sábado, 18 de março de 2023

As lições do Comandante Saturnino Monteiro

Escola Naval - 25 de Novembro de 2010

O Comandante Saturnino Monteiro prestou serviço na Escola Naval (EN) em dois períodos distintos, o primeiro na viragem da década de 1960 e o segundo dez anos depois, na viragem da década de 1970 (de Outubro de 1968 a Julho de 1972).

Muitos anos depois, num depoimento sobre a sua experiência na EN para o projecto de História Oral da Academia de Marinha, afirmou que o segundo período representou uma diferença “como de água para vinho” em relação ao primeiro. “O ambiente era completamente diferente, existia uma descrença muito grande entre os cadetes da Escola, e muitos deles, entre os mais ativos, criavam um clima claramente subversivo.” E especificou: “Isto passa-se mais ou menos entre 1970 e 1972, já na fase final da guerra em que havia uma grande propaganda nos meios académicos, e esses rapazes, através das namoradas, muito ligadas pelas Universidades, estavam perfeitamente contagiados.

Ora eu, que entrei na EN em 1970 e tinha uma namorada na Faculdade, não podia ficar indiferente e escrevi um texto intitulado “A culpa foi das namoradas” sobre a explicação do Comandante Saturnino Monteiro para a minha descrença na ditadura e na guerra. Mas não interpretem a minha ironia como uma manifestação de menor respeito pelo autor do depoimento, tanto mais que o Comandante Saturnino Monteiro, embora conservador, era um oficial educado, íntegro, coerente e leal, e foi um dos quatro que mais me influenciaram na EN.

O Comandante Saturnino Monteiro, para além de Comandante do Corpo de Alunos, foi o nosso professor de Organização e Arte de Comando. Foi ele que nos transmitiu os valores essenciais da condição militar e nos ensinou como as leis que a regem, desde logo o Regulamento de Disciplina Militar, obrigam tanto os subordinados como os superiores hierárquicos. Certamente por isso, convidámos o Comandante Saturnino Monteiro para proferir uma lição no 40° aniversário da entrada do nosso curso na EN.

Pois foi no tal período de 1970 a 1972, em que segundo o Comandante Saturnino Monteiro existiam “cenas e ações que excediam todos os limites da disciplina”, que ocorreu um Juramento de Bandeira assim descrito pelo próprio Comandante Saturnino Monteiro:

Na véspera do Juramento [os cadetes] puseram a Escola em pé de guerra, aqueles bustos das figuras históricas foram postos em situações incríveis, cortaram os botões das fardas aos oficiais, mas isso não era uma rapaziada, isso estava inserido naquele ambiente subversivo, que então existia a Escola Naval. No dia em que se ia realizar a cerimónia de Juramento, de manhã, achei por bem dizer ao Comandante da Escola que telefonasse ao Chefe do Estado-Maior explicando que não podia haver Juramento, e que pedisse um pelotão de Fuzileiros para ir á Escola e mandasse esses cadetes todos presos para o Corpo de Marinheiros, porque era inacreditável o seu comportamento.

Foi assim neste contexto que, como chefe do meu curso, acabei por participar em várias reuniões da hierarquia da EN com os mais antigos de todos os cursos para tentarem resolver os sucessivos impasses que foram criados. Nesses concílios ouvi de tudo, assisti à desorientação total, aos convites à delação, à discussão das mais estapafúrdias sugestões e ameaças. Mas apesar disso, observei que o Comandante Saturnino Monteiro acabou por ser o oficial que se manteve mais lúcido, que assumiu a liderança do processo de resolução do imbróglio, sempre dentro das regras da arte de comando e da disciplina militar. Aliás, se não fosse ele a coisa podia ter sido muito mais feia.

E a verdade é que o comportamento e as lições do Comandante Saturnino Monteiro foram uma ferramenta essencial para as iniciativas contestatárias do nosso curso ao longo dos quatro anos na EN. Até sairmos da EN, procurávamos não fazer nada que pudesse ser atacado como acto de indisciplina militar. E depois de sairmos da EN, cada um de nós continuou a usar as lições de Arte de Comando do Comandante Saturnino Monteiro nas situações difíceis que tivemos de enfrentar como oficiais.

Não sei se os efeitos práticos foram relevantes, mas não era fácil apanharem-nos em falso. E essa aptidão, que parece faltar a alguns dos protagonistas dos mais recentes acontecimentos na Marinha, aprendemos com o Comandante Saturnino Monteiro.

quarta-feira, 8 de março de 2023

A cadela que morava na lua

 


Era uma vez uma cadela que morava na lua. Era uma cadela muito curiosa e brincalhona, que gostava de explorar a superfície lunar. Brincava com tudo o que encontrava, embora na lua não tivesse muito com que brincar. Pegava nas pedras, atirava-as ao ar, corria para as apanhar, mas pouco mais podia fazer.

Por isso a cadela que morava na lua olhava para as estrelas no céu e imaginava que eram os amigos que não tinha na lua. Sonhava que um dia iria ter com eles e se assim pensou, melhor o fez. Construiu uma nave espacial e partiu em direcção à bola azul que via no céu.

Quando chegou, abriu a porta da nave e viu um menino a correr para ela, a sorrir. Surpreendida, correu para ele e latiu.
– Olá, amiguinha, eu sou o Miguel! Quem és tu, como te chamas? – perguntou o menino.
– Eu venho da lua – respondeu a cadela, abanando o rabo.
– Se vens da lua, então és a Lua! – decidiu o Miguel.
– Está bem, gosto, é um nome bonito! E que lugar é este? – perguntou a Lua, sempre curiosa.
– Isto é a Terra e se quiseres vir comigo eu mostro o que aqui há – disse o Miguel.
– Oh, sim! Vamos! – disse a Lua, pulando de alegria.

