quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Memória de uma casa


Vista da casa em 1955 (foto colorida)

Uma casa não é apenas pedra, tijolo e argamassa. Cada tábua do soalho, cada parede interior, cada telha do telhado guarda em si os ecos dos risos e dos prantos da família que ali viu nascer e desaparecer várias vidas. Por isso, estou certo de que a casa que os meus avós madeirenses — Maria Isabel Jardim Bettencourt, da freguesia de São Jorge, concelho de Santana, e António Jorge Bettencourt, da freguesia de Gaula, concelho de Santa Cruz — construíram em Moçambique, na Avenida Pinheiro Chagas, em Lourenço Marques, também guarda os ecos da minha família paterna.

Três gerações da família na casa (1955)

Nela vivi o meu primeiro ano de vida. Contava a minha mãe que só chorava ao fim do dia, quando o meu avô se atrasava a pegar-me ao colo para me mostrar todos os relógios da casa. Nela brinquei com os meus primos nas breves passagens por Lourenço Marques, determinadas pela atividade profissional do meu pai. Era o porto de abrigo na capital quando o meu pai foi colocado, primeiro, em Inhambane e, depois, em Quelimane. Nela fiz os trabalhos de casa durante o curto período em que frequentei a escola primária Rebelo da Silva, mesmo em frente, do outro lado da avenida. Dela me despedi há sessenta e seis anos, quando a grave doença do meu pai nos trouxe definitivamente para Portugal.

Mas a casa continuou a ser o lar da avó Isabel e do avô Bettencourt até à sua morte e, depois, do tio Toni e da tia Carlota. Só deixou de ser habitada pela minha família paterna quando os ventos da História permitiram que a terra onde nasci se tornasse um país independente. Depois disso, nada sei sobre quem ali viveu. Mas para mim, será sempre a casa dos avós.

Vista da casa no Google Maps (2025)

Hoje, a casa está diferente: mudou de cor, tem uma cobertura estranha, uma antena de satélite e aparelhos de ar condicionado. A avenida é agora Eduardo Mondlane, a escola primária chama-se 3 de Fevereiro e a cidade é Maputo. Nela está instalada a Direção Operacional da Lin Ambulâncias, uma das empresas do Grupo Lin, do empresário moçambicano Lineu Candieiro.

Mas não duvido que, de vez em quando, ao fim do dia, quem estiver mais atento naquela casa ouve o choro de uma criança à espera do colo do avô.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O Miguel e o Avô Aníbal




− Mamã, eu conheci o Avô Aníbal[1]?

− Não sei, meu Amor... o que tu achas?

− Eu acho que sim!

A paixão pela terra, pela natureza, o fascínio por transformar e construir coisas a partir de tudo e mais alguma coisa, o interesse no outro e a vontade de cumprimentar estranhos na rua ou no trânsito parado, herdaste do teu Bisavô.

Sim, Miguel, conheceste o teu Bisavô Aníbal! Tenho a certeza!



[1] Aníbal Jardim Bettencourt, nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique, em 6 de Junho de 1924. Casado com Maria da Conceição Martins Bettencourt, tiveram dois filhos, seis netos e doze bisnetos. Faleceu em 16 de Setembro de 2015, em Cascais, dois dias depois do Miguel nascer.


Saudade

 


Faz hoje dez anos que o meu Pai partiu, tinha cumprido o seu último objectivo.

Os últimos anos da vida do meu Pai foram difíceis. A saúde, bastante frágil, obrigou-o a sucessivos internamentos hospitalares. Mas, por mais grave que fosse a crise, dizia sempre que só iria para o forno crematório quando nascesse o décimo segundo bisneto. Como nem sequer havia projeto para esse bisneto, brincávamos com ele.

Mas inesperadamente, a neta Joana engravidou do Miguel. E durante toda a gravidez, sempre que estava com a Joana, o meu Pai perguntava quanto tempo faltava para o Miguel nascer. A resposta, mesmo que o tempo fosse cada vez menor, suscitava sempre a mesma reacção do meu Pai: "Eh pá, tanto tempo!"

