Durante
anos estiveram lá as ruínas, feias e tristes, e por isso era fácil
explicar onde foi a reunião de São Pedro do Estoril. Agora é mais
difícil porque o casarão que testemunhou um dos momentos mais dramáticos
da preparação do derrube do regime também foi demolido. Ficou a empena
sul, a imagem aérea no Google Maps e a memória de quem, no início da
década de 70 do século passado, tinha todos os sonhos do mundo.
Mas nisto da memória, não há nada como sermos fiéis à do Vasco Lourenço,
organizador e moderador da reunião, quando recordou no Canadá como os
caminhos da luta contra o fascismo se cruzaram na Casa da Cerca, o
edifício que existia colado às traseiras da Colónia Balnear Infantil O
Século, em São Pedro do Estoril.
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“Pedem-me os meus amigos do
Centro Cultural 25 de Abril - Núcleo Salgueiro Maia, que conte uma
Pequena Estória. Por hoje, vou lembrar uma reunião que, não sendo
considerada uma das grandes reuniões conspirativas que nos levaram ao 25
de Abril de 1974 - falo do 9 de Setembro, em Alcáçovas; do 1 de
Dezembro, em Óbidos; do 5 de Março, em Cascais - se realizou a 24 de
Novembro de 1973, em São Pedro do Estoril e que estava destinada a
desempenhar papel importante na nossa acção.
Reunião que se
realizou num momento particularmente sensível da vida do Movimento dos
Capitães, quando se atravessou uma fase de clarificação que provocou
rupturas, mas nos permitiu prosseguir com mais segurança. Refiro-me à
única cisão que o Movimento sofreu durante a conspiração, em
consequência de uma tentativa do poder para nos controlar por dentro,
através de alguns conspiradores.
Nascido há menos de três meses, o
Movimento dava passos titubeantes, procurando consolidar posições, ao
mesmo tempo que tentava alargar o seu espaço de acção. Foi então que
fomos confrontados com a proposta de dar um cheque em branco ao governo,
pois ele iria resolver os nossos problemas corporativos e
profissionais. Proposta que nos forçou a uma clarificação, que passou
pela auto-suspensão da actividade da comissão coordenadora provisória,
saída da reunião de Alcáçovas em 9 de Setembro.
E provocou a
marcação de uma reunião alargada, para eleger uma comissão coordenadora
definitiva e decidir sobre o rumo a seguir. No entanto, dada a grande
importância desta reunião, havia que prepará-la bem, para o que se
marcou uma outra, com delegados que cobrissem todo o Exército.
Foi com essa intenção que procurámos que alguém nos disponibilizasse uma
casa onde pudessem reunir-se cerca de 50 pessoas. Apareceu então o
capitão Bismarck a informar-nos que conseguira uma casa junto à Colónia
Balnear Infantil O Século.
Não me recordo se foi o Bismarck ou outra
pessoa que pôs a correr que a casa onde iríamos reunir era a do guarda
das instalações da colónia balnear. O facto é que essa foi a versão que
fez história durante muitos anos e apenas foi desfeita, quando
preparávamos a evocação dos 25 anos da mesma.
Por isso, só então
pudemos agradecer publicamente a José Manuel Fonseca Ribeiro que,
consciente dos perigos que corria, aceitou ajudar-nos e nos permitiu
reunir no casarão da Cerca de S. Pedro, paredes meias com a referida
colónia balnear.
Bem-haja, pela coragem e pelo patriotismo de que
então deu prova! Não lhe pudemos fazer esse agradecimento em vida, mas,
25 anos depois, recordámo-lo e agradecemos-lhe publicamente, em
cerimónia evocativa, nas pessoas de sua mulher e seus filhos, aí
presentes.
Nessa altura, agradecemos também a sua irmã, Maria da
Fonseca Ribeiro, a coragem que a levou a resistir às torturas da
PIDE/DGS.
Agradecimento que juntámos ao que, sem o sabermos, lhe fizemos em 27 de Abril, quando a libertámos de Caxias.
Permita-se-me, aqui, um parêntesis para lembrar que a Maria da Fonseca
Ribeiro pertencia à LUAR e fora presa, na sequência da prisão do Palma
Inácio, em 23 de Novembro, precisamente na véspera da nossa reunião.
Ora, sabendo a PIDE/DGS que ela escondera material explosivo da LUAR,
torturaram-na nesses dias, para que ela confessasse o local do
esconderijo. E ela, sem fazer ideia que o irmão emprestara a casa para
uma reunião clandestina - que por sua vez também não fazia ideia que a
irmã era da LUAR e utilizara a casa familiar para ali esconder material
dessa organização - resistiu e nada confessou.
Calcule-se o que
teria acontecido se ela indicasse o local: os pides iriam lá,
desprevenidos e dariam com mais de quarenta oficiais do Exército,
armados e em ambiente extraordinariamente explosivo...!
