quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Escravos "canários"

 

Em 25 de Fevereiro de 1869 foi decretada a extinção da escravatura em todos os domínios portugueses. A história da escravatura em Portugal não é fácil de fazer porque o escravo, pela sua posição marginal na sociedade, não ocupa um local de relevo nos documentos disponíveis, que reflectem a vida dos grupos dominantes. Se para a generalidade dos escravos é difícil encontrar o rasto do seu quotidiano, para os grupos minoritários como os escravos “canários”, expressão usada na Madeira para designar os indígenas trazidos das Canárias, é quase impossível.

A presença deste grupo de escravos na Madeira foi um dos resultados da pretensão do infante D. Henrique à posse das Canárias, uma disputa complexa que chegou mesmo a envolver um contrato de compra do território a um meu antepassado longínquo, o normando Maciot de Bettencourt.
 
Menos de três décadas depois do início do povoamento da Madeira, os portugueses da ilha da Madeira empenharam-se nas expedições henriquinas, não apenas pelo serviço ao infante mas também por objectivos económicos, uma vez que as Canárias era então a principal área de aprovisionamento de escravos. Até à década de noventa do século XV, portugueses e castelhanos fizeram sucessivos assaltos e várias razias da população indígena das Canárias.

Os guanches eram essencialmente utilizados como pastores e mestres de engenho de açúcar. O problema é que sendo um povo aguerrido e insubmisso, fugiam com frequência e criavam inúmeros problemas aos senhores madeirenses, em especial pelo roubo do gado. O estigma da sociedade madeirense para com este grupo fez com que em 1490 o senhorio da Madeira desse ordem de expulsão de todos os escravos “canários”, exceptuando os mestres de engenho, as mulheres e as crianças.
 
O problema persistiu por alguns anos até que os guanches que ficaram acabaram por se integrar na sociedade madeirense, deixando marcas culturais como palavras do seu dialecto, o consumo do gofio ou a técnica de tratamento dos couros. As grutas escavadas na rocha para habitação e culto religioso, que quando visitei a Madeira pela primeira vez em 1971 ainda eram ocupadas por artesãos de vime, são também uma herança dos escravos “canários”.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

"As mãos de Abraão Zacut"

 


aqui escrevi que a memória é como um rio com muitos afluentes e defluentes. Hoje a memória trouxe a peça de Sttau Monteiro, “As mãos de Abraão Zacut”; o afluente foi o judeu de Salamanca do “Almanach Perpetuum que fugiu da Inquisição no século XV e o defluente foi a personagem homónima que Sttau Monteiro pôs num campo de concentração nazi a motivar os outros prisioneiros a tentar a fuga para depois morrer na evasão de David Levi.

Vi “As mãos de Abraão Zacut” em 1970 no Teatro Vasco Santana, no espaço da antiga Feira Popular de Lisboa, em Entrecampos. Foi levada à cena pela companhia Teatro Estúdio de Lisboa da actriz Helena Félix e da encenadora Luzia Maria Martins, sob a direcção desta. Para além da Helena Félix, faziam parte do elenco Joaquim Rosa, Jorge de Sousa Costa, Isabel de Castro, Luís Santos, Margarida Mauperin, Filipe de La Féria, José Raymond, Amílcar Botica, Ermelinda Duarte e José Manuel Osório.
 
Sttau Monteiro contou que a sua peça sobre a infâmia, o medo e a esperança foi escrita em 1967 no isolamento da cadeia de Caxias, nas costas dos maços de cigarros que fumava, e que saiu "cá para fora" metida no fundo falso duma moldura feita de fósforos, queimados expressamente para esse efeito. Embora todas as seis peças anteriores tenham sido alvo da censura, com as editoras responsáveis pela sua publicação invadidas, os exemplares apreendidos e a representação proibida, “As mãos de Abraão Zacut” foi autorizada e estreou com poucos cortes em 18 de Dezembro de 1969, numa aparente demonstração de abertura do regime de Marcelo Caetano.

O processo de autorização foi, contudo, longo e complexo e mostra como funcionava a censura do regime. Depois de uma reprovação em Agosto de 1968, Luzia Maria Martins insistiu e acabou por obter a autorização para a representação um ano depois, em Novembro de 1969. A peça foi lida por vários membros da Comissão de Censura que apontaram muitas razões para a reprovação, como por exemplo, a linguagem obscena, as ofensas à religião cristã e instituições militares, a desadequação da temática à realidade portuguesa e à história nacional, a instigação à violência e o tom de contestação política e social, o aparecimento, demasiadas vezes, de palavras como “liberdade, perseguição e cadeia”.

Mas a questão que de facto assustava os censores e que os levava a manter a proibição da representação da peça era outra bem mais subtil: se o Abraão Zacut, uma personagem vulgar igual a qualquer um de nós, motivava as outras personagens da peça, não seria ele capaz de motivar um público que também se sentisse descontente e coarctado na sua liberdade? No entanto foi o argumento de um dos censores, Geraldes Cardoso, que prevaleceu e desbloqueou a autorização. Segundo ele, ao proibir aquela peça estar-se-ia a validar a identificação entre a estrutura da peça e as instituições portuguesas; quando se queria mostrar que em Portugal havia uma democracia e não havia repressão política, devia-se sim autorizar a representação da peça. O censor acreditava que, ao ser apresentada ao público, ela perderia o seu valor de contestação.