Na semana que antecedeu o nascimento do Miguel, o meu Pai estava de novo internado, em estado muito crítico. Durante toda a semana, a Joana foi ao hospital à hora do almoço. No início da tarde, eu levava a minha Mãe, que tinha autorização para estar ao lado do meu Pai até eu voltar ao fim do dia, para o ver e trazê-la de volta a casa.

No dia 12, sábado, a Joana viu o Avô pela última vez. Aproximou-se, disse-lhe ao ouvido que gostava muito dele e que podia descansar, faltavam apenas dois dias, e tudo correria bem. O Avô respondeu com o seu habitual "Eh pá!!! Dois dias!". No domingo, a Joana já não foi ao hospital. Na segunda-feira, dia 14, nasceu o Miguel, em Lisboa — o tão desejado décimo segundo bisneto!

Os primeiros dias do Miguel não foram fáceis, devido a problemas respiratórios. Quando fui visitar a Joana na maternidade e conhecer o Miguel, não pude deixar de reparar na coincidência: o número do quarto era o mesmo daquele onde o meu Pai estava internado. E, ao olhar para o Miguel, impressionou-me a semelhança entre os equipamentos de suporte de vida de que ambos necessitavam.

Na terça-feira, dia 15, alterei a rotina: deixei a minha Mãe em Cascais e fui para Lisboa, para estar com a Joana e o Miguel. Depois, regressei a Cascais para ver o meu Pai e trazer a minha Mãe para casa. Pensava que aquela rotina se manteria por mais alguns dias, mas no dia seguinte, quarta-feira, 16, tudo mudou.

Estava com a João no quarto da maternidade em Lisboa, depois de deixar a minha Mãe em Cascais, quando recebi a má notícia. E recorro ao testemunho da Joana: “Recordo vivamente o que aconteceu no dia 16, na neonatologia, quando o Miguel começou a chorar desalmadamente do nada... quando cheguei ao quarto e vos contei, recebeste o telefonema da Avó. Há coisas que não se explicam, sentem-se. E é esse sentir que me conforta o coração. O Avô conseguiu alcançar o seu último objectivo. Tenho a certeza.”

Regressei imediatamente a Cascais para dar o último beijo ao meu Pai.

________________

“Perguntava muitas vezes se eramos felizes.
Preocupava-o não o sermos.
Para ele a felicidade nada tinha de supérfluo.
Fazer os outros felizes, respeitá-los e ser fiel eram a sua forma de ser e estar na vida, a fórmula correcta para descobrir a felicidade.
O outro era o lado maravilhoso da vida, da sua vida.
O privilégio foi nosso.
O lado maravilhoso da sua vida fomos nós.
Foi assim que nos fez sentir desde sempre e até ao fim.
E é assim que nos sentimos hoje.
Vivemos com saudade.
Mas celebraremos a vida e a felicidade.
Por ele e por causa dele.”

As palavras são da neta Catarina.
A saudade, essa, é de todos nós.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Pesar o Sol

 


Em 2019, para assinalar o Dia dos Oceanos, com o meu amigo professor Carlos Saraiva da Costa, falámos aos jovens do uso do astrolábio náutico na expansão marítima portuguesa e ensinámos a "Pesar o Sol", no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, junto à praia de Santo Amaro de Oeiras (hoje abandonado e degradado).

O Carlos usou o seu saber e experiência náutica, e um PowerPoint do projeto educativo "Este Mar" da Escola Secundária de Carcavelos, para enquadrar historicamente o uso do astrolábio. Eu procurei explicar o mecanismo de funcionamento daquele instrumento.
 
Preparei para isso um texto em que, para além dos componentes do astrolábio, citava a descrição de João de Barros e de Camões, no Canto V dos Lusíadas, da chegada da esquadra de Vasco da Gama à Angra de Santa Helena, onde desembarcaram para aguada e "tomar do Sol a altura". E na introdução, deixei esta brincadeira poética que intitulei "Pesar o Sol":

Suspende o piloto a roda, em metal forjada,
Com medeclina e pínulas, a luz a mirar.
No convés, um círculo solar vai projetar,
No limbo inverso, a distância é contada.

