quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A Casa da Cerca



Durante anos estiveram lá as ruínas, feias e tristes, e por isso era fácil explicar onde foi a reunião de São Pedro do Estoril. Agora é mais difícil porque o casarão que testemunhou um dos momentos mais dramáticos da preparação do derrube do regime também foi demolido. Ficou a empena sul, a imagem aérea no Google Maps e a memória de quem, no início da década de 70 do século passado, tinha todos os sonhos do mundo.
Mas nisto da memória, não há nada como sermos fiéis à do Vasco Lourenço, organizador e moderador da reunião, quando recordou no Canadá como os caminhos da luta contra o fascismo se cruzaram na Casa da Cerca, o edifício que existia colado às traseiras da Colónia Balnear Infantil O Século, em São Pedro do Estoril.
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Pedem-me os meus amigos do Centro Cultural 25 de Abril - Núcleo Salgueiro Maia, que conte uma Pequena Estória. Por hoje, vou lembrar uma reunião que, não sendo considerada uma das grandes reuniões conspirativas que nos levaram ao 25 de Abril de 1974 - falo do 9 de Setembro, em Alcáçovas; do 1 de Dezembro, em Óbidos; do 5 de Março, em Cascais - se realizou a 24 de Novembro de 1973, em São Pedro do Estoril e que estava destinada a desempenhar papel importante na nossa acção.

Reunião que se realizou num momento particularmente sensível da vida do Movimento dos Capitães, quando se atravessou uma fase de clarificação que provocou rupturas, mas nos permitiu prosseguir com mais segurança. Refiro-me à única cisão que o Movimento sofreu durante a conspiração, em consequência de uma tentativa do poder para nos controlar por dentro, através de alguns conspiradores.

Nascido há menos de três meses, o Movimento dava passos titubeantes, procurando consolidar posições, ao mesmo tempo que tentava alargar o seu espaço de acção. Foi então que fomos confrontados com a proposta de dar um cheque em branco ao governo, pois ele iria resolver os nossos problemas corporativos e profissionais. Proposta que nos forçou a uma clarificação, que passou pela auto-suspensão da actividade da comissão coordenadora provisória, saída da reunião de Alcáçovas em 9 de Setembro.
E provocou a marcação de uma reunião alargada, para eleger uma comissão coordenadora definitiva e decidir sobre o rumo a seguir. No entanto, dada a grande importância desta reunião, havia que prepará-la bem, para o que se marcou uma outra, com delegados que cobrissem todo o Exército.

Foi com essa intenção que procurámos que alguém nos disponibilizasse uma casa onde pudessem reunir-se cerca de 50 pessoas. Apareceu então o capitão Bismarck a informar-nos que conseguira uma casa junto à Colónia Balnear Infantil O Século.
Não me recordo se foi o Bismarck ou outra pessoa que pôs a correr que a casa onde iríamos reunir era a do guarda das instalações da colónia balnear. O facto é que essa foi a versão que fez história durante muitos anos e apenas foi desfeita, quando preparávamos a evocação dos 25 anos da mesma.
Por isso, só então pudemos agradecer publicamente a José Manuel Fonseca Ribeiro que, consciente dos perigos que corria, aceitou ajudar-nos e nos permitiu reunir no casarão da Cerca de S. Pedro, paredes meias com a referida colónia balnear.

Bem-haja, pela coragem e pelo patriotismo de que então deu prova! Não lhe pudemos fazer esse agradecimento em vida, mas, 25 anos depois, recordámo-lo e agradecemos-lhe publicamente, em cerimónia evocativa, nas pessoas de sua mulher e seus filhos, aí presentes.
Nessa altura, agradecemos também a sua irmã, Maria da Fonseca Ribeiro, a coragem que a levou a resistir às torturas da PIDE/DGS.
Agradecimento que juntámos ao que, sem o sabermos, lhe fizemos em 27 de Abril, quando a libertámos de Caxias.

Permita-se-me, aqui, um parêntesis para lembrar que a Maria da Fonseca Ribeiro pertencia à LUAR e fora presa, na sequência da prisão do Palma Inácio, em 23 de Novembro, precisamente na véspera da nossa reunião.
Ora, sabendo a PIDE/DGS que ela escondera material explosivo da LUAR, torturaram-na nesses dias, para que ela confessasse o local do esconderijo. E ela, sem fazer ideia que o irmão emprestara a casa para uma reunião clandestina - que por sua vez também não fazia ideia que a irmã era da LUAR e utilizara a casa familiar para ali esconder material dessa organização - resistiu e nada confessou.
Calcule-se o que teria acontecido se ela indicasse o local: os pides iriam lá, desprevenidos e dariam com mais de quarenta oficiais do Exército, armados e em ambiente extraordinariamente explosivo...!

Voltando à reunião de 24 de Novembro de 1973, recordemos que ela foi bem mais importante do que à partida supúnhamos, porque nela participou o tenente-coronel Luís Banazol.
Com efeito, tacteando o caminho, segredando, com algum receio ou com algum desenvolto descaramento, a hipótese de avançar para o derrube do regime, não vínhamos conseguindo afastar-nos do enredo de uma luta de mais ou menos papéis. Recordo que, tendo já discutido formalmente a hipótese de um golpe de força, numa importante reunião em 6 de Outubro, ela fora afastada liminarmente.

Foi aí que, decidido e corajoso, na reunião que aqui evocamos, aparece o Luís Banazol a afirmar que isto não vai lá com papéis! O governo só cai à força! E nós é que temos a força necessária! Por isso, nada de hesitações! Revolução, já!
O aviso da presença de uma bomba, ou a chegada da Pide ao local, dificilmente teriam provocado maior efeito que a intervenção deste militar de Abril. Foi como se os seus galões de tenente-coronel tivessem dissipado todas as dúvidas, todos os receios, todas as hesitações. Fortemente aplaudido, como se não estivéssemos numa reunião clandestina, foi com alguma dificuldade que se conseguiu serenar os ânimos, acalmar o entusiasmo. E as poucas intervenções mais cautelosas não obtiveram qualquer aceitação.

Foi já sob uma contida excitação que se aprovou a agenda para a reunião marcada para dali a 8 dias, em Óbidos. Agenda que os presentes levaram a todas as unidades do Exército, promovendo a sua discussão e preparando as respostas a fornecer na que viria a ser uma das principais reuniões conspirativas.

O Luís Banazol merece a homenagem que nesses 25 anos de evocação lhe fizeram os camaradas que ele ajudou a enfrentar a realidade e que nem sempre o compreenderam. Teve, no entanto, sempre quem o respeitasse, o compreendesse e o estimasse.
Quer se queira ou não, quer se concorde ou não, não tenhamos dúvidas: sem a acção do Luís Banazol teria sido bem mais difícil chegar ao 25 de Abril e à libertação de Portugal!

Foi uma jornada difícil, onde tivemos de enfrentar, mas soubemos vencer, as enormes dificuldades criadas pelo poder militar, pelo poder político, pela PIDE/DGS.
Resta dizer qual a agenda ali aprovada, para a reunião de 1 de Dezembro em Óbidos:
A.1. Conquista do Poder, para com uma Junta Militar, criar no País as condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional (Democratização)
A.2. Dar oportunidade ao Governo de se legitimar perante a Nação através de eleições livres, devidamente fiscalizadas pelo Exército, precedidas de um referendo sobre a Política Ultramarina
A.3. Utilização de reivindicações exclusivamente militares, como forma de alcançar o prestígio do Exército e de pressão sobre o Governo
B. Circunscrever o problema só ao Exército ou alargá-lo a todas as Forças Armadas
C. Como deve ser constituída a Comissão Coordenadora, por quem e quais as suas funções.
D. Para a solução escolhida, acha que se deve contactar algum chefe? Quem?
E. Estudo de situação.

Agenda para reunião de Óbidos - Apontamentos de Vasco Lourenço

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Só mais umas notas:

Para responder às movimentações dos capitães do Exército, o coronel Viana de Lemos foi nomeado para subsecretário de Estado do Exército do Governo de Marcelo Caetano em 7 de Novembro de 1973. Viana de Lemos tinha ligações a alguns dos conspiradores e tentou, através deles, controlar o Movimento por dentro. A resposta do Movimento foi dada em São Pedro do Estoril e depois em Óbidos

Muitos dos que participaram na reunião de São Pedro do Estoril estavam de facto armados e um deles até tinha no porta-bagagens do carro uma bazuca com duas granadas anticarro. O Vasco Lourenço disse noutra ocasião que se a PIDE tivesse aparecido levaria 3, 4, 5 pessoas no máximo, que seriam abatidas, disso não tem dúvida nenhuma. “Naquele ambiente, se nos aparecem lá tipos da PIDE, a malta pegava nas armas que tinha, e com a experiência que tinha, e com a bazucada e tudo, naquele dia havia de ser bonito!

Dias depois, na Casa do Povo de Óbidos, 180 delegados de unidades em representação de 429, votaram a hipótese A.3, por estreita margem em relação à A.1. Embora a hipótese de derrube do regime tenha sido preterida por influência dos para-quedistas, que recusaram liminarmente qualquer acto de força, a crescente consciencialização política do Movimento, que passou a ser dos Oficiais das Forças Armadas com a decisão de alargamento à Marinha e à Força Aérea, assim como a convicção de que a guerra só seria resolvida se o Governo fosse derrubado, tinham tornado o processo irreversível.
A estrutura organizativa do Movimento que iria derrubar o regime também ficou definida em Óbidos com a eleição da Comissão Coordenadora e Executiva, com três elementos da cada Arma ou Serviço do Exército. Na escolha dos chefes prestigiados o mais votado foi o general Costa Gomes, o segundo o general António de Spínola e o terceiro... o general Kaúlza de Arriaga!
Estávamos a menos de cinco meses do 25 de Abril!

Reza ainda a lenda que os proprietários da casa da Cerca, uma família conservadora com antecedentes monárquicos e profundas convicções católicas, com ligações de amizade pessoal a figuras proeminentes do regime salazarista, adquiriu a antiga fábrica de conservas de sardinha em 1943 para no terreno construir uma nova casa, com vista para o mar. Como a construção não foi autorizada, o edifício acabou por ser só recuperado e o casarão, que tinha uma capela onde o bispo autorizou a celebração da missa, foi também local de reuniões clandestinas de oficiais da Marinha com exibição de filmes sobre a guerra no Vietnam e O Couraçado Potemkin e nele actuou José Afonso.

De facto, a resistência política na Marinha, particularmente activa a partir da fraude eleitoral de 69, é uma realidade histórica ainda desconhecida de muitos. As várias formas de organização e acção - pública, semiclandestina e clandestina – baseada nos cursos da Escola Naval, nas guarnições dos navios e unidades em terra e nas áreas de residência, com locais de reunião que tanto podiam ser as unidades como as casas de cada um ou o Clube Militar Naval, é um caso de estudo interessante. E essa actividade começava pouco depois da entrada na Escola Naval, muitas vezes com ligações aos cursos da Reserva Naval, os oficiais milicianos da Marinha. Foi assim que oficiais da Marinha participaram em diversos movimentos cívicos de resistência nos anos que antecederam o 25 de Abril, incluindo as eleições de 1969 e o congresso da oposição democrática de Aveiro em 1973. E foi também por isso que a integração com o Movimento dos Capitães, em especial a partir da reunião de São Pedro do Estoril, foi feita com prudência, mas sem grande dificuldade. Quem conhece o que se passou na Marinha antes do 25 de Abril compreende o seu papel no golpe e no PREC e o contributo para evitar a guerra civil em Novembro de 1975. Mas o que importa agora lembrar é que embora a maioria dos oficiais do Exército reunidos naquele dia 24 de Novembro de 1973 não tivesse consciência disso, o caminho da resistência na Marinha também se cruzou com o do Movimento dos Capitães na Casa da Cerca.

