Marginal de Inhambane, 21.07.1957 |
Confesso que nunca me libertei completamente da imagem que em adolescente criei da Guarda Nacional Republicana. Para mim eram então os tipos fardados, pouco simpáticos, que andavam aos pares pelas estradas e caminhos rurais e que me pediam os documentos da bicicleta. Sim, leram bem, da bicicleta, porque naquele tempo não se podia andar de bicicleta sem documentos.
Por isso o meu avô, cumpridor escrupuloso da lei, levou-me um dia, a mim e à minha bicicleta Raleigh preta roda 26, à Câmara Municipal do Cadaval para registar o velocípede e tirar a respectiva licença de condução. Depois de ter provado que a bicicleta tinha sido adquirida regularmente e concluído com sucesso o exame teórico e prático de condutor perante o funcionário da Câmara - mostrei que sabia os sinais de trânsito e fazia um oito sem me desequilibrar -, saí com o livrete e chapa da dita e com a licença de condução de velocípedes número qualquer coisa, com fotografia e tudo o que a lei exigia, sem esquecer o aviso: "Esta licença, passada de harmonia com o disposto no nº1 do art. 54º do Código da Estrada, deve acompanhar sempre o seu titular quando conduzir." Naturalmente que quando tal não acontecia, os guardas da GNR tratavam da autuação do prevaricador.
Bem, disse ter provado que a bicicleta Raleigh preta roda 26 tinha sido adquirida regularmente, mas o rigor histórico exige uma clarificação. De facto, a bicicleta foi adquirida regularmente em Inhambane pelos meus pais, em 1957. Mas quando cinco ou seis anos mais tarde fui com o meu avô à Câmara do Cadaval, depois de uma mudança para Quelimane e outra para Portugal, já ninguém sabia do paradeiro do documento de compra. E sem ele, nada feito, a burocracia camarária não registava o velocípede! A solução foi passar pela loja e oficina de bicicletas à entrada do Cadaval e pedir uma fatura de venda da Raleigh preta roda 26, uma espécie importada de Inglaterra e muito rara nas terras da Metrópole. O dono amigo fez-nos o favor e lá fomos à Câmara, tudo para que a lei se cumprisse.
Mas mesmo devidamente habilitado, nunca me senti confortável quando era interpelado pelos guardas e tinha de mostrar os documentos e esperar pela conclusão da inspecção do velocípede. Pelo sim pelo não, procurava evitá-los, coisa que não era difícil porque uma rede informal de miúdos e graúdos que passavam a palavra: "Vem aí a Guarda!", controlava a ameaça com eficácia.
Depois percebi que a GNR tinha outras funções, umas sinistras como a repressão política ou a guarda da prisão de Peniche, outras pacíficas como a fiscalização do trânsito, mas a percepção original permaneceu até hoje.