"Pesar o Sol", buscar seu ponto zenital,
Quando a alidade pára, em meio-dia exato.
Lê-se o grau preciso, em registo ou em trato,
Para a latitude certa, avanço capital.

Instrumento simplificado, de invenção lusa,
Do astrolábio planar, ao mar adaptado.
Superando o balanço, com engenho provado.

Foi farol na incerteza, rota que se recusa,
A navegar por estima, método limitado,
Traçando o Império, em caminho desvendado.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Do grito ao sonho

 


No palco de um país que um dia se sonhou,
Chegam vozes de longe, um grito ecoou.
Promessas de pão, de um futuro largo,
Mas o drama se revela, cruel e amargo.

No sítio que labuta, sob o sol a queimar,
Mão-de-obra que a terra insiste em chamar.
Qualificados na alma, com saber e pensar,
Em trabalhos sem rumo, a vida a definhar.

Nos contentores que abrigam, sem lei, sem pudor,
Muitas almas num espaço, de humilhação e dor.
Rendas que disparam, serviços a escassear,
Terra sonhada, a dignidade a roubar.

Redes de engano, com sorrisos de luz,
Retêm passaportes, amarrando à cruz.
Dívidas que sufocam, sem fim à vista,
Ameaças de denúncia, na sombra que insiste.

O medo das autoridades, uma prisão sem grade,
Onde a precariedade é mestre, e a liberdade se evade.
Exploração velada, em cada canto a espreitar,
Um trabalho sem contrato, que pode matar.

Discriminação, um olhar que fere e exclui,
Sobrecarga de horas, a saúde se esvai.
Frustrações e desânimo, no rosto se vê,
Um sonho que se perdeu, sem saber porquê.

Mas a solução não está no que já foi,
Nem no lamento, do que o tempo levou.
É erguer novas estruturas, num futuro a criar,
Onde terra, teto e trabalho sejam para se dar.

Que a economia não mate, mas sim faça viver,
E que a dignidade humana possa florescer.
Dar poder os oprimidos, para ouvir a sua voz,
Porque o sonho comanda a vida, e nos faz caminhar.


(Inspirado pelos artigos do jornal Público "Trabalho: estrangeiros sobrequalificados são quase o triplo dos nacionais" e "Mais de 2200 presumíveis vítimas de tráfico de seres humanos em seis anos. Apenas 11 tiveram direito a indemnização". E também pelo Papa Francisco e António Gedeão.)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Educação, Democracia e Cidadania em Portugal - Uma Análise Crítica




A comparação dos documentos da Direção-Geral da Educação (DGE) sobre a educação para a cidadania em consulta pública – "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" (ENEC) 2025 - consulta pública e "Cidadania e Desenvolvimento - Aprendizagens Essenciais" (AE) - consulta pública) – com os documentos antigos – "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" (ENEC) de setembro de 2017 e "Educação para a Cidadania – linhas orientadoras" de novembro de 2013 – revela uma evolução significativa na estrutura, obrigatoriedade e no aprofundamento de conteúdos, reflectindo o que a DGE entende serem novos desafios da sociedade contemporânea.


Comparação dos Documentos

1. Reorganização das Dimensões de Cidadania

  • Antigo Modelo (ENEC 2017): A estratégia antiga organizava os domínios em três grupos com diferentes níveis de obrigatoriedade.
    • 1º Grupo (Obrigatório em todos os níveis e ciclos): Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa), Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).
    • 2º Grupo (Obrigatório em pelo menos dois ciclos do ensino básico): Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva), Media, Instituições e participação democrática, Literacia financeira e educação para o consumo, Segurança rodoviária.
    • 3º Grupo (Opcional em qualquer ano de escolaridade): Empreendedorismo (nas suas vertentes económica e social), Mundo do Trabalho, Risco, Segurança, Defesa e Paz, Bem-estar animal, Voluntariado.
  • Novo Modelo (ENEC 2025): A nova estratégia congrega oito Dimensões, organizadas em dois grupos.
    • Grupo 1 (Obrigatório em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico e do Ensino Secundário): Direitos Humanos, Democracia e Instituições Políticas, Desenvolvimento Sustentável, Literacia Financeira e Empreendedorismo.
    • Grupo 2 (Obrigatório no 1.º ciclo do Ensino Básico, no conjunto dos 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico, e no Ensino Secundário, cabendo à escola escolher o(s) ano(s) de escolaridade em que cada uma será desenvolvida): Saúde, Risco e Segurança Rodoviária, Pluralismo e Diversidade Cultural, Media.

