que tem sempre consequências negativas
  • 61% pensa que os agressores procuram os pontos fracos dos “amigos” e a maioria considera que o bullying é um ato prolongado no tempo;
  • Aproximadamente 70% pensa que o bullying não é praticado apenas por jovens nem recai apenas sobre jovens.



No mesmo teste realizado por 115 alunos dos 10º, 11º e 12º anos (Secundário) os resultados foram:

  • 62% não considera que o bullying seja apenas uma brincadeira entre amigos , ao contrário da opinião dos alunos do ensino básico;
  • Aproximadamente 70% acha que as consequências são sempre negativos e prejudicam sempre a vítima;
  • 52% pensa que nem sempre é praticados sobre pessoas indefesas;
  •  72% considera que os agressores procuram aproveitar os pontos fracos dos “amigos”;
  • A maioria considera que o bullying é um ato prolongado no tempo;
  • 86,1% considera que não se trata de maneira nenhuma de uma prática pacífica;
  • A grande maioria pensa que nem os agressores, nem as vítimas são sempre jovens.



Para dar resposta às preocupações suscitadas pela ocorrência do bullying, os alunos vão agora estudar o fenómeno nos diferentes níveis - escola, turma, indivíduo e família - para delinear um plano de prevenção e contenção a apresentar em Maio.

Para isso lembrarão as vivências pessoais relatadas pelo Fernando Cavaco, o menino que cresceu em Alcochete, filho do funcionário das Finanças. Era um dos poucos que usava sapatos. Os outros eram, por exemplo, o filho do GNR local e o filho do médico da Vila que, por terem sapatos, sofriam a violência dos meninos descalços. Claro que também havia o Pedrinhas, que usava botas, filho dum salsicheiro, um homem rico da terra, mas esse não agredia os meninos com sapatos, fazia bullying sim…, mas aos meninos descalços. E lembrar-se-ão que o filho do funcionário das Finanças deixou de ser agredido quando o pai apareceu e falou com os colegas do filho.

Fernando Cavaco quis deixar uma recomendação de pesquisa e aproveitou para mostrar que na AUSÊNCIA de PAI pode haver bullying, fenómeno de violência impensada, mas sentida. O bullying é filho da frustração e do vazio, quer individual quer do grupo. A gestão dos afectos está na sua origem. Podemos começar a sua análise, percebendo que … TUDO COMEÇA em CASA, disse.

Mostrou que, para além da análise quantitativa, que é muito importante, é fundamental, portanto, que ela se faça acompanhar de uma análise qualitativa.

Lembrarão outros casos então citados: o da menina de um bairro degradado de Lisboa, que era acordada pelo pai quando este chegava de mota a meio da noite, alcoolizado, e via filmes pornográficos na presença de toda a família. Na escola, a menina projectava o seu mal-estar interior fazendo bullying sobre as suas colegas. Lembrarão, igualmente, o menino do mesmo bairro degradado, superprotegido pela mãe, que era gozado e agredido pelos colegas.

Lembrarão, portanto, a necessidade de explorar a ideia do efeito que a família a mais ou a família a menos tem na ocorrência do bullying. E a referência a dois livros: “O Homem Sem Qualidades” de Robert Musil (escrito ainda antes da 2ª Guerra Mundial); e a outro muito recente da psicanalista Annie Anzieu, “La femme sans qualité”. E certamente que recordarão ainda a pequena história do final dos anos 60 na Escola Naval, no Alfeite, a revolta de cadetes contra a praxe, uma forma violenta de forçar a integração num grupo.

Por falta de tempo, não ouviram falar da menina portuguesa que foi com os pais para a Alemanha e sofreu bullying dos colegas do 5º ano no Gymnasium porque não sabia alemão. Não ouviram que em países com desigualdades salariais elevadas há mais bullying entre pré-adolescentes do que em países com desigualdades salariais baixas. Que Portugal está no quartil superior da frequência de ocorrências de bullying enquanto a Suécia, que tem a desigualdade de rendimentos mais baixa da Europa, está no quartil inferior.

E não ouviram, porque também não perguntaram, a história dos dois bustos de negros em madeira que estiveram durante toda a sessão em cima da mesa. Se tivessem perguntado, o Fernando teria mostrado que constituíam uma oferta de um menino de Luanda que trabalhou na lavandaria de um navio português e que, a bordo, foi vítima de bullying … por ser negro.

 

Epílogo

Na manhã de 12 de Dezembro de 2016, os alunos e professores Escola Secundária de Carcavelos e os convidados da Associação 25 de Abril fizeram um exercício de cidadania e de construção de uma sociedade mais justa e conforme com o espírito de Abril. Muito ficou por dizer, mas falaram de violência e agressividade, de família a mais e de família a menos, de frustrações, de desejo, de vontade, de valores éticos e sociais, de amor-próprio, de comunicação, de participação, de cidadania, de democracia, do 25 de Abril.

E no final decidiram estudar mais e em Maio responder à pergunta da Sara, que mostra já que há … no ar… um DESEJO: ― Como é que se acaba com o bullying?
Será só um desejo da Sara?

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