terça-feira, 3 de março de 2015

O Tio Miguel



– Tenho muita pena que o vosso filho morreu – ditou a Mafalda para ser escrito no desenho acabado de pintar para os avós.
A Mafalda tinha e tem muita pena, mesmo sabendo muito pouco sobre o filho dos avós que dizem ser seu tio.
Um tio diferente.
Todos os tios e tias são gente crescida como os pais, mas este não. Dizem-lhe que era um bebé. Mas os bebés que conhece respiram, comem, choram, dormem e crescem, e este não.
Nasceu há muito, muito tempo, não cresceu e está num sítio onde às vezes vai com a avó pôr flores.
A Mafalda gostava de perceber melhor e tem razão. Como todas as histórias, esta também merece ser mais bem contada.
Quarenta e um anos é tempo suficiente para lembrar o essencial e esquecer o acessório.
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Foi uma gravidez feliz. Nada prenunciava o que ia acontecer. A jovem mãe, ainda estudante universitária e já com uma barriga razoável, viveu intensamente os tempos atribulados da revolta estudantil, dos gorilas e das cargas policiais na cidade universitária. Acompanhou o marido e os amigos em tudo o que tivessem vontade de fazer. Eram as tertúlias na sua casa, eram as excursões turístico-gastronómicas pelo país para visitarem as terras-natal dos amigos, eram os dias de praia ou a acampar na Berlenga para fazer mergulho, eram as sessões da oposição na farsa eleitoral de 73, era tudo o que enchia a vida de um jovem casal com sonhos do tamanho do mundo.

Mas na hora do bebé nascer, as coisas deixaram de ser fáceis e simples. O pai, que tinha combinado com a médica assistir ao parto, ficou na sala de espera. De uma espera de muitas horas. Quando finalmente viu a mãe e o menino, percebeu que o parto tinha sido muito difícil. As marcas dos "ferros" eram bem visíveis na cabeça do bebé e a mãe estava muito combalida. Notou a imobilidade das pernas do menino mas a inexperiência, a delicadeza da médica e a felicidade de olharem o primeiro filho ofuscaram os sinais de que algo estava errado. Souberam depois que a médica decidiu conceder-lhes uma noite de felicidade.

No dia seguinte o avô foi buscar o pai do menino ao Alfeite, coisa que nunca tinha feito. Disse que havia um problema com o bebé, que era preciso ir à maternidade. A partir desse momento o mundo começou a desabar. Na maternidade, o neurologista explicou que o menino sofria de uma malformação congénita, espinha bífida aberta. A extensão dos danos neurológicos não podia ser avaliada com rigor mas eram significativos e irreversíveis. O tecido nervoso perdido não podia ser reparado e as funções dos nervos danificados não podiam ser restauradas. E era urgente decidir fazer, ou não, a cirurgia para fechar o defeito e eventualmente impedir a infecção nos tecidos expostos e a morte do bebé.

Os pais, mal preparados como a maioria dos pais perante o inesperado e a diferença, enfrentavam um doloroso dilema. Consultaram especialistas mas depressa perceberam que pouco ajudavam. A decisão teria de ser deles e rápida. E decidiram não operar. O menino foi internado em Santa Maria por ser o local com melhores condições técnicas para a sua situação. Faleceu com dez dias de vida.

Foram os dez dias mais duros e intensos do jovem casal. Ao drama pessoal juntou-se a vivência das carências do sistema público de saúde do passado. Numa enfermaria cheia de bebés, muitos deles abandonados pelas famílias, faltava tudo menos o esforço e empenho das enfermeiras. As fraldas dos bebés eram os restos de lençóis rasgados. Não havia roupa decente para as crianças. A roupa, as fraldas, os artigos de puericultura e até a alimentação do menino eram levados pela mãe. O que se passava num dos maiores hospitais nacionais era bem a imagem de um regime que estava prestes a cair.

Mas a mãe do menino, depauperada fisicamente e sujeita a um vendaval de emoções, encontrou a energia e a força de vontade necessárias para o acompanhar, cuidar e mimar com muito amor, até aos últimos minutos de vida. Num ambiente hospitalar desolador, a jovem mãe mostrou a coragem e a determinação que mais tarde constituíram a trave mestra de uma maternidade plenamente realizada.

Depois foi preciso voltar a levantar o mundo, juntos. Um mês e meio depois foi o 25 de Abril. A seguir a gravidez da segunda filha e a ansiedade da espera, com o pai ausente a navegar nas águas do Atlântico Sul e depois do Mediterrâneo. Já ficou dito noutra vivência que o nascimento da Joana foi anunciado ao pai por mensagem no centro de comunicações de um navio americano. Depois veio a Catarina. E mais tarde um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete netos!
Anos e anos cheios e muito felizes!
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Pois é, Mafalda. Sabemos que tens muita pena de o tio Miguel ter morrido. Nós também. 
Mas garanto-te que muito do que é a nossa família foi construído com o que aprendemos nos dez dias de vida do tio Miguel.
As flores que a avó lhe leva são um testemunho do nosso agradecimento.

2 comentários:

  1. Desde que me conheço que estes dez dias são vividos com um misto de tristeza, saudade e angústia e ao mesmo tempo de alegria, coragem e força, sabias?

    Cresci com as fotografias do mano ao vosso colo e dos avós. A olhar para o nariz pequenino igual ao da mamã. A saber que naqueles dez dias de vida, o mano tinha sido amado e que quando partiu tinha deixado a tristeza, a saudade, a angústia, mas acima de tudo, deixara a alegria, a força e coragem que vocês nos legaram.
    Quando a minha Mafalda nasceu passei a olhar-vos de outro modo, sabias?
    Percebi a vossa dor, entendi o vosso amor, descobri o silêncio guardado quando olhaste, pai, pela primeira vez para o Tomás e depois para a Mafalda e depois para todos os teus netos.

    Sim, as flores que a avó leva são um testemunho, um legado, uma vivência que temos, de agradecimento e amor.

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  2. Só faltou dizer o que não sabia há um ano.
    Parafraseando o poeta, a vida, como o mundo, pula e avança, como bola colorida, entre as mãos de uma criança.
    Há um ano tínhamos sete netos, hoje são oito e o oitavo é o nosso lindo Miguel!

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