Esta reorganização significa uma clarificação e um reforço da obrigatoriedade de certas dimensões, que passam a ser abordadas de forma contínua ao longo de todo o percurso escolar.

2. Alterações e Redefinições de Dimensões Específicas

2.1. Retirado como Dimensão Autónoma

  • Sexualidade: Esta dimensão, que era explicitamente listada no 2º Grupo da estratégia antiga, foi retirada como dimensão autónoma na nova ENEC. A "Educação para a Saúde e a Sexualidade" na antiga estratégia visava dotar os alunos de conhecimentos, atitudes e valores para decisões adequadas à sua saúde e bem-estar, com foco na proteção da saúde e prevenção de risco, nomeadamente na área da sexualidade.
  • Igualdade de Género: Era um domínio explícito no 1º Grupo da estratégia antiga. Deixou de ser uma dimensão autónoma na nova ENEC.
  • Educação do Consumidor: Presente no 2º Grupo da estratégia antiga, não aparece como dimensão separada na nova ENEC.
  • Outros Domínios: Domínios do 3º Grupo da estratégia antiga como "Mundo do Trabalho", "Bem-estar animal", e "Voluntariado" não são dimensões autónomas na nova estrutura.

2.2. Conteúdos Integrados e Aprofundados (mesmo que a dimensão autónoma tenha sido retirada)

  • Sexualidade e Educação Sexual (Integração): Embora não seja uma dimensão autónoma, as Aprendizagens Essenciais (AE) da nova ENEC integram aspetos relacionados em outras dimensões:
    • A dimensão Saúde foca-se na promoção do "bem-estar físico e mental" e na "proteção contra todas as formas de violência (incluindo a exploração, o abuso e a ciberviolência)". No 2.º e 3.º ciclos, é explicitamente mencionada a necessidade de "Respeitar questões relacionadas com a intimidade e a privacidade de cada pessoa" e "Estabelecer relações interpessoais saudáveis, baseadas no respeito, na comunicação, na confiança e no consentimento".
    • A dimensão Direitos Humanos no 3.º ciclo inclui a análise de casos de "abusos sexuais" e "violência de género", bem como "violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas".
  • Igualdade de Género (Integração): Os conteúdos são integrados principalmente na dimensão Direitos Humanos, com aprendizagens como "Reconhecer que meninos e meninas podem realizar as mesmas atividades e ter as mesmas oportunidades" no 1.º ciclo, e "Debater a (des)igualdade de género em contextos como a educação, o trabalho e o exercício de cargos políticos" no 3.º ciclo. Na dimensão Democracia e Instituições Políticas do Ensino Secundário, a "desigualdade de género" é abordada como um desafio atual da democracia.
  • Educação Ambiental (Integração): Parece ser totalmente absorvida pela dimensão Desenvolvimento Sustentável na nova ENEC, que aborda explicitamente tópicos como a conservação da biodiversidade e práticas de produção e consumo sustentável.
  • Segurança, Defesa e Paz (Integração): Aspetos da segurança, defesa e paz, que eram um domínio opcional na antiga estratégia, são agora integrados na dimensão Democracia e Instituições Políticas da nova ENEC, que prevê o debate sobre o papel internacional de Portugal, nomeadamente na União Europeia, na co-construção de um mundo pacífico e livre, e a análise da importância da União Europeia na defesa da democracia e da paz.

