quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Memórias do Moçambique colonial


O jovem agrónomo tinha sido transferido de Inhambane para Quelimane para chefiar a Repartição de Agricultura e Florestas da Zambézia e a Delegação da Junta de Exportação do Café. Cedo percebeu que a pompa se esgotava nos nomes dos cargos. Tinha de começar do zero, desde logo arranjar umas instalações dignas porque as que existiam eram num barracão dos caminhos-de-ferro e todas as manhãs, ele e os funcionários da repartição, limpavam os excrementos dos morcegos.

Já tinha construído tudo de raiz em Inhambane e no Mangorro, próximo de Inharrime, e voltaria agora a fazer em Quelimane e em Alverca, próximo do Gurué. Para o jovem agrónomo o importante era criar uma estrutura de apoio aos cafeicultores da Zambézia porque para as outras culturas já existiam as grandes companhias. O café era a única cultura que permitia aos pequenos agricultores libertarem-se dos monopólios da comercialização que existiam para produtos agrícolas como o chá, o algodão ou o sisal.

Para fazer o seu trabalho e atingir os objectivos, precisava de muita energia e paciência para lidar com as autoridades administrativas coloniais; em Quelimane com o governador do distrito da Zambézia, um funcionário civil da Metrópole em comissão de serviço; em Lourenço Marques com o governador-geral, um oficial de Marinha que partilhava com o jovem agrónomo as raízes madeirenses. Talvez para vingar as frustrações de tais relacionamentos, pôs alcunhas a ambos: o primeiro era o “Narciso” e o segundo, o “Fadista”.

Se não fossem as eleições presidenciais de 1958, a comissão do “Narciso” teria corrido sem sobressaltos e de Quelimane poderia ter descolado para voos políticos bem mais relevantes. Mas a candidatura de Humberto Delgado exigiu dele uma resposta para a qual não estava preparado e apesar do empenho com que tentou angariar votos para o candidato da União Nacional, este acabou derrotado na Zambézia.

Nas eleições do Estado Novo, os poucos eleitores votavam com os boletins que cada uma das forças concorrentes lhes entregava previamente. A grande dificuldade da oposição era fazer chegar às pessoas os seus boletins de voto. No entanto, em 1958, a oposição em Moçambique estava bem organizada e conseguiu fazer chegar aos sítios mais recônditos os boletins de voto no Humberto Delgado.

Em Ile, por exemplo, bem no coração da Zambézia, o “Narciso” esteve na sede da circunscrição três dias antes da eleição para avisar o administrador do trabalho de sapa da oposição e o administrador garantiu que tudo estava a correr bem, que ficasse descansado, só contava com 6 ou 7 votos da oposição. No entanto o administrador não imaginava que quase todos os funcionários da firma Monteiro & Giro, a maioria dos eleitores da região, iam votar no Humberto Delgado, isto apesar da gerência da firma lhes ter recomendado o voto no almirante Américo Tomaz e de terem prometido ao administrador que iriam cumprir a recomendação. Imagina-se o pânico do homem quando percebeu, durante o acto eleitoral, que afinal estavam a votar no Humberto Delgado e já nada podia fazer para o evitar!

Em Quelimane, o “Narciso” pediu ao jovem agrónomo que convencesse os funcionários da Repartição de Agricultura a votar e lhes entregasse os boletins de voto no almirante Américo Tomaz. O jovem agrónomo aceitou com a condição de também distribuir boletins de voto no general Humberto Delgado, o que naturalmente não foi aceite pelo “Narciso”. Apesar do revés na Repartição de Agricultura, o “Narciso” manteve-se confiante que a vitória era certa.

Depois das eleições e contados os votos, o “Narciso” passou um mau bocado. Como outros governadores dos distritos de Moçambique, teve de justificar a derrota do candidato da União Nacional. Todos apresentaram as suas razões em relatórios classificados para o governador-geral em Lourenço Marques, o “Fadista”, que depois elaborou sobre elas num relatório secreto para o ministro na metrópole.

No relatório de 14 de Junho de 1958 para o “Fadista” (as eleições foram a 8 de Junho), o “Narciso” escreveu: “Logo que se iniciou a campanha eleitoral, conferenciei com os Presidentes das Comissões Distrital e Concelhia de Quelimane e assentámos em que, com vista a permitir que a União Nacional, praticamente reduzida à organização de Quelimane, pudesse ter todo o tempo livre para trabalhar o eleitorado da sede do Distrito, o Governador se encarregaria de toda a restante área, mais se combinando que, mesmo em Quelimane, o Governador, junto das Chefias dos Serviços, das Direcções das Companhias e Empresas importantes e de mais pessoas influentes no meio com quem tivesse boas relações e em quem depositasse confiança pública, exercesse na medida do possível, a sua acção no sentido de se conseguirem eleitores para o candidato da situação.

E concretizou: “Perdemos a eleição por uma diferença de 15 dos votos entrados e podemos, com a certeza de não nos enganarmos, atribuir este insucesso aos funcionários públicos, principalmente aos do Caminho de Ferro, Correios e Câmara, cuja grande maioria votou contra nós apesar de também a grande maioria deles ter prometido votar favoravelmente.
Como estes procederam muitos funcionários doutros sectores.
Quando, como no caso desta cidade, mais de 50% dos eleitores recenseados é constituído por funcionários públicos, melhor se poderá avaliar a delicadeza da eleição.
Se porventura se tivesse podido formar uma ideia correcta da verdadeira disposição dos funcionários, eu não teria hesitado em lhes falar directamente, sendo de admitir que, assim, das centenas de funcionários que votaram contra, convencesse pelo menos 15 e tantos bastavam para a eleição se não perder, a alinharem connosco.

E fez o mea culpa:

Por minha parte reconheço-me responsável de não ter tido a percepção da possível traição duma grande parte dos funcionários, que nos garantiu iriam votar connosco e que foram votar na oposição.
Se a tivesse tido creio que, poderia ter convencido quinze eleitores dos que nos foram desfavoráveis a votarem na lista da União Nacional.
Em último recurso ainda teria a solução, e tinha-a previsto em caso de necessidade, de fazer votar em Quelimane, por meio de certidões, 30 ou 40 eleitores seguros da Assembleia de Namacurra e Secção de voto de Inhassunge que para aqui faria transportar.
Fui atrás do que me disseram e garantiram e esta a minha culpa que não rejeito.

O “Narciso” foi tão convincente que o “Fadista” escreveu no seu relatório para o ministro: “O (governador) de Quelimane trabalhou bastante, mas confiou infundadamente no eleitorado da sede do Distrito. Pediu a sua exoneração em consequência do resultado eleitoral em Quelimane, mas entendi não dever fazer subir o pedido, porque, se errou, foi sem intenção, e a dura lição deve ter-lhe aproveitado.

E concluiu: “As últimas eleições, com todos os seus malefícios, tiveram o mérito de pôr em relevo vários pontos fracos da vida nacional, entre os quais, julgo, sobressai a “mentalidade” dos jovens diplomados universitários: advogados, médicos, engenheiros e professores do ensino liceal e técnico-profissional.

O "Fadista" deixou o cargo no final de 1958 e no ano seguinte foi nomeado administrador por parte do Estado do Banco Nacional Ultramarino. O “Narciso”, aqui fotografado no exercício das suas funções oficiais, manteve-se em Moçambique e foi nomeado Secretário Provincial em 1960.

O jovem agrónomo foi transferido para Angola em 1959, depois da cultura do café ser proibida em Moçambique por despacho ministerial.

domingo, 22 de agosto de 2021

Lições da História

 


A velhice provoca frequentemente esta estranha sensação de que a História está a acontecer de novo, sempre como tragédia e farsa. É o caso da actual saída do poder norte-americano de Cabul, que me faz voltar a 1975, quando retirou de Saigão. Tenho consciência que a observação das duas situações foi e está a ser condicionada pelos mesmos filtros: em 1975, a circunstância de estar embarcado num navio da Marinha dos EUA e de passar a maior parte do tempo a navegar, fazia com que assistisse a filmes americanos quase diariamente e só visse e lesse a comunicação social produzida nos EUA; em 2021, a globalização faz com que continue a ver e ler notícias preparadas por agências dos EUA, embora assista a muito menos filmes, talvez por saturação.

Mas apesar dos filtros associados às circunstâncias, sejam eles os estereótipos instilados pelas notícias e pelos filmes e séries de guerra onde os bons são os heroicos marinheiros, soldados e aviadores americanos e os maus os guerrilheiros cruéis e os políticos locais, corruptos e incompetentes, que (des)governam populações dominadas por malandros, traficantes e prostitutas, e onde as cenas de guerra são quadros de êxtase; ou sejam eles os discursos dos responsáveis políticos dos EUA que com igual à vontade defendem o começo de uma guerra e, dezenas de anos, centenas de milhares de mortos e milhões de milhões de dólares depois, defendem o seu fim; é possível distinguir o que é diferente e o que é comum às duas intervenções americanas, no Vietname e no Afeganistão.

Como por agora só me interessa o que é semelhante, deixarei o que é diferente para outra altura. Comum às duas situações é a crença dos responsáveis políticos e de muitos cidadãos norte-americanos, instigada certamente pelo complexo militar-industrial dos EUA e de outras potências, de que as guerras que eles começam, terminam quando eles declaram o seu fim.

De facto, as guerras no Vietname e no Afeganistão resultaram da arrogância dos governantes dos EUA e da cumplicidade de dirigentes de todo o mundo e começaram quando foi do seu interesse político e económico. Mas quem pagou o maior custo em sofrimento humano foram as populações dos territórios onde foram feitas e nenhuma delas terminou com a declaração política do seu fim e com o espectáculo mediático da retirada das forças militares e do pânico dos que tentam fugir por qualquer meio.

Tal como a guerra do Vietname, a guerra do Afeganistão não terminará tão cedo para as centenas de milhares de refugiados que, tal como em 1975, os EUA e muitos outros países, não querem receber. Para esses refugiados a guerra, com todo o seu sofrimento, vai continuar por muitos anos porque os poderosos do mundo não querem aprender com as lições da História.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Recortes da História

 


Durante um largo período de 1975 e 1976 servi na corveta “António Enes” sob o comando do Comandante Francisco Félix de Lima Duarte Costa. Foram um Verão, um Outono e um Inverno politicamente quentes, primeiro no Continente e depois nos Açores, onde chegámos poucos dias antes do 25 de Novembro de 1975.
 
O Comandante Duarte Costa, com o profissionalismo, o rigor e a seriedade que todos lhe reconhecemos, preparou cuidadosamente a missão nos Açores, compilando toda a informação disponível sobre o arquipélago e a situação político-militar que lá se vivia. Uma das formas de o fazer foi criar uma pasta de recortes de jornais do Continente e dos Açores sobre o tema. Pois foi essa pasta de recortes de 1975 e 1976, de jornais tão díspares como o Diário de Lisboa e o Correio dos Açores, que o Comandante Duarte Costa, sabendo do meu interesse pelos Açores e as suas gentes, teve a gentileza de me oferecer recentemente.
 
Desde que o correio me entregou a oferta do Comandante Duarte Costa, não imaginam como me tenho deliciado com a leitura dos recortes da História vivida e observada a partir da "António Enes". Os recortes merecem outro tipo de tratamento, mas antes que seja possível fazê-lo, permitam-me citar apenas um detalhe da discussão sobre a autonomia político-administrativa dos Açores. É que 1975 foi o ano da discussão dos vários projectos de estatutos que acabaram por ser apresentados e discutidos na Assembleia Constituinte.

O primeiro projecto de estatuto de autonomia dos Açores foi elaborado e aprovado pelo núcleo de Ponta Delgada do PPD, onde pontificava Mota Amaral. Foi apresentado numa conferência de imprensa e publicado no Correio dos Açores ainda em Novembro de 1974. Posteriormente, em conjunto com outros projectos, um do MAPA (onde militavam órfãos do regime deposto) e outro do “Grupo dos Onze” (este viria a ser apresentado na Constituinte pelo MDP/CDE), foi debatido na "I Reunião Insular" (incluindo representantes da Madeira), realizada em Angra do Heroísmo em Março de 1975.

O projecto do PPD sofreu sucessivas alterações, mas na primeira versão desenvolvia os interesses autonomistas na área militar, avançando a ideia de que “as guarnições (…) de qualquer arma estacionada nas regiões autónomas deverão ser compostas exclusivamente por naturais delas”. Ainda bem que esta disposição desapareceu da versão apresentada pelo PPD na Comissão Parlamentar da Assembleia Constituinte, porque teria certamente originado uma guerra mais violenta do que a das bandeiras de 1980 e 2009.

A fotografia que escolhi para ilustrar este texto não é de 1975, embora nela apareça a corveta "António Enes" e o cais do porto de Ponta Delgada que tão bem conhecemos naquele Outono e Inverno. É uma foto actual, de Julho de 2021. Trata-se da rendição do NRP "António Enes" pelo NRP "Viana do Castelo", outro navio que também conheci bem, bastante mais tarde e noutras circunstâncias. É provável que ambos tenham açorianas e açorianos nas suas guarnições. Mas tal como a "António Enes" do Comandante Duarte Costa, neles estarão também embarcados portugueses de muitas outras regiões do país.

E ainda bem que assim é porque que se alguma vez alguém tivesse decretado que as guarnições dos navios estacionados nas diferentes regiões de Portugal deviam ser compostas exclusivamente por naturais dessas regiões, eu nunca teria embarcado em navios da Marinha Portuguesa.

sábado, 3 de julho de 2021

O paquete "Angola"



Camaradas do meu curso e do curso "AC" da Escola Naval assinalaram os 50 anos da travessia do Equador na “Sagres” no final de Junho de 1971. De facto, os cadetes e os aspirantes dos dois cursos atravessaram o Equador rumo ao Brasil e os que supostamente o faziam pela primeira vez, foram devidamente julgados e castigados pelo Rei Neptuno e a sua corte.

Não escapei de ser julgado, mas no meu caso pessoal, e certamente no de outros que nasceram ou viveram nas antigas colónias africanas, aquela não foi a primeira vez que atravessei o Equador num navio. A minha primeira vez tinha sido muito tempo antes no paquete “Angola”, no final de 1956, na viagem de regresso a Moçambique, depois de uma estadia na Metrópole para conhecer os meus avós maternos. A viagem de Lourenço Marques para Lisboa tinha sido feita de avião, mas o regresso foi por mar, no “Angola”.

O quarto navio de bandeira portuguesa, e terceiro paquete, com o nome “Angola” foi encomendado aos estaleiros R & W Hawthorn, Leslie & Co Ltd de Newcastle e entregue à Companhia Nacional de Navegação” (CNN) em Dezembro de 1948, para operar na carreira de África. Com o seu gémeo “Moçambique”, foram os primeiros paquetes portugueses equipados com motores diesel (2 motores “Doxford” de 6 500 HP cada), um salto significativo em termos de economia de exploração.

Em 1956 viajei com a minha mãe e a minha irmã de Lisboa para Luanda para nos reencontramos com o meu pai que estava a fazer um estágio sobre a cultura do café em Angola, com o objectivo de depois dinamizar a sua produção em Moçambique. Embora criança, tenho uma memória muito viva da vida a bordo do “Angola”, da festa de passagem do Equador e, principalmente, do trajecto entre Luanda e Lourenço Marques, depois do meu pai se juntar a nós.

Não há dúvida que as longas viagens de barco nos marcavam de uma forma indelével, em nada comparável com as de avião.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Retratos do Colonialismo Português

Desde miúdo que me lembro de ouvir falar do primeiro emprego da minha mãe na sede da Companhia de Diamantes de Angola na Rua dos Fanqueiros, na conhecida Diamang, e do seu patrão, o comandante Vilhena, o causador de alguns arrufos no namoro com o meu pai. É que o Capitão-de-fragata Ernesto Vilhena, um oficial de Marinha monárquico que foi ministro da República, administrador colonial e de muitas importantes empresas e bancos e próximo de Salazar, era um ditador que obrigava todos os trabalhadores a perguntar-lhe se determinava alguma coisa antes de saírem no fim do dia de trabalho, às 18 horas. O ritual trazido da Marinha fazia com que se formasse uma longa fila à porta do gabinete do patrão e a minha mãe, por mais que fizesse para ser das primeiras a despedir-se, acabava por fazer o meu pai esperar na porta do prédio quando a ia buscar ao emprego. Como o meu pai nunca gostou de esperar, o atraso involuntário acabava por provocar um amuo que só passava algum tempo depois.

Vem esta memória a propósito da primeira apresentação pública de parte do arquivo fotográfico da Companhia de Diamantes de Angola, a Exposição “O Silêncio da Terra: visualidades (pós)coloniais intercetadas pelo Arquivo Diamang”, na Galeria do Paço e no Museu Nogueira da Silva (Universidade do Minho) e patente ao público entre 30 de Junho e 10 de Setembro de 2021.

