domingo, 25 de fevereiro de 2018

O exosqueleto




Confesso que no liceu detestava Camões. Descontando o episódio da Ilha dos Amores, que o pensamento medíocre do Estado Novo mantinha afastado dos adolescentes para que não fossem contaminados pela moral pagã, a análise da poesia de Camões era uma tremenda seca. Todos os esquemas eram válidos para lutar contra a ditadura do programa de Português, personificada na pobre professora. A libertação veio com a opção de ciências e os caminhos das engenharias.

Alguns anos mais tarde aprendi a gostar da poesia de Camões. Primeiro timidamente com João Villaret e Amália, depois convictamente com José Mário Branco e, naturalmente, José Afonso. Até que há dias vi um teste de Português do meu neto. As perguntas sobre o soneto “Enquanto quis Fortuna que tivesse” trouxeram-me memórias com mais de cinquenta anos e voltei a sentir a mesma aversão.

Tal como eu, o meu neto tenta sobreviver à provação. Na luta contra as velhas e sempre iguais questões da professora, usa novas e mais sofisticadas artimanhas mas o objectivo é infelizmente o mesmo: libertar-se de Camões e da sua poesia!

Mudaram os tempos mas não mudaram as vontades. Apesar de todas as mudanças do Mundo, parece que o ensino nas nossas escolas tem um exosqueleto cultural que limita o crescimento. E ao contrário dos artrópodes, não tem a capacidade de o substituir, de mudar de forma e de se adaptar a novos ambientes e objectivos.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Memórias do Liceu de Camões

 

Ilustração de Susa Monteiro na crónica “O Pilinhas” de António Lobo Antunes na Visão


As memórias do Liceu de Camões são como as cerejas, vêm umas agarradas a outras. São memórias de um reitor que controlava todas as acções dos alunos, no interior e no exterior do Liceu; era proibido permanecer frente ao Liceu, era proibido comprar coisas ao vendedor ambulante, era proibido correr, era proibido jogar à bola, era proibido brincar ao eixo ou com pedras, era proibido entrar no Liceu sem gravata, era proibido permanecer no jardim, era proibido trazer para o Liceu livros e revistas que não fossem de estudo, era proibido…

Todos os procedimentos eram definidos pelo reitor: a forma como se apanhava o autocarro, como se entrava e saía das salas de aula, como se circulava nas galerias, o tipo de vestuário que devia ser usado, a postura a ter no exterior do Liceu. Os processos disciplinares, que terminavam com o castigo do aluno, resultavam em regra de violações das regras estabelecidas pelo reitor.

No Liceu de Camões, onde tudo era controlado e vigiado, havia um médico pedófilo que dava aulas de Moral e assediava o Antunes e os putos mais inocentes e impreparados. E o reitor Joaquim Sérvulo Correia ordenava a abertura de um processo disciplinar com o seguinte despacho de 9 de Maio de 1965:

«Professor Secretário do Liceu de Camões;
Pelo professor de História, Dr. Pereira Miguel, foi entregue na Reitoria um exemplar da revista americana, em língua espanhola, “Life” cuja capa é construída por uma gravura representando uma artista de cinema quase nua. A revista foi tirada ao aluno (…), que a lia durante o funcionamento da aula, e foi trazida para o Liceu talvez pelo nº38, (…). Os factos, moralmente graves, tornam-se mais graves ainda por se tratar de uma turma frequentada também por alunas. Digne-se V. Exa. proceder a inquérito e organizar o consequente processo disciplinar

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Não, não é Carnaval!



As notícias da passada terça-feira sobre buscas, constituição de arguidos, detenções, acusações, julgamentos, anteciparam duas semanas o Entrudo do meu descontentamento.

É certo que a gravidade dos pecados invocados deveria suscitar atitudes mais próprias da Quaresma, como o recolhimento, a meditação, a penitência, a conversão, que precedem a ressurreição e a vitória do bem e do injustiçado. Mas o circo mediático e das redes sociais, provavelmente inspirado pela fraca e ridícula América de Trump e das Fox e Breibart News, reduziu tudo a um patético cortejo carnavalesco de matrafonas, cabeçudos e zés-pereiras, onde as atitudes e as acções individuais ou colectivas, mais ou menos graves, são caricaturadas ao sabor das paixões, dos ódios e ressentimentos pessoais; e os populares, mascarados ou não, arremessaram uns aos outros toda a espécie de objectos repugnantes ou pestilentos, bem ao estilo de um Entrudo que tudo permite porque "É Carnaval, ninguém leva a mal!” e depois dele tudo é esquecido e volta à normalidade.

Não, não é Carnaval e a corrupção, o tráfico de influências, a fraude, o peculato, o recebimento indevido de vantagens, a ineficácia da justiça, a violência doméstica e nas escolas, as dependências dos jovens, a agressividade e a mortalidade nas estradas, o contágio perigoso de doentes nos hospitais, são realidades da nossa sociedade que devem ser levadas muito a sério. Devem ser investigadas e estudadas com o rigor e a clareza dos relatórios sobre o incêndio de Pedrógão e a violência doméstica, longe das paixões clubistas ou partidárias.

Tudo para que cada um de nós, cidadãos deste país, à sua maneira e na sua esfera de influência, deixe de ser um espectador inconsequente ou um lançador de atoardas e insultos e contribua para a melhoria da sociedade.