2.3. Destaques e Novas Abordagens em Dimensões Atuais

  • Democracia e Instituições Políticas:
    • Maior Obrigatoriedade: Elevada para o Grupo 1, tornando-se obrigatória em todos os anos de escolaridade, o que representa um aumento significativo face ao modelo anterior onde estava no 2º Grupo.
    • Foco na Ética e Combate à Corrupção: A nova ENEC introduz explicitamente a temática da ética e integridade na governança democrática, detalhando a aprendizagem para "identificar comportamentos de integridade e de corrupção" (1.º ciclo), "compreender a natureza, incidência e extensão do fenómeno da corrupção" (2.º ciclo), "compreender as causas e os múltiplos efeitos da corrupção" (3.º ciclo) e "refletir, criticamente, sobre o papel dos cidadãos, do Estado e das organizações da sociedade civil na prevenção e combate à corrupção" (Ensino Secundário).
    • Papel Internacional de Portugal e União Europeia: Maior ênfase no debate sobre o papel internacional de Portugal e da UE.
  • Literacia Financeira e Empreendedorismo:
    • Combinação e Maior Obrigatoriedade: Na nova ENEC, estas duas áreas são combinadas e elevadas para o Grupo 1 (obrigatório em todos os anos). Na anterior, "Literacia financeira e educação para o consumo" estava no Grupo 2 e "Empreendedorismo" no Grupo 3.
    • Aprofundamento: Foco na tomada de decisões informadas sobre orçamento, poupança e investimento, e na ética e responsabilidade social no empreendedorismo.
  • Saúde:
    • Foco Ampliado: Além da alimentação e atividade física, a nova dimensão "Saúde" destaca a promoção da saúde mental e do bem-estar dos jovens, a "proteção contra todas as formas de violência (incluindo a exploração, o abuso e a ciberviolência)" e a "prevenção de consumos, comportamentos aditivos e dependências", bem como os "malefícios do uso excessivo de ecrãs".

·         Risco e Segurança Rodoviária:

    • Combinação: Combina o "Risco" e a "Segurança Rodoviária" da antiga estratégia (que estavam em grupos diferentes) numa só dimensão do Grupo 2.
    • Abordagem Integrada: Foco na identificação de perigos, minimização de vulnerabilidades e ações conscientes face a riscos naturais, tecnológicos e mistos, além da mobilidade segura e sustentável.
  • Media:
    • Novos Desafios: A nova ENEC aborda explicitamente o impacto da Inteligência Artificial na edição e publicação de conteúdos nas redes sociais, e foca-se na prevenção dos riscos online como "dependência, cyberbullying, discurso de ódio, polarização, trolling, sexting, sextorsão". Há um reforço da ênfase na "utilização crítica e segura das tecnologias digitais, da informação e dos conteúdos gerados por inteligência artificial".
  • Pluralismo e Diversidade Cultural:
    • Nova Designação e Abordagem Detalhada: Substitui a "Interculturalidade" da antiga estratégia por uma dimensão mais abrangente no Grupo 2.
    • Foco na Discriminação: Inclui a análise de "diferentes formas de discriminação, como racismo, xenofobia, anticiganismo, islamofobia, antissemitismo, misoginia, entre outras". Aborda também os desafios vivenciados por pessoas migrantes e a proteção dos direitos das minorias.

3. Aprendizagens Essenciais (AE) e Abordagem Pedagógica

  • Acréscimo de Detalhe nas AE: Os novos documentos, especialmente o "Cidadania e Desenvolvimento - Aprendizagens Essenciais ", fornecem uma descrição muito mais detalhada das Aprendizagens Essenciais por ciclo de ensino para cada dimensão. Isto inclui conhecimentos, capacidades, atitudes e valores, bem como ações estratégicas de ensino. A estratégia antiga de 2017 listava apenas os domínios sem o mesmo nível de detalhe nas AE por ciclo.
  • Ênfase na Experiência e Atitude Cívica: Ambas as estratégias enfatizam que a cidadania se aprende através de processos vivenciais e da participação ativa. A nova ENEC reforça a importância de os alunos serem autores e terem situações de aprendizagens significativas.

4. Operacionalização e Governança da Estratégia

  • Estrutura Mantida: A operacionalização mantém a abordagem transdisciplinar no 1.º ciclo do ensino básico, a disciplina autónoma nos 2.º e 3.º ciclos, e a componente transversal no ensino secundário.