Trata-se de um acervo fotográfico impressionante que nos conta por imagens o que era na prática um Estado dentro do Estado colonial português. No território concessionado à Diamang na Lunda, os funcionários europeus gozavam de um regime privilegiado (a minha mãe trabalhou na secção de compras no final da década de 1940 e conta que nada lhes faltava, até túlipas eram importadas da Holanda para serem enviadas para a Lunda) enquanto o trabalho forçado dos africanos foi uma constante até finais da década de 1960. E não se verificava só na mineração, ocorria também nos campos agrícolas, onde mulheres e crianças trabalhavam para alimentar milhares de pessoas.

Das muitas fotografias da exposição, escolhi duas pelo seu significado particular. Na primeira fotografia é registada a visita de diplomatas belgas e do governador do distrito de Benguela a um dos sectores da mina. 



A segunda fotografia é da Estação Central de Escolha de Andrada e merece uma explicação mais detalhada.




Nas estações centrais de escolha, onde se separavam os diamantes dos outros resíduos de rocha, o trabalho era muito duro e os homens eram obrigados a lá permanecer sem contacto com o exterior durante três ou mais meses. Para impedir o roubo e o tráfico de diamantes, a vigilância era apertadíssima e os homens só deixavam a central ao fim de meses, nus e sujeitos a uma inspecção corporal rigorosa.

Pois a segunda fotografia é da visita à Estação Central de Escolha de Andrada, em 1951, do sociólogo Gilberto Freyre, o criador do luso-tropicalismo e do mito da benignidade da colonização lusa que a propaganda do Estado Novo adoptou a partir da década de 1950. Nela vemos o visitante a assistir, com outros convidados e funcionários da empresa, a um momento de lazer em que trabalhadores africanos dançam uns com os outros. Separa-os uma rede que parece transformar o pátio onde decorre o “baile” numa jaula.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

O meu Comandante



Digo muitas vezes que não sou um marinheiro competente por incapacidade própria porque a Marinha fez tudo para que frequentasse as melhores escolas e tivesse os melhores mestres. Uma dessas escolas foi o embarque, ainda guarda-marinha, na corveta “António Enes”, sob o comando de um grande mestre, o Comandante Francisco Felix de Lima Duarte Costa. Nos três anos da minha curta mas intensa carreira como oficial embarcado, servi sob as ordens de excelentes comandantes, mas se tivesse de escolher, não hesitaria em apontar o Comandante Duarte Costa como "O Meu Comandante".

Antes de nos reencontrarmos na “António Enes” em 1975, o Comandante Duarte Costa foi meu instrutor de armas submarinas e director de instrução numa das viagens de instrução na Escola Naval. Mais tarde, no início da década de 1980, convidou-me para fazer parte da sua direcção do Clube Militar Naval. Apesar de a engenharia me ter posto numa rota profissional diferente da do Comandante Duarte Costa, nunca deixou de ser uma das minhas referências como ser humano, como militar e como marinheiro. E o Comandante Duarte Costa deu-me sempre a honra da sua amizade, sentimento que é, naturalmente, recíproco.

Pois foi essa amizade que levou o Comandante Duarte Costa a oferecer-me a "Antologia de Crónicas da Vida no Mar", editada pela Colibri, onde João Freire e Carlos de Almada Contreiras recolheram e organizaram as crónicas e textos de 43 autores, na sua grande maioria oficiais de Marinha, sobre as suas vivências náuticas e os navios onde aprenderam a conhecer e respeitar o mar.  Lá está entre as memórias de muitos camaradas e amigos que li com um enorme prazer, a crónica do Comandante Duarte Costa com o inesperado título “Navio versus carro de bois”!

Na sua crónica, o Comandante Duarte Costa recorda o comando de um draga-minas da classe “São Roque”, de que fazia parte o “Ribeira Grande” onde o meu e outros cursos da Escola Naval aprenderam os conceitos de “deitar a carga ao mar” e “prumar à borda”, experiência de que me “vinguei” quando mais tarde fui responsável pelo seu desmantelamento após abate. E eu revi-me nos guardas-marinhas dos draga-minas a quem o Comandante Duarte Costa ensinou a fazer quartos à ponte e a afinar o “olho” e a prática de marinheiro.

É que embora eu já tivesse mais prática que os guardas-marinhas dos draga-minas, o Comandante Duarte Costa, nos quartos à ponte na “António Enes”, também me ensinou a fazer permanentemente “o ponto de situação das luzes que estavam à vista”, “a verificar sempre a variação da marcação dos navios na área, com a giro e o radar”, a não me esquecer que “mesmo que tivesse direito a rumo devia manobrar a tempo de evitar uma manobra de emergência” e “que existia sempre a possibilidade de, em qualquer momento, os navios alterarem o rumo que trazem, como sucedia, muitas vezes, com os navios e embarcações de pesca.”

Devo dizer que tudo o que aprendi e vivenciei na “António Enes” sob o comando do Comandante Duarte Costa, aconteceu num contexto interno de respeito rigoroso pelos valores e pela organização militares, o oposto da descrição que, num outro texto publicado no livro, um outro cronista faz da vida a bordo do mesmo navio, exactamente no mesmo período. É notável como passados quarenta e seis anos, duas pessoas que viveram a mesma realidade, podem ter memórias tão diferentes dessa realidade.

Ou talvez a explicação seja simples e esteja na resposta do marinheiro vigia que deixou o Comandante Duarte Costa completamente “desarmado”: “Nã, Senhor Comandante! Andar com um navio no mar nã é como andar com um carro de bois lá na minha terra!”

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Coelho à maneira da Avó Joana


O Senhor José da crónica de Mayone Dias era um caçador inveterado da Terceira que criava e utilizava furões, mais do que proibidos pela lei californiana, para continuar a caçar coelhos no Vale de San Joaquin. Caçava-os para os confeccionar em vinha d'alhos e comer acompanhado de um vinho da sua lavra, um repasto bem português que choca qualquer americano genuíno. E eu tive a prova disso em Monterey, quando a João decidiu servir “coelho à maneira da Avó Joana” a um casal americano.

As nossas avós eram exímias cozinheiras e por isso, quando fomos para Monterey, a João fez uma recolha das suas melhores receitas para podermos mais tarde matar saudades daqueles sabores. Uma delas foi o coelho feito pela Avó Joana, uma versão frita e refogada depois de generosamente temperada e marinada em vinha d’alhos. E apesar de eu ter avisado que o coelho não fazia parte dos hábitos alimentares dos americanos, a João decidiu fazer o saboroso “coelho à maneira da Avó Joana” para o primeiro jantar dos nossos sponsors em nossa casa.

O programa dos international sponsors da Naval Postgraduate School consistia, e julgo que ainda se mantém, na designação de militares americanos voluntários a frequentar a NPS, para apoiar os estudantes estrangeiros e respectivas famílias durante os primeiros meses de adaptação à escola e ao país. Para além da experiência pessoal, ser sponsor tinha contrapartidas para a carreira do militar americano, em especial se estivesse interessado em ocupar cargos de representação em países estrangeiros. Envolvia não só o militar, mas também o cônjuge. No nosso caso foi designado um jovem oficial da Marinha Americana que, com a sua mulher, eram o estereótipo do casal americano que víamos nos filmes: imaculadamente louros, sem o mínimo traço de ascendência latina, e muito simpáticos.

Lembro-me de nos convidarem para o tradicional Thanksgiving dinner e, em retribuição, convidámo-los para o tal jantar de “coelho à maneira da Avó Joana”. A João decidiu, estava decidido, e com a cumplicidade de outras portuguesas, arranjou os ingredientes e o coelho que partiu em pedaços, temperou e deixou em vinha d’alhos de um dia para o outro. No dia do repasto, fritou-o, refugou-o e preparou o acompanhamento, religiosamente de acordo com a receita da Avó Joana. Quando veio para a mesa, não podia cheirar melhor e faria salivar qualquer português que visse a travessa.

O problema é que estávamos na América com convidados americanos. O nosso simpático casal olhou para o bicho com cara de quem acabava de perceber que estava entre gente estranha que comia rabbits, uns pets tão simpáticos que nunca imaginaram comer. Contudo, aguentaram estoicamente (o dever assim o exigia) e cumpriram as suas funções: comeram o coelho que a João lhes serviu, sempre a sorrir, e no final agradeceram de acordo com as regras de cortesia.

Mas o sacrifício dos nossos sponsors não foi em vão. Quando mais tarde me perguntaram a opinião sobre o seu desempenho, respondi para espanto do meu interlocutor: − Perfeito. Extremamente simpáticos e prestáveis e preparados para qualquer cargo no estrangeiro. Veja lá que até comeram coelho na minha casa…

domingo, 13 de junho de 2021

“Crónicas da Diáspora”

 


Tenho um enorme respeito pelo esforço e pela obra que os emigrantes portugueses realizaram e continuam a realizar por todo o mundo e observo com interesse os elementos essenciais do processo de preservação e reconstrução da sua identidade cultural em função das condições específicas de cada um dos inúmeros espaços de acolhimento.

Apesar de minha família ser de Portugal Continental e da Madeira, de ter vivido a infância em Moçambique e ter vários familiares emigrados noutras partes do mundo, quiseram as circunstâncias da vida que acabasse por conhecer e compreender melhor a vida das comunidades portuguesas nos Estados Unidos e, em particular, dos emigrantes açorianos na Califórnia.
 
Até 1975, o meu conhecimento sobre os Açores limitava-se ao pouco que aprendi na escola e a uma curta visita a São Miguel e às suas belezas naturais. A partir de Novembro de 1975 e ao longo de mais de um ano conheci todas as ilhas dos Açores e as gentes que nelas viviam. Logo a seguir fui estudar para a Califórnia e a partir daí nunca mais deixei de me sentir ligado à comunidade portuguesa e luso-descendente, maioritariamente açor-americana, que ali vive. Uma comunidade que admiro pela qualidade dos seus membros e pela obra que realizaram com trabalho e perseverança.

Confesso que quando vivi em Monterey no final da década de 1970 não entendi as peculiaridades económicas, políticas, culturais e psicológicas dos portugueses açorianos emigrados na Califórnia. Nessa altura as minhas preocupações e a minha disponibilidade para reflexões fora do âmbito da engenharia eram muito diferentes das de hoje e por isso só mais tarde comecei a perceber o essencial do processo de assimilação da cultura americana pelos emigrantes açorianos e quais eram os traços identitários fundamentais dos açor-americanos.

Ler os trabalhos dos professores Onésimo Teotónio Almeida ou Francisco Cota Fagundes, os escritos de João de Melo, Álamo Oliveira ou Vamberto Freitas, para citar apenas alguns dos principais, ajudou muito. Mas ao seguir os roteiros de Francisco Cota Fagundes ou de Vamberto Freitas, houve um lisboeta que conheceu bem a comunidade açoriana na Califórnia que me abriu a porta do processo de compreensão e esse foi o professor Eduardo Mayone Dias, recentemente falecido, com as suas “Crónicas da Diáspora”. E fê-lo com três crónicas que também vi citadas num trabalho académico de 2019 realizado na Universidade de Macau (somos realmente globais!): “O Senhor José e os seus Furões”, “A Rainha Santa na Califórnia” e “Forcados com Sapatos de Ténis ou as estranhas andanças da corrida de touros na Califórnia”.

O Senhor José era um caçador inveterado da Terceira que para continuar a caçar coelhos no Vale de San Joaquin, criava e utilizava furões que eram mais do que proibidos pela lei californiana. A medieval Rainha Santa Isabel de Aragão e Portugal era a mais improvável aparição que alguém podia esperar na Califórnia, uma terra remota e estranha a qualquer tipo de história ou lenda religiosa portuguesa. Contudo Mayone Dias escreveu que em Artesia, “o Rei Lavrador e a Rainha Santa regressaram ao século vinte e se estão preparando para ir até ao McDonald’s reconfortar-se com dois hamburgers com batatas fritas e dessedentar-se com duas espumantes coca-colas”. Na mesma Artesia onde ouviu os hinos dos Estados Unidos da América e de Portugal tocados pela banda portuguesa local e viu hastear as bandeiras de ambos os países, para logo de seguida aparecerem os forcados que descreveu assim: “Nenhum traz barrete. Uns estão de jaqueta, outros em mangas de camisa. Alguns usam um calção beige, outros uma calça preta justa, até meio da tíbia. E todos vêm de sapatos brancos de ténis. Os seus nomes vão sendo anunciados pelos alto-falantes e é uma sensação estranha ouvir todas estas menções a Franks, Jakes e quejandos.”

Claro que os forcados que vemos na foto do meu amigo José Ávila, pelo menos no atavio, já não são os Jakes e os Franks de Mayone Dias, mas lá está o velcro para proteger o touro e evitar o derramamento de sangue provocado pelas bandarilhas, muito provavelmente numa tourada associada a uma festividade religiosa, tudo para cumprir a lei californiana e contornar a aversão dos americanos pelas touradas.
 
É esta capacidade dos portugueses para, partindo de condições adversas, transplantarem as suas tradições culturais e as adaptarem ao novo ambiente, na maior parte das vezes dando a volta por cima e tornando-se tão bons ou melhores que os já residentes no espaço de acolhimento, que me fascina nas comunidades de portugueses e lusodescendentes que tive a sorte de encontrar em todo o mundo, fosse na Califórnia e noutras regiões dos EUA, fosse na Alemanha, em França, em Inglaterra ou na Malásia.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

O outro Bérrio

 


Assisti à "grande entrevista" do ministro da Defesa João Gomes Cravinho à RTP3 com a atenção que ainda dedico aos assuntos de uma área onde trabalhei durante a maior parte da minha carreira profissional. 

Confesso que as minhas expectativas relativamente às entrevistas ministeriais são normalmente muito baixas e esta esteve dentro do esperado, não trouxe nada de novo. Contudo, surpreendeu-me a atenção dada à Marinha, não é habitual um ministro aventurar-se nos detalhes do seu funcionamento. Deixo os comentários ao que foi dito para os camaradas mais bem informados do que eu sobre a situação actual da Marinha, mas não resisto a apontar duas afirmações que me fizeram voltar ao tempo em que nela prestei serviço.

A primeira foi que com a aprovação em conselho de ministros da “possibilidade de encomenda” de seis novos navios de patrulha oceânicos, ficaremos com a Marinha mais bem equipada que alguma vez tivemos. Andou tanta gente a trabalhar duramente para obter financiamentos e para construir e manter navios que satisfizessem as necessidades mínimas da Marinha e afinal a solução era tão simples: bastava reunir um conselho de ministros e aprovar uma possibilidade de encomenda!

A segunda foi que a Marinha teria previsto que o Bérrio "estaria em condições, viveria", disse o ministro, até 2028 ou 29. Tendo em conta a minha experiência pessoal, tenho dificuldade em admitir tal possibilidade e só vejo duas hipóteses: alguém mentiu ao ministro ou havia outro Bérrio que não aquele que fui buscar a Inglaterra em 1993 e depois fui responsável pela sua manutenção.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

"Café Milhafre"

 

O romance de João de Melo "Livro de Vozes e Sombras" (Dom Quixote, 2020), descreve o ambiente do independentismo açoriano que conheci quando servi nos Açores entre 1975 e 1977. A corveta onde estava embarcado chegou a Ponta Delgada na véspera da manifestação de 17 de Novembro de 1975, em princípio uma reedição da de 6 de Junho. A informação que tínhamos era que a FLA tencionava declarar a independência hasteando a bandeira no palácio do governador. Depois de um Verão agitado no Continente, caímos de repente no centro do movimento independentista que estava muito activo em São Miguel e, especialmente, em Ponta Delgada.

Embora os activistas da FLA, ou do que resta dela, continuem a dizer que em Novembro saíram para a rua umas 15 mil pessoas (no 6 de Junho teriam participado 10 mil), os objectivos políticos não foram atingidos. A bordo da corveta estávamos preparados para usar as mangueiras de incêndio como dissuasor caso houvesse uma provocação, mas nada de extraordinário aconteceu para as bandas do porto de mar. Depois desta estreia atribulada, a agitação política em Ponta Delgada foi acalmando e conseguíamos fazer uma vida quase normal sempre que por lá passávamos. A guarnição tinha instruções para evitar dois cafés frequentados por gente da FLA, o Lys e o Royal, para evitar provocações e eventuais confrontos, mas de resto era possível movimentarmo-nos em Ponta Delgada sem qualquer restrição.

Acontece que João de Melo conta um episódio que apesar da advertência de “que não devam as personagens deste livro associar-se a pessoas reais, conhecidas ou não”, não pude deixar de reconhecer traços familiares no "Capitão de Abril" que foi sozinho ao “Café Milhafre, a dois passos da doca”, pedir aos da FLA o favor de lhe dizerem o que pretendiam dele. Em cerca de três páginas, João de Melo dá-nos conta de como os planos de expulsar um "Capitão de Abril" que era visto como a “personificação simbólica e maldita do domínio colonial” português, se desfizeram em poucos minutos, apenas porque os executores se viram confrontados, cara a cara, com a eventual vítima.

Não tenho qualquer dúvida que o autor se inspirou num episódio protagonizado por Salgueiro Maia e ocorrido em 1976 ou 77, quando nos encontrámos em Ponta Delgada, estava eu já embarcado numa outra corveta. Só não estou certo do local onde ocorreu mas julgo que o “Café Milhafre” terá sido o nosso conhecido Café Royal.

domingo, 25 de abril de 2021

As pátrias de Abril | April's homelands


Escrevi "As pátrias de Abril" a pensar no meu Pai e em todos os que foram por esse mundo fora para fugir ao espectro da pobreza ou para realizar o que nas lusas nesgas de terra debruadas de mar não era possível. Escrevi "As pátrias de Abril" a pensar em todos os que como o meu Pai alcançaram sucesso com muito trabalho e muito sacrifício, mas que continuaram a ser olhados pelos que ele chamava de “calcinhas da metrópole” com inveja e arrogância.

Escrevi "As pátrias de Abril" a pensar em todos os que como o meu Pai foram e continuam a ser tratados pelos poderes nacionais e regionais como portugueses de segunda classe, quer pelos burocratas, eleitos ou não, quer pelos seus representantes nas embaixadas e consulados espalhados pelo mundo. Escrevi "As pátrias de Abril" a pensar em todos os que apesar de tudo se sentem profundamente portugueses, mesmo que cidadãos de outros países.

Escrevi "As pátrias de Abril" a pensar em todos os que como o meu Pai viveram o dia 25 de Abril de 1974 como um dos mais belos dias da sua vida. Escrevi "As pátrias de Abril" a pensar em todos os que, mesmo que o não tendo vivido, continuam como o meu Pai fazia, a celebrar o 25 de Abril com alegria e orgulho, sem precisarem de desfilar na avenida.

E como para muitos em quem pensei o português não é a língua materna, o Diniz Borges decidiu traduzir "As pátrias de Abril" para inglês. É o original e a sua tradução, ilustrado pelo meu neto mais novo, que aqui deixamos como celebração da universalidade do 25 de Abril.

__________

AS PÁTRIAS DE ABRIL

“Nós precisamos de uma pátria e a minha pátria é o meu bairro. E quando não a temos, inventamos.” Ouvi isto a Bruno Vieira Amaral, o escritor criado no bairro problemático do Vale da Amoreira, no Barreiro, que a família materna alentejana e paterna angolana decidiu, em 1975, trocar pelo bairro de lata de Lisboa, num dos movimentos de ocupação de prédios em construção que se seguiram ao 25 de Abril.

Referia-se à sua pátria, o seu lugar de pertença, mas que não o podia ser para a avó cuja pátria era Montalvão, no Alentejo. No Barreiro a avó sentia-se deslocada, desenraizada. Tão deslocada e desenraizada como a esmagadora maioria dos portugueses, migrantes empurrados pela necessidade, se sentiram ao longo de séculos em muitos lugares do mundo. Tão deslocada e desenraizada como o meu avô transmontado quando veio trabalhar como marçano em Lisboa, como os meus avós madeirenses quando foram para Moçambique, como a minha mãe lisboeta quando viveu em Inhambane e Quelimane ou como o meu pai moçambicano quando foi obrigado a vir para Portugal. Tão deslocada e desenraizada como quase todos os que se consideram portugueses e que encontrei pelo mundo fora, fosse qual fosse a sua nacionalidade.

Na realidade, milhões cujas pátrias, cujos lugares de pertença são construídos, independentemente do lugar onde nasceram ou cresceram, com uma cultura que apenas conhecem pelo que lhes foi transmitido pelos pais e avós, com uma religião professada tanto pelos que rezam na igreja de São Pedro em Malaca como na igreja das Cinco Chagas em São José na Califórnia, com uma língua que muitos mal conhecem mas que é a dos seus antepassados. Pátrias de que gostam embora sejam apenas, como Miguel Torga escreveu, “uma nesga de terra debruada de mar”, muitas vezes desfocada ou imaginada, numa serra transmontana, numa planície alentejana, numa caldeira açoriana ou numa fajã madeirense. O espaço telúrico e moral, cultural e afectivo onde cada natural se cumpre humana e civicamente”, como o mesmo Torga definiu.

Foram estas múltiplas e diversas pátrias verdes e vermelhas, que o 25 de Abril de 1974 libertou.

Foram estas múltiplas e diversas pátrias da cor da Liberdade que derrubaram e substituíram a pátria única da ditadura, a pátria da minha infância a papaguear os rios e as linhas de caminho-de-ferro de uma Metrópole desconhecida numa escola de Quelimane, a pátria da infância dos meninos das ilhas e das colónias que viram cartazes a proclamar “Aqui também é Portugal!” durante visitas de presidentes vindos de longe e recebidos com pompa e circunstância, a pátria dos meninos homens que se alistaram para fugir à pobreza e foram combater uma guerra distante, a pátria que roubou a saúde e a vida dos milhares e milhares de jovens que combateram nas matas africanas. A pátria que não foi ditosa e foi madrasta para gerações de portugueses, empurrados para outros lugares em busca de melhores condições de vida.

Foram as pátrias que Abril libertou, que como Jorge de Sena coleccionam “nacionalidades como camisas se despem, se usam e se deitam fora, com todo o respeito necessário à roupa que se veste e que prestou serviço”, que são as pátrias do Andrew, da Natasha, da Sabrina, do David, do Miguel, da Clara, do Tomás e do Afonso. Todos da geração dos “filhos da madrugada”, que em Filadélfia, em Washington, em Rhode Island, no Silicon Valley ou em Oeiras, sentem como seu o 25 de Abril de 1974 e lutam para que as nossas pátrias verdes e vermelhas, da cor da Liberdade, sejam mais humanas, livres e justas.

__________

APRIL'S HOMELANDS

“We need a homeland, and my homeland is my neighborhood. And when we do not have it, we invent it.” I heard this from Bruno Vieira Amaral, the writer raised in the troubled neighborhood of Vale da Amoreira, in Barreiro, that the family, from Angola and the Alentejo Region of Portugal decided, in 1975, to exchange for the slum district in Lisbon - one of the various movements that resulted from the settlement into the newly constructed empty buildings that followed the April 25th revolution.

He was referring to his homeland, his place of belonging, a place that was not his grandmother’s homeland, hers’ was still Montalvão, in the Alentejo. In Barreiro, the grandmother felt out of place, uprooted. As out of place and uprooted as many Portuguese emigrants driven by necessity, have felt for centuries in many parts of the world. As out of place and uprooted as my grandfather, when he came to work as a marquis in Lisbon, as my grandparents from Madeira when they went to Mozambique, as my mother, born and raised in Lisbon when she lived in Inhambane and Quelimane or as my Mozambican father when he was forced to come to Portugal.

As out of place and uprooted as almost all who consider themselves Portuguese, whom I met throughout the world, whatever their nationality might be.  Millions whose homelands, whose places of belonging are built, regardless of the place where they were born or grew up, with a culture they know from what was passed on to them by their parents and grandparents, with a religion professed so much by those who pray in the church of São Pedro in Malacca as in the Five Wounds church San Jose, California. With language that many barely now know but was the language of their ancestors.  Homelands that they love, although they might be, as the Portuguese writer Miguel Torga wrote, “a strip of land bordered by the sea”, often blurred or imagined, in a mountain range in Trás-os-Montes, in an Alentejo plain, in an Azorean crater or in a Madeira basin. “The tellurian and moral, cultural and affective space where each native is fulfilled humanly and civically” as Torga defined it.

Yes, these multiple, diverse green and red homelands were liberated by the April 25th revolution.

Yes, these multiple and diverse homelands, with the Color of Freedom, overthrew and replaced the unique homeland of the dictatorship, the homeland of my childhood, as I parroted the rivers and the railroad lines of an unknown Mainland in a school in Quelimane; the childhood homeland of the children of the islands and the colonies who saw posters proclaiming, "This is also Portugal”;  during visits by presidents from afar, who were welcomed with pomp and circumstance; the homeland of young men who enlisted to escape poverty and went to fight a distant war; the homeland that stole the health and life of the thousands and thousands of young people who fought in the African jungles. The homeland that was not a good mother, but a wicked stepmother for generations of Portuguese, driven to other lands.