A Lua e o Miguel gostaram logo um do outro. O Miguel mostrou à Lua as árvores, as flores, os animais, as montanhas, os vales, os mares e as praias da Terra. Apresentou a Lua aos amigos, aos pais e aos irmãos, que ficaram muito felizes por conhecerem uma visitante da lua.

A Lua e o Miguel divertiram-se muito e tornaram-se os melhores amigos. Jogaram à bola, fizeram construções, contaram histórias e cantaram canções. Também aprenderam um com o outro. A Lua ensinou ao Miguel sobre a vida na lua, o Miguel ensinou à Lua sobre a vida na Terra.

Mas quando o Miguel ia para a escola, a Lua voltava a ficar sozinha, sem ninguém para brincar. Por isso a mãe do Miguel levava a Lua para o trabalho para estar com meninos que viviam sozinhos e não sabiam brincar. E a Lua, sempre brincalhona, ensinou-os a brincar. E eles ficaram muito felizes.

Assim, todos os dias, a Lua e o Miguel abraçavam-se e despediam-se. O Miguel ia para a escola e a Lua ia brincar com os meninos que moravam sozinhos. Até se reencontrarem no fim do dia e, juntos, olharem as estrelas no céu.

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The dog who lived on the moon

Once upon a time there was a female dog that lived on the moon. She was a very curious and playful dog, who liked to explore the lunar surface. She played with everything she found, although there was not much to play with on the moon. She picked up the rocks, threw them in the air, ran to catch them, but little else she could do.

The dog that lived on the moon looked at the stars in the sky and imagined they were the friends she didn't have on the moon. She dreamed that one day she would go with them and if she thought so, better she did. She built a spaceship and headed towards the blue ball she saw in the sky.

When she arrived, she opened the door of the ship and saw a boy running towards her, smiling. Surprised, she ran to him and barked.

– Hello, little friend, I'm Miguel! Who are you, what's your name? – asked the boy.

– I come from the moon – answered the dog, wagging her tail.

– Wow, that's amazing! Then I'll call you Lua, because that means moon in my language! – decided Miguel.

– Okay, I like it, it's a beautiful name! And what place is this? – asked Lua, always curious.

– This is Earth and if you want to come with me, I'll show you what's here – said Miguel.

– Oh, yes! Let's go! – said Lua, jumping with joy.

Lua and Miguel liked each other right away. Miguel showed Lua the trees, flowers, animals, mountains, valleys, seas, and beaches of Earth. He introduced Lua to his friends, parents, and siblings, who were very happy to meet a visitor from the moon.

Lua and Miguel had a lot of fun and became best friends. They played ball, made constructions, told stories, and sang songs. They also learned from each other. Lua taught Miguel about life on the moon, Miguel taught Lua about life on Earth.

But when Miguel went to school, Lua went back to being alone, with no one to play with. So Miguel's mother took Lua to work to be with children who lived alone and didn't know how to play. And Lua, always playful, taught them how to play. And they were very happy.

From then on, every day, Lua and Miguel hugged and said goodbye. Miguel went to school and Lua went to play with the children who lived alone. Until they met again at the end of the day and, together, looked at the stars in the sky.

segunda-feira, 6 de março de 2023

A queda de um mito

 
Quando ouço falar de reestruturações de empresas, lembro-me logo de uma empresa e de uma marca: Philips. E adianto já que não é pelas melhores razões.

É que sou de uma geração que cresceu rodeado de equipamentos que ostentavam um destes logotipos, em especial os dois primeiros, que a gigante holandesa Philips colocava nos seus produtos. Uma geração que se habituou a associar a marca Philips a inovação tecnológica e empreendedorismo, fosse na iluminação, na radiofonia, no áudio, na televisão, na electrónica de consumo, nas tecnologias de informação, nas comunicações, nos semicondutores, etc. Arrisco-me a dizer que em determinada altura não havia uma divisão das casas, um espaço dos locais de trabalho onde não fosse possível encontrar um dos logos da Philips.

Até mesmo quando na Marinha, na segunda metade da década de 1980, dei os primeiros passos no programa de aquisição das fragatas da classe Vasco da gama, lá apareceu a Philips como proprietária da solução de comando e controlo dos sistemas de combate dos navios. A Philips era omnipresente e simbolizava o sucesso empresarial nos mais variados sectores da economia mundial.

A partir da década de 1990, restruturação após restruturação, todas ela justificadas por presidentes executivos brilhantes e qualificados com os melhores MBA, a Philips foi-se desfazendo das áreas de negócio que tinham feito dela um dos mais conglomerados mundiais. A razão das reestruturações, quase sempre com o despedimento de trabalhadores, era sempre a mesma: livrar-se do que dava prejuízo para se concentrar no que, na opinião dos responsáveis, seria rentável. E assim a Philips acabou reduzida ao negócio original criado pelos seus fundadores, a iluminação, e ao dos equipamentos médicos, para tirar partido da crescente procura induzida por uma população cada vez mais envelhecida e doente.

A realidade, contudo, mostrou-se bem diferente do que os “reestruturadores” anunciaram. Várias das unidades descartadas, entres elas, por exemplo, a TSMC de Taiwan que é apenas o segundo maior produtor mundial de semicondutores, acabaram por se valorizar e obter lucros muito superiores aos da empresa mãe. E a fazer fé do relatório de resultados de 2022 (https://www.results.philips.com/), tudo leva a crer que até o negócio da saúde da Philips não tem a rentabilidade que foi anunciada em 2016.

Sem querer ser faccioso, mas não posso deixar de citar o comentário que li algures: “A Philips é um exemplo do que acontece quando se substitui engenheiros por MBA's e contadores de feijões.”