Não sei que efeito a peça teve na generalidade das pessoas que a viram no Teatro Vasco Santana. Posso apenas falar por mim e confesso que senti as palavras de uma personagem que acusou as outras de não terem feito nada enquanto o mal não lhes tocou de perto, que apontou directamente para o público e perguntou às outras personagens: “Vêem alguém capaz de arriscar um dia de vida seja por quem for? Não, não! Só quando chegar a vez de eles serem presos é que abrem os olhos!”

Há 50 anos, estas palavras abriram-me os olhos.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

A expansão marítima e a Inquisição

 

Tabela astronómica do “Almanach Perpetuum” de Abraão Zacuto

Sou dos que pensam que um dos factores que determinou o declínio da liderança do projecto científico e tecnológico que foi a expansão marítima portuguesa do século XV terá sido a instalação da Inquisição em Portugal por iniciativa do rei Manuel I. 

Se a expansão marítima foi um processo de afirmação essencialmente interno que teve o seu apogeu no final do século XV e raízes no passado de convivência e aprendizagem dos portugueses com outros povos e religiões, os processos inquisitoriais foram um fenómeno social e político importado do centro da Europa no século XVI que, para além de outras consequências profundamente negativas, prejudicou a continuidade das realizações científicas e tecnológicas do século XV por perseguir e expulsar os homens de ciência não cristãos ou incómodos.
 
O caso do judeu Abraham bar Samuel Abraham Zacut, conhecido em Portugal por Abraão Zacuto, é um bom exemplo dos malefícios da Inquisição e da intolerância do Estado. Nascido em Salamanca, refugiou-se em Portugal quando os reis católicos de Castela e Aragão obrigaram os judeus à conversão ao cristianismo ou ao exílio. 

O “Almanach Perpetuum Celestium Motuum” de Abraão Zacuto, traduzido do hebreu para o latim e do latim para o castelhano por Mestre José Vizinho, também judeu e médico astrónomo da corte de D. João II, foi por isso impresso em 1496 em Leiria na oficina de Abraão Samuel Dortas, também ele judeu. Foi do “Almanach Perpetuum” de Zacuto que se deduziram todas as tabelas solares quadrienais calculadas em Portugal até à publicação das tábuas do Sol de Pedro Nunes.
 
Com o astrolábio e as tabelas astronómicas do “Almanach Perpetuum” de Zacuto, um piloto comum que conhecesse a data e medisse a altura do Sol ao meio-dia podia determinar com precisão razoável a latitude do lugar onde se encontrava, tanto no hemisfério Norte como no hemisfério Sul, independentemente de alguém lá ter estado antes. 

A determinação da latitude passou a ser assim um acto repetível por qualquer piloto que usasse os instrumentos adequados e por isso, na viragem do século XV para o XVI, os marinheiros portugueses estavam habilitados a estabelecer a latitude de qualquer ponto do globo, em terra firme ou no alto-mar. Foi a ciência de Zacuto, foi o astrolábio que melhorou e foram as tabelas astronómicas deduzidas do seu “Almanach Perpetuum” que foram usadas por Gama e por Cabral nas suas viagens.

Pois Abraão Zacuto viveu apenas seis anos em Portugal porque D. Manuel seguiu o exemplo dos reis católicos, decretou a expulsão de todos os judeus que recusassem a conversão ao catolicismo através do baptismo e criou as condições para que a Inquisição desencadeasse a barbárie que bem conhecemos.
 
Como Zacuto, muitos outros saíram de Portugal, foram servir outros poderes, como por exemplo holandeses e ingleses, e transmitir o saber e as técnicas dos portugueses aos seus navegantes.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Dar a morte não é matar


Acherontia atropos ou Borboleta-caveira

A memória é como um rio com muitos afluentes e defluentes, que não tem pressa de chegar e que vai por aí sem nunca contar a mesma história da mesma maneira. Hoje a memória contou-me a história de como conheci Saramago, o José de quem por um triz não fui homónimo. O afluente foi a polémica sobre a eutanásia, que o escritor pensou n’As Intermitências da Morte.

Como a polémica não me entusiasma, depressa tomei outro rio e lembrei-me que conheci Saramago há precisamente 40 anos. Foi-me apresentado pelo Begonha, um dos meus grandes amigos com o nome Manuel.
 
Nesse tempo tínhamos o hábito de fazer um exercício pós-almoço a que chamávamos Optrex. Partíamos da Praça do Município, subíamos até à Brasileira pelas ruas Nova do Almada e Garret e regressávamos ao ponto de partida pela Rua do Carmo, Rossio e Rua do Ouro. 

Fazíamo-lo com o nosso saudoso amigo Manuel, o Serrano, e, sempre que as fainas do Conselho da Revolução lhe permitiam, com o outro amigo Manuel, o Guerreiro.