These are the homelands that Abril liberated, who like the Portuguese poet, writer, and scholar Jorge de Sena, collect “nationalities such as shirts are stripped, used and thrown away, with all due respect to the clothes that dress and serve our needs”, that are the homelands of Andrew, Natasha, Sabrina, David, Miguel, Clara, Tomás and Afonso. All of them, “children of the dawn”, the younger generation, who, be it in Philadelphia, Washington DC, Rhode Island, Silicon Valley or Oeiras, feel the Carnation Revolution as theirs and, collectively, do continue in the continuous transformation of our green and red homelands, with the Color of Freedom, so they can become more humane, free, and just.

sexta-feira, 19 de março de 2021

O denunciante


Foi talvez o que mais estranhei. Para quem vinha do país dos “brandos costumes”, de gentes que “não querem confusões nem conflitos”, que dizem que “não se metem na vida dos outros” e que nunca viram nem sabem o que se passou, tive de me habituar a uma sociedade onde muitos, não sei se a maioria, aprendem desde tenra idade a comportarem-se como um híbrido de professor e polícia. Sempre que alguém não cumpre as regras, seja por fazer barulho em casa, atravessar uma rua fora da passadeira ou caminhar na faixa do passeio destinada às bicicletas, lá aparece um alemão carrancudo para dar uma descasca e o pôr na ordem.

Muitos alemães entendem que têm o direito, e provavelmente a obrigação, de ensinar a lei e as regras aos outros e de lhes impor o seu cumprimento. Nunca me habituei a tal comportamento e sempre que podia, revoltava-me. Com a ênfase com que, por exemplo, despachei, em português pouco suave, o hausmeister que às dez horas de uma noite de Natal, durante a ceia, nos veio lembrar que a partir daquela hora não podíamos fazer barulho. Por mais que tentasse racionalizar e compreender aquele traço cultural, nunca consegui dissociar o destino de muitas das vítimas do nazismo do comportamento policial e desumano dos seus vizinhos e conhecidos.

Claro que eu sabia que na terra dos brandos costumes de onde tinha vindo também havia muita gente que se metia na vida dos outros. Os arquivos da Pide estavam cheios de exemplos de quem prejudicou vizinhos, colegas, amigos e até familiares a pretexto da manutenção da ordem e a bem da Nação. Mas mantinha a ilusão de que por cá as coisas eram diferentes e os portugueses, apesar de tudo, portavam-se melhor que os alemães.

Infelizmente, trinta anos depois, sou obrigado a reconhecer que os portugueses são, ou estão cada vez mais, parecidos com os alemães. Denunciam os outros às autoridades policiais e administrativas por tudo e por nada, de uma forma até mais desprezível do que a chamada de atenção do hausmeister de Hamburgo. Fazem-no anonimamente, cobardemente, muitas vezes por inveja, para prejudicar os outros, mas sempre e alegadamente em defesa do bem público. E as autoridades aceitam e dão-lhes cobertura. Ainda há dias os proprietários de um estabelecimento comercial contavam-me que durante a pandemia, o seu e outros estabelecimentos da rua eram frequentemente visitados por polícias em consequência de denúncias de irregularidades que não se confirmavam.

Muito provavelmente, um dos efeitos da pandemia foi ter tornado os portugueses mais parecidos com os alemães. Infelizmente, apenas no que eu mais desprezava neles.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

A revolta da Baixa de Cassange

Apanha do algodão, 1961. Desenho de Henrique Abranches

A historiadora Raquel Varela disse na RTP3 que não temos memória porque Portugal convive muito mal com o seu passado colonial, que, segundo ela, é um passado brutal. E para provar que assim é, afirmou que a maioria dos portugueses que a estavam a ouvir “não faz a mínima ideia que a guerra colonial começa com um massacre de trabalhadores em greve, de uma zona e de uma empresa que é a Cotonang. Eram trabalhadores forçados, portanto trabalhadores obrigados a trabalhar, que entram em greve por serem trabalhadores forçados, no norte de Angola, e são regados com napalm pelo Exército português, cinco a dez mil terão sido mortos.” Esclareceu ainda a historiadora que “é partir daí, aliás, que se dá o massacre da UPA, que toda a gente conhece em Portugal e o MPLA decide pegar em armas.”

Não posso falar por todos os portugueses que a ouviam, mas eu que estudei o que se passou há 60 anos na Baixa de ou do Cassange (também grafada como Cassanje ou Kassanje), um território a leste de Malanje com uma área duas vezes a de Portugal continental, tenho memória dos acontecimentos e algumas dúvidas sobre o rigor da narrativa da historiadora. E nesta coisa da memória histórica, tão negativa é a omissão como a distorção dos factos.

Antes de tudo o mais, é importante realçar que o que ficou conhecido pela revolta da Baixa de Cassange não foi um conflito laboral em que trabalhadores de uma empresa fizeram greve. Foi a luta de uma população contra uma das formas mais vergonhosas de exploração colonial, que atingia o modo de vida e a subsistência básica de milhares de famílias de vastos territórios.

O modelo criado pelos belgas foi copiado pelo Estado Novo na década de 1930 em Moçambique, onde o algodão deixou de ser cultivado por empresas privadas que para isso tinham ao seu serviço trabalhadores negros (algodão branco) para passar a ser cultivado obrigatoriamente pelos habitantes de vastos territórios que eram concessionados a empresas, em regra de capitais estrangeiros (algodão negro). As concessionárias eram verdadeiros estados dentro do estado colonial e actuavam com a cumplicidade das autoridades administrativas e policiais portuguesas, normalmente sem respeito pela lei porque era necessário promover “a cultura obrigatória do algodão pelos indígenas por quaisquer processos que se reconheçam convenientes.” O modelo foi depois estendido a outras culturas e as concessões a empresas, em regra com capitais estrangeiros, eram consideradas pelo regime salazarista como uma forma moderna de capitalismo e foram usadas em grande escala em Moçambique.

As concessionárias tinham sob a sua jurisdição vastas áreas de concessão onde encarregavam as famílias residentes de plantar algodão. A cada uma destas famílias era atribuída uma determinada área de terreno para desbaste e cultivo, para o que lhes era fornecida a semente, cabendo à empresa concessionária a organização de mercados de venda e o monopólio da compra do produto final, ao preço que queriam.

A cultura obrigatória do algodão foi introduzida em Angola em Março de 1947, quando a Companhia Geral dos Algodões de Angola, um consórcio luso-belga criada em 1926 e conhecida por Cotonang, conseguiu uma concessão na vasta zona a Leste e Oeste de Malanje cobrindo uns 80 mil quilómetros quadrados, quase a área de Portugal. A outra firma, a Lagos & Irmão, foi também concessionada uma zona da extensa planície ao longo do rio Cuango. Os agricultores africanos, uns 150 mil organizados em 35 mil famílias, eram coagidos a cultivar cerca de 5 mil toneladas por ano de algodão que tinham de vender à Cotonang e à Lagos & Irmão, a preços fixos, abaixo dos do mercado, num valor 5 a 6 vezes menor do que o preço mundial. Não havia salários para o seu trabalho e os riscos da colheita eram involuntária e integralmente assumidos por eles.

Com a independência do Congo Belga em 1960 e por influência de militantes do Parti Solidaire African (PSA) congolês, a população da Baixa de Cassange desencadeou acções contra os agentes das concessionárias e as autoridades portuguesas, em especial a partir de Janeiro de 1961. A repressão da Pide, do Exército e da Força Aérea durante o mês de Fevereiro foi violenta e a revolta foi neutralizada em Março. Quatro meses depois saiu uma lei que acabou com a cultura obrigatória do algodão, dando um golpe importante nas companhias concessionárias.

É interessante notar que é normalmente o lado português que considera a "Operação Cassange" como a primeira grande operação da Guerra do Ultramar. A "Operação Cassange" foi realizada pelo "Batalhão Eventual de Caçadores" do Exército comandado pelo General Monteiro Libório que delegou no Major Rebocho Vaz e composto pela 3.ª, 4.ª e 5.ª CCEs (Companhia de Caçadores Especiais), com o apoio da Força Aérea. Certamente que a revolta influenciou acontecimentos futuros, mas parece pouco rigoroso afirmar que a guerra colonial começou com os massacres (não apenas um massacre) das populações da Baixa do Cassange, massacres cujos contornos e dimensão não são conhecidos ao certo.



As operações militares de repressão na Baixa de Cassanje foram estudadas e descritas por vários investigadores. Tudo indica que não foi usado napalm (só terá sido a partir de meados de 1961 noutras regiões), mas houve de facto a intervenção da Força Aérea com aeronaves para fazer fogo e lançar granadas incendiárias sobre grupos de revoltosos e aldeias.