Voltando à
reunião de 24 de Novembro de 1973, recordemos que ela foi bem mais
importante do que à partida supúnhamos, porque nela participou o
tenente-coronel Luís Banazol.
Com efeito, tacteando o caminho,
segredando, com algum receio ou com algum desenvolto descaramento, a
hipótese de avançar para o derrube do regime, não vínhamos conseguindo
afastar-nos do enredo de uma luta de mais ou menos papéis. Recordo que,
tendo já discutido formalmente a hipótese de um golpe de força, numa
importante reunião em 6 de Outubro, ela fora afastada liminarmente.
Foi aí que, decidido e corajoso, na reunião que aqui evocamos, aparece o
Luís Banazol a afirmar que isto não vai lá com papéis! O governo só cai
à força! E nós é que temos a força necessária! Por isso, nada de
hesitações! Revolução, já!
O aviso da presença de uma bomba, ou a
chegada da Pide ao local, dificilmente teriam provocado maior efeito
que a intervenção deste militar de Abril. Foi como se os seus galões de
tenente-coronel tivessem dissipado todas as dúvidas, todos os receios,
todas as hesitações. Fortemente aplaudido, como se não estivéssemos numa
reunião clandestina, foi com alguma dificuldade que se conseguiu
serenar os ânimos, acalmar o entusiasmo. E as poucas intervenções mais
cautelosas não obtiveram qualquer aceitação.
Foi já sob uma contida
excitação que se aprovou a agenda para a reunião marcada para dali a 8
dias, em Óbidos. Agenda que os presentes levaram a todas as unidades do
Exército, promovendo a sua discussão e preparando as respostas a
fornecer na que viria a ser uma das principais reuniões conspirativas.
O Luís Banazol merece a homenagem que nesses 25 anos de evocação lhe
fizeram os camaradas que ele ajudou a enfrentar a realidade e que nem
sempre o compreenderam. Teve, no entanto, sempre quem o respeitasse, o
compreendesse e o estimasse.
Quer se queira ou não, quer se concorde
ou não, não tenhamos dúvidas: sem a acção do Luís Banazol teria sido
bem mais difícil chegar ao 25 de Abril e à libertação de Portugal!
Foi uma jornada difícil, onde tivemos de enfrentar, mas soubemos
vencer, as enormes dificuldades criadas pelo poder militar, pelo poder
político, pela PIDE/DGS.
Resta dizer qual a agenda ali aprovada, para a reunião de 1 de Dezembro em Óbidos:
A.1. Conquista do Poder, para com uma Junta Militar, criar no País as
condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional
(Democratização)
A.2. Dar oportunidade ao Governo de se legitimar
perante a Nação através de eleições livres, devidamente fiscalizadas
pelo Exército, precedidas de um referendo sobre a Política Ultramarina
A.3. Utilização de reivindicações exclusivamente militares, como forma
de alcançar o prestígio do Exército e de pressão sobre o Governo
B. Circunscrever o problema só ao Exército ou alargá-lo a todas as Forças Armadas
C. Como deve ser constituída a Comissão Coordenadora, por quem e quais as suas funções.
D. Para a solução escolhida, acha que se deve contactar algum chefe? Quem?
E. Estudo de situação.”
Agenda para reunião de Óbidos - Apontamentos de Vasco Lourenço |
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Só mais umas notas:
Para responder às movimentações dos capitães do Exército, o coronel
Viana de Lemos foi nomeado para subsecretário de Estado do Exército do
Governo de Marcelo Caetano em 7 de Novembro de 1973. Viana de Lemos
tinha ligações a alguns dos conspiradores e tentou, através deles,
controlar o Movimento por dentro. A resposta do Movimento foi dada em
São Pedro do Estoril e depois em Óbidos
Muitos dos que
participaram na reunião de São Pedro do Estoril estavam de facto armados
e um deles até tinha no porta-bagagens do carro uma bazuca com duas
granadas anticarro. O Vasco Lourenço disse noutra ocasião que se a PIDE
tivesse aparecido levaria 3, 4, 5 pessoas no máximo, que seriam
abatidas, disso não tem dúvida nenhuma. “Naquele ambiente, se nos
aparecem lá tipos da PIDE, a malta pegava nas armas que tinha, e com a
experiência que tinha, e com a bazucada e tudo, naquele dia havia de ser
bonito!”
Dias depois, na Casa do Povo de Óbidos, 180 delegados de
unidades em representação de 429, votaram a hipótese A.3, por estreita
margem em relação à A.1. Embora a hipótese de derrube do regime tenha
sido preterida por influência dos para-quedistas, que recusaram
liminarmente qualquer acto de força, a crescente consciencialização
política do Movimento, que passou a ser dos Oficiais das Forças Armadas
com a decisão de alargamento à Marinha e à Força Aérea, assim como a
convicção de que a guerra só seria resolvida se o Governo fosse
derrubado, tinham tornado o processo irreversível.