Para além da lavagem da vista, o percurso tinha o aliciante de encontrarmos gente interessante. Encontrávamos políticos e militares revolucionários, contra-revolucionários e nem uma coisa nem outra, encontrávamos actores, músicos, escritores, pintores, todos intérpretes de um passado ainda próximo que era recordado nas conversas com os três Manuéis

E permitia também o ritual da paragem nas livrarias para bisbilhotar as novidades literárias.
 
Foi numa dessas paragens que o Begonha me recomendou o Levantado do Chão, de um autor que não conhecia. Gostei de tal maneira que nunca mais me cansei de ler os seus livros e de os recomendar aos amigos. As personagens que neles criou tornaram-se para mim referências, desde logo a Blimunda do Memorial do Convento mas, também, o Cão das Lágrimas do Ensaio sobre a Cegueira.
 
Não sei se alguma vez agradeci ao Manuel Begonha por me ter apresentado o Saramago mas para que a dívida fique definitivamente saldada, aqui fica o meu agradecimento público.

Quanto à eutanásia, julgo que a melhor reflexão já foi feita por Saramago n’As Intermitências da Morte: matar é uma coisa, dar a morte é uma coisa bem diferente. 

Dar a morte não é matar.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

O Cravo da Índia

Hoje fui a uma escola secundária fazer uma das coisas de que mais gosto: partilhar ideias e reflexões com jovens. Desta vez contei a história d’O Cravo da Índia ou da aventura de Fernão de Magalhães, de Juan Sebastián Elcano e de muitos outros.

Falei das realizações científicas e tecnológicas portuguesas do século XV. Falei dos descobrimentos como o processo de obter o conhecimento de algo anteriormente desconhecido, de determinar a forma de vencer o medo e navegar mares que não haviam sido navegados antes e fornecer sobre eles informações náuticas precisas.

Falei da natureza laboriosa e organizada do esforço dos portugueses e das dificuldades da descoberta. Falei do modo como os marinheiros e cartógrafos portugueses alteraram a maneira de ver o mundo, de como os portugueses o reinventaram, de como imaginaram o globo de uma forma nova, a forma como o conhecemos hoje.

Falei de como a tolerância relativamente aos outros povos e religiões permitiu o maior legado dos portugueses do século XV: serem capazes de adaptar e enriquecer a herança científica helénica, islâmica e judaica para resolver os problemas da navegação no mar alto. E falei de como, depois, a intolerância da Inquisição e do Estado destruiu as conquistas de quase um século e a liderança científica e tecnológica de Portugal. Falei de como o saber acumulado, a ciência e as tecnologias que os portugueses haviam desenvolvido foram entregues de mão beijada aos navegantes espanhóis, ingleses e holandeses.

E no fim dei por mim a pensar que os navios portugueses que então sulcaram os mares não deixaram uma marca permanente na face da terra, nem mesmo os seus destroços e os mortos que jazem no fundo dos oceanos; que as medições da altura do Sol e dos outros astros não deixaram traços visíveis; que as linhas que dividiram o mundo não existem senão na nossa mente e na nossa imaginação. O ruído do vento, os sons da faina das velas, o ranger da madeira, as vozes dos homens, tudo se foi. 

O imenso legado dos portugueses do século XV está hoje nas estrelas do céu e, ocasionalmente, nas embarcações que navegam cá em baixo com jovens como aqueles com quem hoje falei.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Spartacus e Varinia


Para o miúdo que o viu do 2º balcão do imenso Monumental, Kirk Douglas será sempre o escravo trácio, Spartacus, que foi vendido como gladiador, mas conseguiu iludir o destino e comandar um exército de escravos contra a decadente, mas ainda poderosa República Romana. E será acima de tudo o herói que viveu uma bela história de amor por Varinia, a mulher que lhe foi oferecida pelo amo como privilégio de gladiador. O miúdo nunca esqueceu as imagens da intensa relação personificada por Jean Simmons e Kirk Douglas, no limite do que à época a censura permitia nas salas de cinema portuguesas.
 
Mal sabia o miúdo que aquele filme tinha dado um contributo para o derrube de uma outra censura, a que nos EUA levou à prisão, proibiu o exercício da profissão e forçou o exílio do argumentista Dalton Trumbo e de muitos outros trabalhadores da indústria cinematográfica norte-americana.
 
Dalton Trumbo foi vítima do macartismo no final da década de 1940 e só muito mais tarde foi autorizado a exercer livremente a sua profissão. A reabilitação foi lenta e demorada mas em 1960, primeiro Otto Preminger com o “Exodus” e depois Kirk Douglas com o “Spartacus”, decidiram contratar e reconhecer Dalton Trumbo como argumentista dos seus filmes. Foi um gesto corajoso que iniciou o processo de eliminação da lista negra dos suspeitos de simpatizarem com os ideais comunistas.

Hoje o miúdo sabe tudo isso, mas continua a preferir recordar a história de amor de Spartacus e Varinia.