Sabe-se que foram mortos muitos africanos em várias acções repressivas, mas o número exacto, tenha sido mil, cinco mil ou dez mil, será sempre uma incógnita. Parece também ser possível afirmar que a rebelião teve um carácter espontâneo e localizado e talvez por isso nenhum dos movimentos de libertação angolanos tenha reivindicado a autoria da acção. No entanto, há hoje quem procure recuperá-la como a génese da luta pela libertação que se seguiu nas antigas colónias portugueses.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

As camaratas da Escola Naval

 


Esta fotografia de Mário Novais da colecção da Fundação Calouste Gulbenkian foi tirada em 1935 ou 36, durante a construção do edifício de comando e das salas de aula da Escola Naval. Os edifícios do refeitório, da biblioteca e do internato já estavam construídos e provavelmente o fotógrafo resolveu registar a imagem de uma camarata pronta, à espera dos futuros ocupantes.

Quando há 50 anos entrei na Escola Naval, pude constatar que as camaratas não sofreram uma grande evolução durante três décadas e meia. As mesmas paredes despidas, os mesmos lavatórios, os mesmos armários, as mesmas secretárias. Observando a fotografia, só consigo detectar duas diferenças: as camas originais foram substituídas por beliches duplos para alojarem mais cadetes e instalaram um aquecedor do sistema de aquecimento central debaixo do parapeito da janela.

Para os cadetes, o aquecedor junto à janela tinha duas funções importantes: uma óbvia, atenuar o frio do inverno e secar a roupa (a chuva civil não molhava os militares, mas molhava a nossa roupa), e uma outra bem menos óbvia. É que fazer a barba com a água gelada dos lavatórios era desconfortável e por isso usávamos a purga do aquecedor para obter água quente.

Nunca falei com encarregado, mas imagino que teria de repor o nível de água da instalação todas as manhãs pois não seriam poucos os que usavam a mesma técnica para obter um barbear mais confortável. E quando mais tarde aprendi que se adicionava óleo solúvel aos circuitos de aquecimento, percebi que não era só a água quente que facilitava o escanhoar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Kurika e Dulcineia

Há 60 anos, na noite de 21 para 22 de Janeiro de 1961, um grupo de activistas políticos constituído por 12 portugueses, 11 espanhóis e 1 venezuelano, comandados pelo ex-capitão do Exército português Henrique Galvão e pelo ex-suboficial da Marinha de Guerra espanhola republicana e combatente da Guerra Civil de Espanha José Fernandéz Vásquez, conhecido como Jorge de Sottomayor, sequestrou o navio de passageiros português “Santa Maria” no mar das Caraíbas, pouco depois de largar de Curaçau com destino a Miami.

Inspirado pela personagem feminina da obra de Cervantes, Henrique Galvão escolheu o nome de código “Dulcineia” para a operação porque, segundo ele, “também éramos românticos lutando por nossa dama – a Liberdade”.

O objectivo político da operação “Dulcineia” era atrair a atenção da opinião pública internacional para a situação sociopolítica dos povos sujeitos às ditaduras ibéricas. O objectivo operacional era um ataque de surpresa à ilha de Fernando Pó e à Guiné Equatorial, para obtenção de munições e de outro material de guerra, incluindo canhoneiras e aviões, e o posterior desembarque em Angola, com o apoio de forças rebeldes locais (sobretudo em Luanda, Benguela e no Lobito). Seguir-se-ia a constituição, em Luanda, de um governo hostil ao regime de Salazar, pois Henrique Galvão estava convicto de que poderia derrubar o regime a partir de África.

Quando no dia 24 a censura deixou que fossem divulgadas as primeiras notícias sobre o assalto ao “Santa Maria”, o regime de Salazar apresentou-o como um ignóbil acto de pirataria executado por um bando de indivíduos de várias nacionalidades com derramamento de sangue e a morte do piloto Nascimento Costa que não chegou a conhecer a filha recém-nascida. Foi logo dito aos portugueses que o “Santa Maria” estaria a ser perseguido por navios de guerra ingleses e americanos.

São bem conhecidos os detalhes do que se passou até ao dia 17 de Fevereiro, quando o “Santa Maria” atracou no cais da Rocha do Conde de Óbidos, saudado por uma multidão e pelo próprio Salazar, que proferiu a célebre frase: "Obrigado, portugueses. O Santa Maria está connosco."

O laconismo de Salazar não terá resultado apenas do facto de o sequestro do “melhor navio português e um motivo de orgulho da navegação comercial” ter sido realizado por quem foi um dos seus mais fiéis apoiantes antes de se tornar o seu mais temível inimigo; nem do facto de os principais aliados de Portugal não terem considerado o sequestro do navio como um acto de pirataria e não terem actuado militarmente contra os sequestradores. Muito provavelmente Salazar já tinha a percepção que a acção quixotesca de Henrique Galvão poderia ser o primeiro de uma série de acontecimentos nefastos para o seu regime.

De facto, 1961 foi o anno horribilis da ditadura salazarista, com uma sucessão de acontecimentos de que nunca se recomporia: em Janeiro, foi a revolta da Baixa do Cassange em Angola e o sequestro do "Santa Maria"; em Fevereiro, foi o assalto às prisão e esquadra da polícia em Luanda; em Março, foram os massacres no norte de Angola pelas forças da UPA; em Abril, foi a tentativa de golpe de Estado perpetrada pelo então ministro da Defesa, general Júlio Botelho Moniz; em Agosto, foi a expulsão da Fortaleza de São João Baptista de Ajudá pelas tropas do Benim; em Novembro, foi o desvio de uma aeronave da TAP em voo entre Casablanca e Lisboa que sobrevoou Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, lançando milhares de panfletos contra o regime salazarista, e retornando incólume a Casablanca; em Dezembro foi a invasão militar pela União Indiana dos territórios que constituíam o designado Estado Português da Índia; e, finalmente, na noite de passagem de ano, foi a intentona militar fracassada de Beja.

É certo que para Henrique Galvão os resultados da operação “Dulcineia”, mal planeada e pior executada, com os líderes e os participantes a discutirem a forma de tomar a ponte do navio até poucos minutos antes do início da acção, ficaram muito aquém do sonhado. Sem tropas, sem recursos financeiros e sem o apoio que esperava dos EUA apenas porque o seu projecto político era marcadamente anticomunista, teve de desembarcar no Recife e, com os companheiros de aventura, pedir asilo político ao Brasil. Restou-lhe a consolação de ter atraído a atenção da opinião pública internacional, ao ponto do recém-empossado Kennedy se ter referido ao sequestro do “Santa Maria” nas duas primeiras conferências de imprensa como presidente dos EUA.

Para mim, que só conhecia Henrique Galvão como autor do primeiro romance de que me lembro de ler e gostar muito, tudo o que ouvia sobre a operação “Dulcineia” e o seu mentor foi profundamente perturbador. Não conseguia perceber como é que o escritor do romance “Kurika” podia ser um bandido!

O Kurika de Henrique Galvão é um pequeno leão órfão recolhido pelo negociante branco Conceição e criado no convívio com os homens, juntamente com o cão Janota e a macaca Paulina que o adoptaram, ele como irmão e ela como filho. Aos 21 meses, movido pelo desejo instintivo de liberdade e ajudado pela Paulina, conseguiu libertar-se e fugiu para o mato, atravessando o rio que separava a casa do Conceição da vida selvagem. No seu meio natural, Kurika transformou-se num imponente leão, sem se esquecer do passado junto dos que o criaram.

Consciente de quanto lhe custaria a liberdade, Kurika trocou o conforto da casa e a comida abundante por uma vida incerta e uma subsistência difícil. Preferiu passar fome e dificuldades a viver amarrado a uma coleira. Esta ideia é repetida ao longo de toda a narrativa, não só através da descrição das dificuldades vividas pelo leão e pela macaca nos primeiros tempos na savana angolana, como também no final do romance, quando Kurika recusa voltar para casa do Conceição por causa da coleira: “Se não fora a coleira e a corrente de ferro – quem sabe! – talvez seguisse a tentação do Janota.

Só bem mais tarde percebi a coerência do pensamento do autor do romance “Kurika” e da operação “Dulcineia”. Percebi com Saramago que, Dulcineia, "do sangue de Quixote te alimentas, da alma que nele morre é que recebes a força de ser tudo."

Mas também aprendi o conselho de José Gomes Ferreira em “A Morte de D. Quixote”:

Dulcineia, Dulcineia,
deixe de ser Ideia
e torne-se a carne e a alma
da nova luta.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A minha crónica dos bons malandros

 

Wilson “Sabu” no julgamento

Teria uns quinze anos quando conheci os irmãos Ormonde. Conheci bem o João, da minha idade, não tão bem o José João, quatro ou cinco anos mais velho do que nós.