A estrutura
organizativa do Movimento que iria derrubar o regime também ficou
definida em Óbidos com a eleição da Comissão Coordenadora e Executiva,
com três elementos da cada Arma ou Serviço do Exército. Na escolha dos
chefes prestigiados o mais votado foi o general Costa Gomes, o segundo o
general António de Spínola e o terceiro... o general Kaúlza de Arriaga!
Estávamos a menos de cinco meses do 25 de Abril!
Reza ainda
a lenda que os proprietários da casa da Cerca, uma família conservadora
com antecedentes monárquicos e profundas convicções católicas, com
ligações de amizade pessoal a figuras proeminentes do regime
salazarista, adquiriu a antiga fábrica de conservas de sardinha em 1943
para no terreno construir uma nova casa, com vista para o mar. Como a
construção não foi autorizada, o edifício acabou por ser só recuperado e
o casarão, que tinha uma capela onde o bispo autorizou a celebração da
missa, foi também local de reuniões clandestinas de oficiais da Marinha
com exibição de filmes sobre a guerra no Vietnam e O Couraçado Potemkin e
nele actuou José Afonso.
De facto, a resistência política na Marinha, particularmente activa a partir da fraude eleitoral de 69, é uma realidade histórica ainda desconhecida de muitos. As várias formas de organização e acção - pública, semiclandestina e clandestina – baseada nos cursos da Escola Naval, nas guarnições dos navios e unidades em terra e nas áreas de residência, com locais de reunião que tanto podiam ser as unidades como as casas de cada um ou o Clube Militar Naval, é um caso de estudo interessante. E essa actividade começava pouco depois da entrada na Escola Naval, muitas vezes com ligações aos cursos da Reserva Naval, os oficiais milicianos da Marinha. Foi assim que oficiais da Marinha participaram em diversos movimentos cívicos de resistência nos anos que antecederam o 25 de Abril, incluindo as eleições de 1969 e o congresso da oposição democrática de Aveiro em 1973. E foi também por isso que a integração com o Movimento dos Capitães, em especial a partir da reunião de São Pedro do Estoril, foi feita com prudência, mas sem grande dificuldade. Quem conhece o que se passou na Marinha antes do 25 de Abril compreende o seu papel no golpe e no PREC e o contributo para evitar a guerra civil em Novembro de 1975. Mas o que importa agora lembrar é que embora a maioria dos oficiais do Exército reunidos naquele dia 24 de Novembro de 1973 não tivesse consciência disso, o caminho da resistência na Marinha também se cruzou com o do Movimento dos Capitães na Casa da Cerca.
Finalmente, no dia 24 de Novembro de 1973, o José Manuel Fonseca Ribeiro, para além do risco que correu ao emprestar a casa para a reunião conspiratória, decidiu estar presente acompanhado dos seus quatro filhos para que ela parecesse um encontro de família. Claro que seria um cenário difícil de justificar tendo em conta os mais de quarenta homens de cabelo curto e porte militar que nela participaram, mas ficou a intenção e, acima de tudo, a prova da sua coragem.
De facto, a resistência política na Marinha, particularmente activa a partir da fraude eleitoral de 69, é uma realidade histórica ainda desconhecida de muitos. As várias formas de organização e acção - pública, semiclandestina e clandestina – baseada nos cursos da Escola Naval, nas guarnições dos navios e unidades em terra e nas áreas de residência, com locais de reunião que tanto podiam ser as unidades como as casas de cada um ou o Clube Militar Naval, é um caso de estudo interessante. E essa actividade começava pouco depois da entrada na Escola Naval, muitas vezes com ligações aos cursos da Reserva Naval, os oficiais milicianos da Marinha. Foi assim que oficiais da Marinha participaram em diversos movimentos cívicos de resistência nos anos que antecederam o 25 de Abril, incluindo as eleições de 1969 e o congresso da oposição democrática de Aveiro em 1973. E foi também por isso que a integração com o Movimento dos Capitães, em especial a partir da reunião de São Pedro do Estoril, foi feita com prudência, mas sem grande dificuldade. Quem conhece o que se passou na Marinha antes do 25 de Abril compreende o seu papel no golpe e no PREC e o contributo para evitar a guerra civil em Novembro de 1975. Mas o que importa agora lembrar é que embora a maioria dos oficiais do Exército reunidos naquele dia 24 de Novembro de 1973 não tivesse consciência disso, o caminho da resistência na Marinha também se cruzou com o do Movimento dos Capitães na Casa da Cerca.
Finalmente, no dia 24 de Novembro de 1973, o José Manuel Fonseca Ribeiro, para além do risco que correu ao emprestar a casa para a reunião conspiratória, decidiu estar presente acompanhado dos seus quatro filhos para que ela parecesse um encontro de família. Claro que seria um cenário difícil de justificar tendo em conta os mais de quarenta homens de cabelo curto e porte militar que nela participaram, mas ficou a intenção e, acima de tudo, a prova da sua coragem.
Muitos caminhos se cruzaram na casa que agora é apenas uma memória!