·         Maior Detalhe e Clarificação de Papéis (Novo):

    • A nova ENEC especifica que o agrupamento de escolas/escola não agrupada deve elaborar e aprovar a sua própria "Estratégia de Educação para a Cidadania da Escola", definindo os anos para as dimensões do Grupo 2, o modo de trabalho, os projetos com a comunidade, as parcerias e os critérios de avaliação.
    • São claramente definidas as competências do Conselho Geral (aprovação da estratégia da escola) e do Conselho Pedagógico (aprovação dos critérios de avaliação).
    • O papel e as responsabilidades do Coordenador da Estratégia de Educação para a Cidadania da Escola são detalhados.
    • A avaliação interna das aprendizagens deve ser contínua, sistemática e com formas de recolha diversificadas.

5. Contexto e Desafios

  • Atualização dos Desafios (Novo): A nova ENEC atualiza a lista de desafios contemporâneos, adicionando explicitamente "a emergência da inteligência artificial, a saúde mental e o bem-estar dos jovens, as desigualdades socioeconómicas, a sustentabilidade, as migrações e a mobilidade internacional". A estratégia anterior mencionava desafios como sustentabilidade, interculturalidade, igualdade, e os riscos de fragmentação social, desinformação e polarização.


Fragilidades Estruturais da Educação para a Cidadania

Antes de prosseguir, quero expressar a minha opinião de que, enquanto a Educação para a Cidadania for um edifício com fundações muito frágeis, construído de cima para baixo com textos oriundos do Ministério da Educação, e a responsabilidade pela Educação para a Cidadania nas escolas for quase exclusivamente atribuída aos Diretores de Turma (DT), pouco do que se propõe terá real impacto.

Para que as estratégias sejam bem-sucedidas, mesmo as bem pensadas com boas intenções, é necessário que a maioria das escolas tenha vontade ou condições para fazer da Educação para a Cidadania um projeto multidisciplinar que envolva a direção, professores de diferentes áreas, assim como especialistas e entidades externas.

No entanto, há escolas que apesar de tudo continuam a realizar "milagres" na área da Cidadania. A título de exemplo, refiro os projetos "Semear Abril" e "Abril Hoje", nos quais participei nos últimos anos, considerando-os muito gratificantes para mim e, a julgar pelas avaliações, para os alunos.

Análise da Nova Dimensão Democracia e Instituições Políticas

Revistas as alterações globais que os documentos em consulta pública introduzem na Educação para a Cidadania, concentrar-me-ei agora na análise crítica do que é estabelecido, em particular, para a dimensão Democracia e Instituições Políticas, anteriormente designada Instituições e Participação Democrática.

Em 2018, participei na elaboração de uma proposta da Associação 25 de Abril à DGE para um referencial do domínio Instituições e Participação Democrática. Com base nas recomendações do Conselho da Europa, definimos objetivos para os diferentes níveis de escolaridade. O nosso propósito era preparar os futuros cidadãos para viver em sociedade, resolver conflitos, assumir responsabilidades, compreender e aceitar as regras do Estado de Direito e os mecanismos de representação democrática, e participar na governação do país.

O referido referencial, que contou com contributos de outras instituições, só foi divulgado em 2024, após uma muito longa gestação para uma muito curta vida (um ano). Embora não tenha cumprido os objetivos nele estabelecidos, irei usá-lo como referência para a avaliação das Aprendizagens Essenciais (AE) definidas nos novos documentos para a dimensão Democracia e Instituições Políticas.


Omissões e Modificações Relevantes nos Novos Documentos

Abaixo, apresento um levantamento do que é retirado ou modificado nos novos documentos da DGE, em comparação com o referencial de 2024:

  • História da Democracia Portuguesa: É retirada qualquer alusão a factos relevantes da História da democracia e das instituições democráticas em Portugal. Não é referida nem reconhecida a importância do 25 de Abril de 1974 na construção da democracia política em Portugal.
  • Conceitos Fundamentais da Democracia: São omitidos os critérios que permitem identificar as características de uma democracia, os princípios e os valores em que assenta, assim como a distinção entre os tipos de democracia (directa, semidirecta, representativa) e a sua aplicação ao sistema português.
  • Poderes do Estado e Órgãos de Soberania: Não há qualquer referência à importância da separação e interdependência dos três poderes do Estado – legislativo, executivo e judicial – nem aos órgãos de soberania que os exercem.
  • Sistemas de Governo e Actores Políticos: Não são identificados e comparados os diferentes tipos de sistemas de governo: parlamentarismo, presidencialismo, semipresidencialismo. Não é abordado o papel dos partidos políticos e dos movimentos de cidadãos no exercício do poder político.
  • Funcionamento do Estado Português: Não é dado a conhecer como funciona o Estado Português, incluindo os princípios fundamentais da organização do Estado português, o Orçamento do Estado como instrumento de coesão política e social, e a importância do Orçamento do Estado na vida dos cidadãos.
  • Regiões Autónomas e Comunidades Portuguesas: Não são referidas as Regiões Autónomas (importância da existência de órgãos de governo próprio nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira). Não são referidas a diversidade das comunidades portuguesas fora do território de Portugal e as suas preocupações.
  • Mecanismos de Participação Cívica: Não são especificadas as formas de participação no processo legislativo (petição, referendo, iniciativa legislativa de cidadãos), nem outros mecanismos de participação para além do voto.
  • Sistema Eleitoral e Responsabilidade dos Eleitos: Não é explicado o sistema eleitoral português, a responsabilidade dos eleitos e os diferentes tipos de eleições.
  • Instituições de Defesa de Direitos: Não é explicitado o papel de instituições como o Provedor de Justiça, Ministério Público e Tribunais na defesa de direitos, nem a forma de recorrer ou reclamar junto das instituições públicas.


Novos Focos Introduzidos pelos Documentos

Por outro lado, os documentos em consulta pública introduzem novos focos, com especial ênfase em:

  • Combate à Corrupção: Abordado em todos os ciclos de ensino, desde a identificação de comportamentos de integridade (1.º Ciclo) até à reflexão crítica sobre o papel dos cidadãos, do Estado e da sociedade civil na prevenção e combate (Ensino Secundário).
  • Desenvolvimento de Competências de Diálogo: Valoriza a importância da paz e da não-violência no convívio diário.
  • Boa Governança: Salienta a importância dos valores constitucionais e dos princípios éticos e de integridade para uma governança democrática.
  • Reflexão Crítica sobre Desafios Contemporâneos da Democracia: Incentiva os alunos a refletir sobre desafios atuais como o discurso de ódio e a desigualdade de género.


Conclusão Crítica

Em suma, a nova "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" e as "Aprendizagens Essenciais" para a componente curricular de Cidadania e Desenvolvimento representa uma reestruturação mais coesa e focada, elevando a obrigatoriedade de dimensões consideradas fulcrais para a cidadania ativa (como a Democracia e Instituições Políticas), e integrando explicitamente novos desafios sociais (como a ética e combate à corrupção, a saúde mental e os riscos da inteligência artificial e online). Paralelamente, os conteúdos de dimensões como a sexualidade e a igualdade de género são integrados transversalmente em outras áreas, em vez de terem um estatuto autónomo. A operacionalização é mais detalhada, com uma clarificação de responsabilidades e uma forte ênfase na implementação de Aprendizagens Essenciais concretas.

No que concerne às Aprendizagens Essenciais da dimensão Democracia e Instituições Políticas, omitem os conceitos históricos da construção da democraticidade de Portugal e a sua contribuição para o exercício da cidadania na democracia representativa e participativa consagrada na Constituição da República Portuguesa.

Embora a nova dimensão Democracia e Instituições Políticas seja elevada para o Grupo 1, tornando-se obrigatória em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico e Secundário, ela tende a focar-se exclusivamente no atual sistema político, em detrimento do estudo de outras soluções ou do aprofundamento dos mecanismos de participação dos cidadãos no governo do país.

