domingo, 6 de março de 2022

Recordação

 

Em 1975 e 1976 estive embarcado na corveta “António Enes” sob o comando do Comandante Francisco Duarte Costa. Foi um período muito rico do ponto de vista profissional mas politicamente agitado, primeiro no Continente e depois nos Açores.

Chegámos a Ponta Delgada na véspera da manifestação de 17 de Novembro de 1975, em princípio uma reedição da manifestação de 6 de Junho. A informação que tínhamos era que a FLA tencionava declarar a independência hasteando a bandeira no palácio do governador. Depois de um Verão agitado no Continente, caímos no centro do movimento independentista que estava muito activo em São Miguel e, em especial, em Ponta Delgada.

Embora os activistas da FLA, ou do que resta dela, ainda hoje digam que saíram para a rua umas 15 mil pessoas (no 6 de Junho teriam participado 10 mil), os objectivos políticos não foram atingidos. A bordo da corveta estávamos preparados para usar as mangueiras de incêndio como dissuasor caso houvesse uma provocação, mas nada de extraordinário aconteceu para as bandas do porto de mar.

Depois desta estreia atribulada, a agitação política em Ponta Delgada foi acalmando e conseguíamos fazer uma vida quase normal sempre que por lá passávamos. A guarnição tinha instruções para evitar dois cafés frequentados por provocadores da FLA, o Lys e o Royal, para evitar confrontos, mas não me recordo de qualquer incidente grave.

Ultrapassados os poucos episódios desagradáveis em Ponta Delgada (era o tempo das pichagens “Fragatas fora dos Açores”), aproveitávamos todos os períodos em terra para conhecer as ilhas, as suas gentes e a sua cultura.

E hoje, quarenta e seis anos depois, o Comandante Duarte Costa decidiu enviar-me a cópia de uma página do seu arquivo pessoal onde aparece a foto de um passeio à Ribeira Grande, tirada pelo Ten. Ortigão Neves. Para além do Comandante Duarte Costa à direita da foto, lá está o Imediato Patrício Leitão a engraxar os sapatos e eu.

Magnífica recordação!


sábado, 5 de março de 2022

Compromisso

 

Embora os defensores da guerra falem cada vez mal alto e os apelos à negociação para obter a paz sejam cada vez mais considerados pelos milhares de especialistas formados em geopolítica nas redes sociais como apoios ao agressor, no caso o regime ditatorial de Putin, arrisco mais um texto para defender que é necessário e urgente um compromisso negociado entre os EUA e a Rússia.

Não sei como nem em que termos porque não tenho informação para isso mas sei que a História mostra que a alternativa à guerra total sempre foi a negociação e o compromisso entre os principais contendores. Como aconteceu, por exemplo, na crise dos mísseis de 1962.

Na época entendi a crise dos mísseis de Cuba como uma retumbante vitória da firmeza de Kennedy que impôs a retirada dos mísseis que Khrushchev e Castro tinham decidido instalar em Cuba, mesmo ao lado dos EUA, com a ameaça de desencadear uma guerra, eventualmente a 3ª guerra mundial, se tal fosse necessário.
Embora nessa altura Kennedy não fosse uma figura popular em Portugal por causa do apoio aos movimentos de libertação africanos, foi essa a percepção de um adolescente totalmente ignorante dos meandros da política internacional. E como eu, milhões de adolescentes do mundo ocidental e, em particular, dos EUA, tiveram a mesma percepção da crise dos mísseis em Cuba.

Só mais tarde, já na década de 1970, percebi que a vitória de Kennedy só foi possível porque houve uma negociação secreta e um compromisso entre os líderes dos EUA e da então União Soviética. Os detalhes são bem conhecidos e por isso não entro neles, mas o que interessa salientar é que a iniciativa de Khrushchev foi uma resposta à instalação dos mísseis Jupiter com capacidade nuclear na Europa, em especial na Itália e na Turquia.

A primeira reacção dos falcões norte-americanos foi responder com um ataque a Cuba, se necessário nuclear, mas a administração Kennedy, embora fazendo o ultimato e impondo o bloqueio a Cuba, decidiu explorar a via da negociação e do compromisso.

Kennedy encarregou o irmão Robert de levar ao embaixador soviético em Washington a proposta de remoção dos mísseis Jupiter da Turquia, sem sequer informar este país, em troca da retirada das armas soviéticas de Cuba. Após um processo negocial secreto, Khrushchev aceitou o compromisso e o mundo respirou de alívio. Nunca tinha estado tão perto de um conflito nuclear!

No conflito da Ucrânia não sei qual é o compromisso possível entre os EUA e a Rússia mas estou convencido que ele deve ser procurado por todos os meios e é o único caminho, mesmo que estreito, para a paz.

Que me desculpem os meus amigos belicistas, mas o facto de não saltar convosco não faz de mim um apoiante de Putin. A única conclusão que podem tirar é que, tal como o Papa Francisco, entendo que a guerra é uma loucura e tudo deve ser feito para a evitar, mesmo negociar com o diabo.

quarta-feira, 2 de março de 2022

O pecado original

Como aconteceu com muitos da minha geração, a fase final da minha adolescência decorreu num período de grande agitação social e política, em que tudo era posto em causa. Era o tempo da descoberta de novas visões do mundo e da sociedade, o tempo das certezas inabaláveis.

 Lembro-me que o meu avô materno, um homem sem grandes preocupações de natureza política mas com uma riquíssima experiência de vida, que tinha vivido a implantação da República, combatido na 1ª Grande Guerra, assistido à consolidação do Estado Novo, observado a tragédia da 2ª Guerra Mundial e que, acima de tudo, tinha um profundo sentido de justiça e de humanidade, deixava-me divagar, sorria e dizia-me que um dia perceberia que a sociedade humana, tal como a vida, era muito mais complexa e ampla do que os apertados compartimentos ideológicos onde os poderosos nos queriam arrumar.

Cinquenta anos depois, tendo eu também vivido momentos históricos marcantes, ao ler, ouvir e ver as certezas de tantos sobre o conflito na Ucrânia e sobre quem são os bons e os maus, sinto provavelmente o que o meu avô sentia naquele tempo. Não querendo naturalmente fazer a história de como o mundo chegou a tantas situações trágicas, julgo que será útil recordar o que talvez tenha sido o pecado original de um processo histórico que correu francamente mal.

Depois da dissolução da União Soviética por Gorbachev em Dezembro de 1991, na sequência da reunião entre os presidentes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia (interessante terem sido estas repúblicas…) e do pacto de Belaveja assinado entre eles que anunciava que a União Soviética tinha deixado de existir, os EUA reviram a sua política externa.
 
Podiam eventualmente ter lançado um novo plano Marshall que incluísse os derrotados da Guerra Fria e os trouxesse para o campo das democracias liberais mas preferiram marcar bem a sua hegemonia como a única superpotência mundial, definindo como missão política e militar dos EUA garantir que nenhuma potência rival pudesse emergir na Europa Ocidental, Ásia ou no território da antiga União Soviética.

A visão de um mundo dominado por uma única superpotência, os EUA, que resolveria todos os problemas do mundo sem a necessidade da intervenção colectiva através das Nações Unidas, foi conhecida através da divulgação em Março de 1992 pelo The New York Times de um documento classificado de 46 páginas que na altura ficou conhecido como a doutrina Wolfowitz.
 
Embora posteriormente revisto, o essencial do documento de Paul Wolfowitz, um político norte-americano tido como um dos expoentes do neoconservadorismo e do neoliberalismo e que era então Undersecretary of Defense for Policy na administração Bush, acabou por influenciar decisivamente a futura política externa dos EUA (Wolfowitz terá sido o arquitecto da invasão do Iraque), ao ser incorporado no que foi depois oficialmente designada por doutrina Bush e passou a ser adoptada sem grandes alterações pelas administrações que se seguiram.

Na prática, a doutrina que está na base dos muitos mal-entendidos e enganos sobre o alargamento da NATO aos países da antiga União Soviética. Alargamento da NATO que ao ser ratificado pela primeira vez no Senado norte-americano em 1998, mereceu este comentário de George Kennan, considerado o arquitecto da bem-sucedida contenção da União Soviética durante a Guerra Fria e um dos grandes estadistas norte-americanos do século XX: “I think it is the beginning of a new cold war. I think the Russians will gradually react quite adversely and it will affect their policies. I think it is a tragic mistake. There was no reason for this whatsoever. No one was threatening anybody else.”

Na prática, também a doutrina que justificou a não aceitação da entrada da Rússia na NATO e que os sucessivos governos de Moscovo tenham sido confrontados com várias garantias verbais, mas bem documentadas, de altas figuras da política europeia e norte-americana, garantias essas que não constando de nenhum tratado e não tendo sido cumpridas, se transformaram em equívocos políticos que só aumentaram a desconfiança e agravaram a tensão entre a Rússia e os EUA.

É por ter consciência da gravidade da situação actual e de que é urgente e necessário que os EUA, como potência hegemónica mundial que continuam a ser, participem nas negociações de paz e eventualmente na celebração de um novo Tratado de Segurança Europeia, que fico chocado ao ver a administração norte-americana participar na campanha mediática de instigação do ódio e da guerra.
 
E estranho ver um político populista transformado pela propaganda mediática em herói e estadista quando o que o mundo precisa neste momento é de estadistas competentes e preocupados com a Paz.