Finalmente, no dia 24 de Novembro de 1973, o José Manuel Fonseca Ribeiro, para além do risco que correu ao emprestar a casa para a reunião conspiratória, decidiu estar presente acompanhado dos seus quatro filhos para que ela parecesse um encontro de família. Claro que seria um cenário difícil de justificar tendo em conta os mais de quarenta homens de cabelo curto e porte militar que nela participaram, mas ficou a intenção e, acima de tudo, a prova da sua coragem.

Muitos caminhos se cruzaram na casa que agora é apenas uma memória!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Crónica de Abril Hoje




Quando os jovens discutem, planeiam e concretizam soluções para os problemas que os afectam, num exercício de cidadania e construção de uma sociedade mais justa, acontece Abril. Aconteceu em 1974, no “dia inicial inteiro e limpo” segundo Sophia, mas também está a acontecer hoje, na Escola Básica e Secundária de Carcavelos, quando as turmas do secundário identificaram as cinco preocupações ou problemas que afectam os jovens portugueses; quando uma assembleia de delegados de turma votou o desemprego e o bullying para serem estudados e, colectivamente, serem encontradas soluções para apresentar à Escola e a outras entidades públicas; e quando o André Santos, a Beatriz Ferreira, a Carolina Conceição, a Íris Ramos, o Lucas Gabriel e a Mafalda Silva, eleitos para dinamizar o projecto, dirigiram uma reunião com quase centena e meia de colegas para apresentar os resultados do inquérito de atitude aos alunos da escola e iniciar o debate sobre as estratégias de prevenção e contenção do bullying a serem implementadas na escola.

E como o raciocínio e a memória, sendo duas faculdades distintas, só se desenvolvem completamente uma com a outra, convidaram dois membros da Associação 25 de Abril, jovens militares em Abril de 1974, para evocarem as suas memórias e reflexões. O Jorge Bettencourt sobre o Portugal do Estado Novo e a primeira fase da conspiração do 25 de Abril, e o Fernando Cavaco sobre a violência entre os jovens e nos grupos sociais. É que a evocação de memórias individuais e colectivas e a reflexão sobre impressões, fragmentos e imagens do passado são instrumentos essenciais para uma sociedade consciente construir soluções sólidas e de acordo com as necessidades do seu presente.

 

Preparação do 25 de Abril

Do Portugal de antes do 25 de Abril, os alunos reunidos no auditório da Escola Secundária de Carcavelos na manhã de 12 de Dezembro de 2016, lembraram a falta de liberdade e o regime autoritário e repressivo imposto pelo Estado Novo, a restrição dos direitos das mulheres consagrada na Constituição de 1933, os baixos índices de desenvolvimento económico e as condições de vida difícil que levaram à emigração em larga escala de muitos portugueses. Lembraram os treze anos de guerra em África que afectou profunda e negativamente oitocentos mil jovens, tirando a vida a quase nove mil. Lembraram a contestação ao congresso dos combatentes e a génese do Movimento dos Capitães.

Lembraram a primeira reunião plenária em Alcáçovas, em 9 de Setembro de 1973, e o carácter de insubordinação da movimentação dos jovens oficiais do Quadro Permanente do Exército, que nunca foram mais de 700 em 4 165. Lembraram como à medida que se realizavam as reuniões, a questão corporativa perdeu terreno perante outros objectivos, dos quais a dignificação das forças armadas e a solução política da guerra se apresentavam como os mais significativos. Lembraram a importância da reunião de 45 militares do Exército e alguns observadores da Marinha na Casa da Cerca em S. Pedro do Estoril, em 24 de Novembro de 1973, uma casa emprestada que desconheciam ter servido de esconderijo de propaganda e material explosivo da LUAR, de local de reuniões clandestinas de oficiais da Marinha com exibição de filmes sobre a Guerra no Vietnam e O Couraçado Potemkin e onde actuou José Afonso.

Na reunião de S. Pedro do Estoril, onde foi pela primeira vez sugerido o derrube do regime, foi preparada a agenda da reunião de Óbidos de 1 de Dezembro de 1973. Foi pedido às unidades que enviassem àquela reunião delegados com respostas sobre a via a prosseguir: Hipótese A - «Conquista do poder para, com uma Junta Militar, criar no país as condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional (democratização)»; Hipótese B - «Legitimação do Governo, através de eleições livres, devidamente fiscalizadas pelo Exército, seguindo-se um referendo sobre o problema do Ultramar»; Hipótese C - «Utilização de reivindicações exclusivamente militares, como forma de alcançar o prestígio das Forças Armadas, e de pressão sobre o Governo, com vista à obtenção da hipótese B». Além da posição sobre a via a prosseguir, os delegados deveriam também dar resposta às seguintes questões: 1.ª - «Deve o assunto ser circunscrito ao Exército ou alargar-se ao âmbito das Forças Armadas?»; 2ª - «Como será constituída a próxima Comissão Coordenadora? Quem a constituirá e que funções terá?»; 3ª - «Devem ou não escolher-se chefes militares de prestígio, aos quais nos liguemos e que orientarão politicamente a nossa acção, face a uma das três hipóteses? Em caso afirmativo, qual ou quais os chefes a eleger?». Com a reunião de S. Pedro do Estoril, o Movimento entrou numa fase marcadamente política.

Dias depois, na Casa do Povo de Óbidos, 86 delegados de unidades em representação de 200, votaram a hipótese C, por estreita margem em relação à A. Embora a hipótese de derrube do regime tenha sido preterida por influência dos pára‑quedistas, que recusaram liminarmente qualquer acto de força, a crescente consciencialização política do Movimento, que passou a ser dos Oficiais das Forças Armadas com a decisão de alargamento à Marinha e à Força Aérea, assim como a convicção de que a guerra só seria resolvida se o Governo fosse derrubado, tinham tornado o processo irreversível. A estrutura organizativa do Movimento que iria derrubar o regime também ficou definida em Óbidos com a eleição da Comissão Coordenadora e Executiva, com três elementos da cada Arma ou Serviço do Exército. Na escolha dos chefes prestigiados o mais votado foi o general Costa Gomes, o segundo o general António de Spínola e o terceiro o general Kaúlza de Arriaga.

Depois de S. Pedro do Estoril e Óbidos, o Movimento tornou-se mais abrangente, quer em objectivos quer em participantes. É por isso que embora o Movimento dos Capitães tenha estado na génese do MFA, não corresponde exactamente à mesma realidade política e sociológica. Houve oficiais que pertenceram ao primeiro e não estiveram no segundo, assim como uma parte dos oficiais que integrou o MFA não pertenceu ao Movimento dos Capitães.

Em 5 de Dezembro, na reunião da Comissão Coordenadora na Costa da Caparica, a estrutura organizativa do Movimento é completada com a eleição da sua Direcção: Vítor Alves (orientação política), Otelo Saraiva de Carvalho (secretariado) e Vasco Lourenço (organização interna e ligações).

 

Bullying

"Se eu pudesse
ir para a escola
quando me apetece
jogar à bola
sem me chatear com quem me aborrece!"
(Mafalda)

A violência, entendida como uma acção ou comportamento que causa dano a outra pessoa ou ser vivo, que nega ao outro a autonomia, a integridade física ou psicológica e até mesmo o direito à vida, tem no ambiente escolar diversas manifestações; algumas afectam os professores, outras os funcionários, mas na sua maioria afectam os alunos de diversas faixas etárias. A violência escolar mais frequente entre colegas é conhecida como bullying e manifesta-se através de comportamentos agressivos de intimidação do outro de que resultam práticas violentas exercidas por um indivíduo ou por pequenos grupos, com carácter regular e frequente. Os comportamentos incluídos na categoria bullying são muito diversos e estão ligados a acções físicas, verbais, psicológicas e sexuais.

Na análise metodológica considera-se que existem três tipos de bullying: o físico ou directo, o psicológico e o indirecto. O primeiro abrange comportamentos como bater, pontapear, empurrar, roubar, ameaçar, brincar de uma forma rude intimidatória e usar armas. O segundo consiste em chamar nomes, irritar ou gozar, ser sarcástico, insultuoso ou injurioso, fazer caretas e ameaçar. Por fim, o terceiro, que é o mais dissimulado porque não é tão visível, inclui excluir ou rejeitar alguém de um grupo.

No teste de atitude relativamente ao bullying realizado por 131 alunos dos 7º, 8º e 9º anos (Básico) da escola, os resultados foram:

  • 45% considera que o bullying não passa de uma brincadeira entre amigos e que nem sempre é intencional e maldoso;
  • 77% considera que tem sempre consequências negativas
  • 61% pensa que os agressores procuram os pontos fracos dos “amigos” e a maioria considera que o bullying é um ato prolongado no tempo;
  • Aproximadamente 70% pensa que o bullying não é praticado apenas por jovens nem recai apenas sobre jovens.



No mesmo teste realizado por 115 alunos dos 10º, 11º e 12º anos (Secundário) os resultados foram:

  • 62% não considera que o bullying seja apenas uma brincadeira entre amigos , ao contrário da opinião dos alunos do ensino básico;
  • Aproximadamente 70% acha que as consequências são sempre negativos e prejudicam sempre a vítima;
  • 52% pensa que nem sempre é praticados sobre pessoas indefesas;
  •  72% considera que os agressores procuram aproveitar os pontos fracos dos “amigos”;
  • A maioria considera que o bullying é um ato prolongado no tempo;
  • 86,1% considera que não se trata de maneira nenhuma de uma prática pacífica;
  • A grande maioria pensa que nem os agressores, nem as vítimas são sempre jovens.



Para dar resposta às preocupações suscitadas pela ocorrência do bullying, os alunos vão agora estudar o fenómeno nos diferentes níveis - escola, turma, indivíduo e família - para delinear um plano de prevenção e contenção a apresentar em Maio.

Para isso lembrarão as vivências pessoais relatadas pelo Fernando Cavaco, o menino que cresceu em Alcochete, filho do funcionário das Finanças. Era um dos poucos que usava sapatos. Os outros eram, por exemplo, o filho do GNR local e o filho do médico da Vila que, por terem sapatos, sofriam a violência dos meninos descalços. Claro que também havia o Pedrinhas, que usava botas, filho dum salsicheiro, um homem rico da terra, mas esse não agredia os meninos com sapatos, fazia bullying sim…, mas aos meninos descalços. E lembrar-se-ão que o filho do funcionário das Finanças deixou de ser agredido quando o pai apareceu e falou com os colegas do filho.

Fernando Cavaco quis deixar uma recomendação de pesquisa e aproveitou para mostrar que na AUSÊNCIA de PAI pode haver bullying, fenómeno de violência impensada, mas sentida. O bullying é filho da frustração e do vazio, quer individual quer do grupo. A gestão dos afectos está na sua origem. Podemos começar a sua análise, percebendo que … TUDO COMEÇA em CASA, disse.

Mostrou que, para além da análise quantitativa, que é muito importante, é fundamental, portanto, que ela se faça acompanhar de uma análise qualitativa.

Lembrarão outros casos então citados: o da menina de um bairro degradado de Lisboa, que era acordada pelo pai quando este chegava de mota a meio da noite, alcoolizado, e via filmes pornográficos na presença de toda a família. Na escola, a menina projectava o seu mal-estar interior fazendo bullying sobre as suas colegas. Lembrarão, igualmente, o menino do mesmo bairro degradado, superprotegido pela mãe, que era gozado e agredido pelos colegas.

Lembrarão, portanto, a necessidade de explorar a ideia do efeito que a família a mais ou a família a menos tem na ocorrência do bullying. E a referência a dois livros: “O Homem Sem Qualidades” de Robert Musil (escrito ainda antes da 2ª Guerra Mundial); e a outro muito recente da psicanalista Annie Anzieu, “La femme sans qualité”. E certamente que recordarão ainda a pequena história do final dos anos 60 na Escola Naval, no Alfeite, a revolta de cadetes contra a praxe, uma forma violenta de forçar a integração num grupo.

Por falta de tempo, não ouviram falar da menina portuguesa que foi com os pais para a Alemanha e sofreu bullying dos colegas do 5º ano no Gymnasium porque não sabia alemão. Não ouviram que em países com desigualdades salariais elevadas há mais bullying entre pré-adolescentes do que em países com desigualdades salariais baixas. Que Portugal está no quartil superior da frequência de ocorrências de bullying enquanto a Suécia, que tem a desigualdade de rendimentos mais baixa da Europa, está no quartil inferior.

E não ouviram, porque também não perguntaram, a história dos dois bustos de negros em madeira que estiveram durante toda a sessão em cima da mesa. Se tivessem perguntado, o Fernando teria mostrado que constituíam uma oferta de um menino de Luanda que trabalhou na lavandaria de um navio português e que, a bordo, foi vítima de bullying … por ser negro.

 

Epílogo

Na manhã de 12 de Dezembro de 2016, os alunos e professores Escola Secundária de Carcavelos e os convidados da Associação 25 de Abril fizeram um exercício de cidadania e de construção de uma sociedade mais justa e conforme com o espírito de Abril. Muito ficou por dizer, mas falaram de violência e agressividade, de família a mais e de família a menos, de frustrações, de desejo, de vontade, de valores éticos e sociais, de amor-próprio, de comunicação, de participação, de cidadania, de democracia, do 25 de Abril.

E no final decidiram estudar mais e em Maio responder à pergunta da Sara, que mostra já que há … no ar… um DESEJO: ― Como é que se acaba com o bullying?
Será só um desejo da Sara?

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Pompa e triste circunstância


Há quem diga que o meu pai tinha uma relação muito especial com o dinheiro mas eu tenho a certeza que ele não tinha qualquer relação com o dinheiro. Nos cinquenta anos de actividade profissional, nunca soube quanto ganhava. Quando o vencimento era pago em numerário, recebia e entregava o envelope à minha mãe, e não pensava mais no assunto. Quando passou a receber no banco, libertou-se totalmente da preocupação de levantar o ordenado.

Viveu noventa e um anos, sempre com muito pouco dinheiro na carteira, só o estritamente essencial para as suas necessidades, que eram exíguas. O orçamento familiar era administrado pela minha mãe, que se encarregava de adquirir todos os bens necessários, dos alimentos aos medicamentos, dos livros à roupa, dos computadores aos carros. Quando o meu pai, por qualquer razão, decidia premiar monetariamente os filhos, e mais tarde os netos ou os bisnetos, escrevia num pedaço de papel: VALE Cinco Escudos, ou outro valor qualquer. Depois lá íamos nós ter com a minha mãe para resgatar o vale e ouvir o discurso do costume: — O teu pai é muito esperto, não tem dinheiro mas inventa-o!

Lembrei-me disto a propósito da permanente ameaça de crise por falência de bancos e de como ela tem servido para nos pôr a pagar a vida faustosa dos banqueiros e dos seus associados. Claro que os tipos da finança sabem que a crise não será como a pintam mas dá muito jeito manter a ameaça. Aprenderam em 1970, na Irlanda, que era possível passar sem eles. Fizeram uma greve e fecharam os bancos para vergar os trabalhadores bancários e ao fim de seis meses recuaram porque nada de grave se tinha passado. A população criou um sistema de trocas, com instrumentos semelhantes aos vales do meu pai, e mostrou que os bancos eram menos necessários que a maioria dos serviços camarários.

É certo que os irlandeses precisaram de uma espécie de sistema financeiro, mas provaram que passavam bem sem os edifícios majestosos, os bónus e as remunerações obscenas, a especulação de risco e, em especial, os resgates pagos pelos bolsos dos contribuintes.