Parece-me também haver uma clara influência dos "novos ventos políticos", em particular do discurso populista da corrupção. No entanto, estou convencido de que a corrupção não é a causa principal da fragilidade da Democracia portuguesa e do afastamento dos portugueses do regime democrático. Outros factores relevantes para o mau funcionamento do regime democrático como, por exemplo, o processo eleitoral de escolha dos representantes dos cidadãos, não são sequer abordados

Podemos encarar a Educação para a Cidadania como a construção de uma casa. Os novos documentos da DGE são como as "plantas" mais recentes para esta casa. Apesar de algumas novidades e reforços (como o combate à corrupção em todos os andares), estas novas plantas removeram importantes pilares históricos do alicerce da casa (como o 25 de Abril e os princípios fundamentais do nosso regime democrático). Além disso, a casa continua a ter "fundações muito frágeis", pois a sua construção depende demasiado de um pequeno grupo de "empreiteiros" (os Diretores de Turma) e de ordens "de cima para baixo". É como tentar modernizar uma casa adicionando novas comodidades, mas, ao mesmo tempo, ignorando ou removendo elementos cruciais da sua estrutura e da sua história, o que pode comprometer a sua solidez a longo prazo.


terça-feira, 22 de julho de 2025

PBS NewsHour



Foi com preocupação que assisti a esta declaração dos apresentadores do PBS NewsHour sobre o corte do financiamento federal da PBS (Public Broadcasting Service), uma medida que atinge cerca de 15% a 16% do seu orçamento total. Como espectador quase diário do PBS NewsHour, não posso deixar de me sentir solidário com os jornalistas da PBS.

A PBS, oficialmente lançada nos EUA em outubro de 1970 como sucessora da National Educational Television, emergiu da visão de que a televisão pública deveria oferecer um serviço de qualidade, focado na educação e informação, livre das pressões comerciais. A sua importância para os EUA, e para o mundo, é inegável. Lembro-me bem de como foi importante para a minha família quando vivi na Califórnia. Programas como o icónico "Sesame Street" foram cruciais para a minha filha Joana, ajudando-a a aprender inglês de uma forma divertida e envolvente. 


Este programa infantil, é reconhecido por ensinar empatia, curiosidade e inclusão, moldando gerações em todo o mundo. Em Portugal, a versão portuguesa do programa, intitulada "Rua Sésamo", estreou-se na RTP1 em novembro de 1989 e foi transmitida pela RTP até maio de 1996. Marcou a infância de muitos trintões e quarentões portugueses.

Além da educação, a PBS tem sido consistentemente reconhecida pela confiabilidade e objetividade do seu jornalismo. O PBS NewsHour, em particular, é aclamado pela sua reportagem sólida, fiável e credível, sendo classificado como a instituição mais confiável nos EUA há 13 anos consecutivos. Esta reputação deve-se, em parte, à sua política de independência editorial, que estabelece uma "barreira de proteção" entre as decisões de cobertura noticiosa e as suas fontes de receita.

Foi a essência deste serviço público que Trump atacou com o decreto executivo intitulado "Ending Taxpayer Subsidization of Biased Media". Trump justificou a medida alegando que a PBS e a NPR (National Public Radio) forneciam "cobertura noticiosa tendenciosa", classificando-as como "máquinas de propaganda de esquerda radical". Apesar de tentativas anteriores de republicanos para cortar este financiamento desde a era de Richard Nixon, esta acção de Trump constituiu um sucesso sem precedentes, depois da aprovação final pela Câmara dos Representantes.

Este ataque à PBS alinha-se com o que é detalhado no "Project 2025", um plano abrangente da direita americana para o governo de Trump. Este projeto defendia o fim do financiamento federal para a radiodifusão pública, alegando que é "ultrapassado e desnecessário" e que os organismos como a NPR e a PBS são "emissoras esquerdistas". A execução rigorosa deste roteiro por parte de Trump, neste como em muitos outros sectores, acaba por ser um "manual" para a extrema-direita global, reverberando em movimentos políticos por todo o mundo, incluindo na direita radical portuguesa.