Há 60 anos, na noite de 21 para 22 de Janeiro de 1961, um grupo de activistas políticos constituído por 12 portugueses, 11 espanhóis e 1 venezuelano, comandados pelo ex-capitão do Exército português Henrique Galvão e pelo ex-suboficial da Marinha de Guerra espanhola republicana e combatente da Guerra Civil de Espanha José Fernandéz Vásquez, conhecido como Jorge de Sottomayor, sequestrou o navio de passageiros português “Santa Maria” no mar das Caraíbas, pouco depois de largar de Curaçau com destino a Miami.
Inspirado pela personagem feminina da obra de Cervantes,
Henrique Galvão escolheu o nome de código “Dulcineia” para a operação porque,
segundo ele, “também éramos românticos lutando por nossa dama – a Liberdade”.
O objectivo político da operação “Dulcineia” era atrair a
atenção da opinião pública internacional para a situação sociopolítica dos
povos sujeitos às ditaduras ibéricas. O objectivo operacional era um ataque de
surpresa à ilha de Fernando Pó e à Guiné Equatorial, para obtenção de munições
e de outro material de guerra, incluindo canhoneiras e aviões, e o posterior
desembarque em Angola, com o apoio de forças rebeldes locais (sobretudo em
Luanda, Benguela e no Lobito). Seguir-se-ia a constituição, em Luanda, de um
governo hostil ao regime de Salazar, pois Henrique Galvão estava convicto de
que poderia derrubar o regime a partir de África.
Quando no dia 24 a censura deixou que fossem divulgadas as
primeiras notícias sobre o assalto ao “Santa Maria”, o regime de Salazar
apresentou-o como um ignóbil acto de pirataria executado por um bando de
indivíduos de várias nacionalidades com derramamento de sangue e a morte do
piloto Nascimento Costa que não chegou a conhecer a filha recém-nascida. Foi
logo dito aos portugueses que o “Santa Maria” estaria a ser perseguido por
navios de guerra ingleses e americanos.
São bem conhecidos os detalhes do que se passou até ao dia
17 de Fevereiro, quando o “Santa Maria” atracou no cais da Rocha do Conde de
Óbidos, saudado por uma multidão e pelo próprio Salazar, que proferiu a célebre
frase: "Obrigado, portugueses. O Santa Maria está connosco."
O laconismo de Salazar não terá resultado apenas do facto de
o sequestro do “melhor navio português e um motivo de orgulho da navegação
comercial” ter sido realizado por quem foi um dos seus mais fiéis apoiantes
antes de se tornar o seu mais temível inimigo; nem do facto de os principais
aliados de Portugal não terem considerado o sequestro do navio como um acto de
pirataria e não terem actuado militarmente contra os sequestradores. Muito
provavelmente Salazar já tinha a percepção que a acção quixotesca de Henrique
Galvão poderia ser o primeiro de uma série de acontecimentos nefastos para o
seu regime.
De facto, 1961 foi o anno horribilis da ditadura
salazarista, com uma sucessão de acontecimentos de que nunca se recomporia: em
Janeiro, foi a revolta da Baixa do Cassange em Angola e o sequestro do
"Santa Maria"; em Fevereiro, foi o assalto às prisão e esquadra da
polícia em Luanda; em Março, foram os massacres no norte de Angola pelas forças
da UPA; em Abril, foi a tentativa de golpe de Estado perpetrada pelo então
ministro da Defesa, general Júlio Botelho Moniz; em Agosto, foi a expulsão da
Fortaleza de São João Baptista de Ajudá pelas tropas do Benim; em Novembro, foi
o desvio de uma aeronave da TAP em voo entre Casablanca e Lisboa que sobrevoou
Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, lançando milhares de panfletos contra o
regime salazarista, e retornando incólume a Casablanca; em Dezembro foi a
invasão militar pela União Indiana dos territórios que constituíam o designado
Estado Português da Índia; e, finalmente, na noite de passagem de ano, foi a
intentona militar fracassada de Beja.
É certo que para Henrique Galvão os resultados da operação
“Dulcineia”, mal planeada e pior executada, com os líderes e os participantes a
discutirem a forma de tomar a ponte do navio até poucos minutos antes do início
da acção, ficaram muito aquém do sonhado. Sem tropas, sem recursos financeiros
e sem o apoio que esperava dos EUA apenas porque o seu projecto político era
marcadamente anticomunista, teve de desembarcar no Recife e, com os
companheiros de aventura, pedir asilo político ao Brasil. Restou-lhe a
consolação de ter atraído a atenção da opinião pública internacional, ao ponto
do recém-empossado Kennedy se ter referido ao sequestro do “Santa Maria” nas
duas primeiras conferências de imprensa como presidente dos EUA.
Para mim, que só conhecia Henrique Galvão como autor do
primeiro romance de que me lembro de ler e gostar muito, tudo o que ouvia sobre
a operação “Dulcineia” e o seu mentor foi profundamente perturbador. Não
conseguia perceber como é que o escritor do romance “Kurika” podia ser um
bandido!
O Kurika de Henrique Galvão é um pequeno leão órfão
recolhido pelo negociante branco Conceição e criado no convívio com os homens,
juntamente com o cão Janota e a macaca Paulina que o adoptaram, ele como irmão
e ela como filho. Aos 21 meses, movido pelo desejo instintivo de liberdade e
ajudado pela Paulina, conseguiu libertar-se e fugiu para o mato, atravessando o
rio que separava a casa do Conceição da vida selvagem. No seu meio natural,
Kurika transformou-se num imponente leão, sem se esquecer do passado junto dos
que o criaram.
Consciente de quanto lhe custaria a liberdade, Kurika trocou
o conforto da casa e a comida abundante por uma vida incerta e uma subsistência
difícil. Preferiu passar fome e dificuldades a viver amarrado a uma coleira.
Esta ideia é repetida ao longo de toda a narrativa, não só através da descrição
das dificuldades vividas pelo leão e pela macaca nos primeiros tempos na savana
angolana, como também no final do romance, quando Kurika recusa voltar para
casa do Conceição por causa da coleira: “Se não fora a coleira e a corrente de
ferro – quem sabe! – talvez seguisse a tentação do Janota.”
Só bem mais tarde percebi a coerência do pensamento do autor
do romance “Kurika” e da operação “Dulcineia”. Percebi com Saramago que,
Dulcineia, "do sangue de Quixote te alimentas, da alma que nele morre é
que recebes a força de ser tudo."
Mas também aprendi o conselho de José Gomes Ferreira em “A
Morte de D. Quixote”: