quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Memórias do Moçambique colonial


O jovem agrónomo tinha sido transferido de Inhambane para Quelimane para chefiar a Repartição de Agricultura e Florestas da Zambézia e a Delegação da Junta de Exportação do Café. Cedo percebeu que a pompa se esgotava nos nomes dos cargos. Tinha de começar do zero, desde logo arranjar umas instalações dignas porque as que existiam eram num barracão dos caminhos-de-ferro e todas as manhãs, ele e os funcionários da repartição, limpavam os excrementos dos morcegos.

Já tinha construído tudo de raiz em Inhambane e no Mangorro, próximo de Inharrime, e voltaria agora a fazer em Quelimane e em Alverca, próximo do Gurué. Para o jovem agrónomo o importante era criar uma estrutura de apoio aos cafeicultores da Zambézia porque para as outras culturas já existiam as grandes companhias. O café era a única cultura que permitia aos pequenos agricultores libertarem-se dos monopólios da comercialização que existiam para produtos agrícolas como o chá, o algodão ou o sisal.

Para fazer o seu trabalho e atingir os objectivos, precisava de muita energia e paciência para lidar com as autoridades administrativas coloniais; em Quelimane com o governador do distrito da Zambézia, um funcionário civil da Metrópole em comissão de serviço; em Lourenço Marques com o governador-geral, um oficial de Marinha que partilhava com o jovem agrónomo as raízes madeirenses. Talvez para vingar as frustrações de tais relacionamentos, pôs alcunhas a ambos: o primeiro era o “Narciso” e o segundo, o “Fadista”.

Se não fossem as eleições presidenciais de 1958, a comissão do “Narciso” teria corrido sem sobressaltos e de Quelimane poderia ter descolado para voos políticos bem mais relevantes. Mas a candidatura de Humberto Delgado exigiu dele uma resposta para a qual não estava preparado e apesar do empenho com que tentou angariar votos para o candidato da União Nacional, este acabou derrotado na Zambézia.

Nas eleições do Estado Novo, os poucos eleitores votavam com os boletins que cada uma das forças concorrentes lhes entregava previamente. A grande dificuldade da oposição era fazer chegar às pessoas os seus boletins de voto. No entanto, em 1958, a oposição em Moçambique estava bem organizada e conseguiu fazer chegar aos sítios mais recônditos os boletins de voto no Humberto Delgado.

Em Ile, por exemplo, bem no coração da Zambézia, o “Narciso” esteve na sede da circunscrição três dias antes da eleição para avisar o administrador do trabalho de sapa da oposição e o administrador garantiu que tudo estava a correr bem, que ficasse descansado, só contava com 6 ou 7 votos da oposição. No entanto o administrador não imaginava que quase todos os funcionários da firma Monteiro & Giro, a maioria dos eleitores da região, iam votar no Humberto Delgado, isto apesar da gerência da firma lhes ter recomendado o voto no almirante Américo Tomaz e de terem prometido ao administrador que iriam cumprir a recomendação. Imagina-se o pânico do homem quando percebeu, durante o acto eleitoral, que afinal estavam a votar no Humberto Delgado e já nada podia fazer para o evitar!

Em Quelimane, o “Narciso” pediu ao jovem agrónomo que convencesse os funcionários da Repartição de Agricultura a votar e lhes entregasse os boletins de voto no almirante Américo Tomaz. O jovem agrónomo aceitou com a condição de também distribuir boletins de voto no general Humberto Delgado, o que naturalmente não foi aceite pelo “Narciso”. Apesar do revés na Repartição de Agricultura, o “Narciso” manteve-se confiante que a vitória era certa.

Depois das eleições e contados os votos, o “Narciso” passou um mau bocado. Como outros governadores dos distritos de Moçambique, teve de justificar a derrota do candidato da União Nacional. Todos apresentaram as suas razões em relatórios classificados para o governador-geral em Lourenço Marques, o “Fadista”, que depois elaborou sobre elas num relatório secreto para o ministro na metrópole.

No relatório de 14 de Junho de 1958 para o “Fadista” (as eleições foram a 8 de Junho), o “Narciso” escreveu: “Logo que se iniciou a campanha eleitoral, conferenciei com os Presidentes das Comissões Distrital e Concelhia de Quelimane e assentámos em que, com vista a permitir que a União Nacional, praticamente reduzida à organização de Quelimane, pudesse ter todo o tempo livre para trabalhar o eleitorado da sede do Distrito, o Governador se encarregaria de toda a restante área, mais se combinando que, mesmo em Quelimane, o Governador, junto das Chefias dos Serviços, das Direcções das Companhias e Empresas importantes e de mais pessoas influentes no meio com quem tivesse boas relações e em quem depositasse confiança pública, exercesse na medida do possível, a sua acção no sentido de se conseguirem eleitores para o candidato da situação.

E concretizou: “Perdemos a eleição por uma diferença de 15 dos votos entrados e podemos, com a certeza de não nos enganarmos, atribuir este insucesso aos funcionários públicos, principalmente aos do Caminho de Ferro, Correios e Câmara, cuja grande maioria votou contra nós apesar de também a grande maioria deles ter prometido votar favoravelmente.
Como estes procederam muitos funcionários doutros sectores.
Quando, como no caso desta cidade, mais de 50% dos eleitores recenseados é constituído por funcionários públicos, melhor se poderá avaliar a delicadeza da eleição.
Se porventura se tivesse podido formar uma ideia correcta da verdadeira disposição dos funcionários, eu não teria hesitado em lhes falar directamente, sendo de admitir que, assim, das centenas de funcionários que votaram contra, convencesse pelo menos 15 e tantos bastavam para a eleição se não perder, a alinharem connosco.

E fez o mea culpa:

Por minha parte reconheço-me responsável de não ter tido a percepção da possível traição duma grande parte dos funcionários, que nos garantiu iriam votar connosco e que foram votar na oposição.
Se a tivesse tido creio que, poderia ter convencido quinze eleitores dos que nos foram desfavoráveis a votarem na lista da União Nacional.
Em último recurso ainda teria a solução, e tinha-a previsto em caso de necessidade, de fazer votar em Quelimane, por meio de certidões, 30 ou 40 eleitores seguros da Assembleia de Namacurra e Secção de voto de Inhassunge que para aqui faria transportar.
Fui atrás do que me disseram e garantiram e esta a minha culpa que não rejeito.

O “Narciso” foi tão convincente que o “Fadista” escreveu no seu relatório para o ministro: “O (governador) de Quelimane trabalhou bastante, mas confiou infundadamente no eleitorado da sede do Distrito. Pediu a sua exoneração em consequência do resultado eleitoral em Quelimane, mas entendi não dever fazer subir o pedido, porque, se errou, foi sem intenção, e a dura lição deve ter-lhe aproveitado.

E concluiu: “As últimas eleições, com todos os seus malefícios, tiveram o mérito de pôr em relevo vários pontos fracos da vida nacional, entre os quais, julgo, sobressai a “mentalidade” dos jovens diplomados universitários: advogados, médicos, engenheiros e professores do ensino liceal e técnico-profissional.

O "Fadista" deixou o cargo no final de 1958 e no ano seguinte foi nomeado administrador por parte do Estado do Banco Nacional Ultramarino. O “Narciso”, aqui fotografado no exercício das suas funções oficiais, manteve-se em Moçambique e foi nomeado Secretário Provincial em 1960.

O jovem agrónomo foi transferido para Angola em 1959, depois da cultura do café ser proibida em Moçambique por despacho ministerial.