Os pais Ormonde dos Santos eram proprietários e dirigiam Colégio Nuno Álvares que funcionava num prédio da praceta João do Rio, perto do Areeiro. Moravam na rua Carlos Mardel e o João, como estava muitas vezes de castigo e proibido de sair de casa, pedia-me para lá ir. Provavelmente o pai, um senhor austero e de poucas palavras, considerava que eu seria uma boa companhia para o filho e autorizava a minha presença.

O João tinha perdido uma vista numa brincadeira em criança. Julgo que se sentia complexado por isso e tinha alguma tendência para a asneira. O José João juntava-se a nós de vez em quando, mas sinceramente não tenho grandes recordações dele.

Quando o João tinha autorização paterna para sair, juntava-se ao grupo que se reunia no jardim da praceta João do Rio. Dali partíamos para as incursões a locais mais ou menos recomendáveis, numa descoberta do mundo por jovens adolescentes de origens sociais muito diversas.

Um dos nossos companheiros de aventura, o Joninho, morava na rua Actor Isidoro. Sonhava emigrar para os EUA, tinha uma irmã um pouco mais velha, a Olga Maria e uma mãe simpática, a Dona Suzette. No processo de reunir forças, passávamos muitas vezes pela casa dele sem me aperceber que houvesse uma relação especial dos irmãos Ormonde com a família Coelho.

Os anos passaram e cada um seguiu o seu caminho. Quando mudei para Carcavelos, perdi o contacto com a malta da praceta João do Rio e deixei de ter notícias do João, do José João, da Olga e da Dona Suzette. Até ao assalto da dependência da Pinto de Magalhães Banqueiros (Banco Pinto de Magalhães) na Avenida de Roma, no dia 21 de Junho de 1971, já eu estava na Marinha.

Perto do meio-dia, pouco antes do encerramento para o almoço, quatro homens entraram na agência bancária armados com dois revólveres e uma pistola-metralhadora. Imobilizaram o polícia e tiraram-lhe a arma, taparam as cabeças dos clientes e funcionários com sacos de pano com a palavra “Pão” bordada a cores, meteram cerca de 2 mil e quinhentos contos numa mala e saíram sem ninguém ter percebido para onde foram.

O subgerente, que se escondeu na casa de banho e tinha uma arma, teve medo de aparecer durante o assalto. Quando percebeu que já não havia perigo, veio para a rua e disparou sobre um carro que alguém apontou como dos assaltantes. O condutor, um oficial de Marinha, não gostou da façanha e apresentou queixa à polícia.

A avenida de Roma foi isolada, a PSP, a PJ e a DGS vasculharam toda a zona e foi reforçada a vigilância das fronteiras terrestres e aéreas. Traçavam-se os cenários mais mirabolantes, mas ninguém fazia ideia do paradeiro dos assaltantes e do dinheiro. Até que o telefonema de uma mulher para a PSP esclareceu o caso e levou à detenção dos assaltantes.

Todos ficámos a saber que o assalto foi planeado pelo José João e executado pelo João e três cúmplices aliciados para o efeito!

Meses antes, os irmãos Ormonde contrataram o bate-chapa e ex-marinheiro Wilson Filipe “Sabu”, uma figura do Bairro Alto e do Intendente, para ajudar nas aulas de Educação Física no colégio Nuno Álvares onde o já Dr. José João era subdirector. Não tardou muito que lhe propusessem o assalto e lhe pedissem que contratasse dois cúmplices: o António “Choco” ou “Feio”, engraxador no café Granada do Conde Barão e profissional da “vermelhinha”, e o Fernando Pio, ajudante de mecânico e antigo marinheiro.

O “Sabu”, o “Choco” e o Pio entraram na agência, neutralizaram os clientes, os funcionários e o polícia com um revólver e uma pistola-metralhadora de brincar (só um revólver e a arma que tiraram ao polícia eram a sério) e entregaram a mala com o dinheiro recolhido ao João que tinha ficado no exterior.

Depois do assalto, o “Choco” e o Pio, os dois “indivíduos aciganados” que segundo a descrição das testemunhas tinham “um aspecto terrível, com a barba por fazer, pareciam cadastrados”, foram à sua vida. O “Sabu” foi comprar um fato e cortar o cabelo enquanto o João foi a pé até à casa da Dona Suzette onde o irmão José João o esperava.

É que os irmãos Ormonde viviam agora em casa da Dona Suzette. O José João esteve noivo da Olga até poucos meses antes e instalou-se com o irmão em casa da família Coelho. Os irmãos chegaram mesmo a pedir 447 contos emprestados à Dona Suzette para abrir um restaurante que nunca se concretizou porque o José João preferiu comprar um Abarth 1300 por 100 contos. Com o rompimento do noivado com a Olga e a entrada em cena da Rosalina, convidada pelo José João para viver na casa da Actor Isidoro, a Dona Suzette exigiu o pagamento da dívida.

No final da tarde do assalto, os irmãos entregaram 25 contos à Dona Suzette com a promessa de que em breve lhe dariam mais 230 contos. Guardaram a mala com o dinheiro na despensa com a recomendação de que não deviam mexer porque tinha um frasco com um líquido perigoso que se podia entornar.

Logo que os irmãos saíram de casa, a curiosidade da mãe e da filha venceu o medo que tinham dos irmãos que se intitulavam viscondes. Foram bisbilhotar a mala e descobriram o dinheiro roubado.

Depois de conversarem durante alguns dias sobre o assunto com a vizinha Leonor e a porteira Encestina, decidiram telefonar à polícia. Do telefonema à detenção dos irmãos e cúmplices, foi um ápice. O dinheiro e as armas foram recuperados e o Abarth 1300 confiscado.

Realizado o julgamento, o José João foi condenado a 14 anos de prisão, o João a 12 anos, o “Sabu” a 7 anos e o “Choco” e o Pio a 6 anos cada.

Do João e do José João nunca mais ouvi falar. Do Wilson “Sabu” tive notícias em 1975 quando, libertado depois do 25 de Abril, liderou a ocupação da famosa herdade Torre Bela e a cooperativa que lá se constituiu. Vi-o discutir com o homem que não queria entregar a enxada à "comprativa". Morreu há menos de um mês, na véspera do Natal de 2020.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Aniversário de uma vitória diplomática

 

A primeira fragata da classe “Vasco da Gama” foi entregue à Marinha no dia 18 de Janeiro de 1991 nos estaleiros da Blohm+Voss, em Hamburgo, faz hoje precisamente 30 anos. Tendo feito parte da missão de acompanhamento da construção daquelas fragatas, não podia deixar passar o aniversário sem partilhar uma memória desse dia, naturalmente importante para mim.

A fase final da construção da “Vasco da Gama” tinha sido atribulada. A entrega do navio atrasou dois meses relativamente ao estabelecido contratualmente, um mês em consequência de uma alteração da especificação contratual pedida pela Marinha e outro por causa de um forte temporal poucas semanas antes do Natal de 1990. O domo do sonar foi danificado durante a noite de tempestade e o navio teve de ser docado para a sua reparação. O aprestamento final foi feito em condições muito adversas e nem tudo estava pronto no dia da entrega.

Depois da cerimónia oficial e da entrada da guarnição portuguesa a bordo, o estaleiro organizou uma recepção para os participantes e convidados. Estava a atacar o primeiro croquete quando o Almirante Isaías Gomes Teixeira, chefe da missão, se aproximou e ordenou: “Bettencourt, vá saber o que se passa porque o Comandante queixou-se que os alemães não deixam o pessoal entrar nos compartimentos do navio.” Tínhamos enfrentado muitas adversidades ao longo dos quatro anos do projecto e da construção do navio mas uma disputa territorial era a última que podíamos esperar no dia da entrega à Marinha.

Lá fui a bordo saber o que se passava e deparei com um grave conflito luso-alemão: o Herr Spät, o funcionário do estaleiro responsável pela organização dos chaveiros do navio continuava o seu trabalho e, indiferente aos protestos da guarnição, recusava entregar as chaves dos compartimentos antes de terminar a tarefa. O diálogo era impossível porque o Herr Spät não falava (ou não queria falar) inglês e os elementos da guarnição não falavam alemão.
 
A minha chegada atenuou a tensão e o Herr Spät esboçou um sorriso quando me viu. Negociei um prazo para a entrega dos chaveiros ao oficial da guarnição que ficaria responsável por eles e o Herr Spät cumpriu rigorosamente o acordado.

E eu hoje celebro o trigésimo aniversário de uma importante vitória diplomática!