quarta-feira, 30 de agosto de 2023

O ardil da memória

 

Aprendi muito jovem a questionar as testemunhas de eventos passados que afirmam categoricamente: “Creiam em mim, eu estava lá!” Essa desconfiança é maior quando se trata de eventos extraordinários ou traumáticos, como guerras ou revoluções.

Um exemplo da guerra é o combate do “Augusto Castilho” contra o cruzador submersível alemão U-139. A narrativa oficial, consagrada na História, privilegiou o heroísmo dos doze elementos da guarnição que chegaram à Ponta de Arnel, no nordeste de São Miguel. Os outros, que foram para Santa Maria no salva-vidas do navio, foram retratados como menos corajosos e disciplinados. Foi assim que percebi o porquê do meu Avô não gostar de falar do combate em que participou. Ele achava que a história oficial não era rigorosa, mas não tinha poder, nem vontade, de a contestar.

Um exemplo de revolução é o 25 de Abril. Apesar do trabalho de historiadores competentes para analisar os antecedentes e a execução do golpe militar, acredito que a narrativa que prevalecerá, sobretudo nas comemorações do cinquentenário, será a dos que sabem comunicar melhor as suas memórias pessoais, tenham ou não estado lá. O problema é que quem os ouve ou lê confunde muitas vezes a História com essas memórias pessoais, esquecendo-se de que elas não correspondem à impressão original dos eventos reais na mente de quem as transmite, mesmo que os tenha vivido ou observado, nem representam a verdade histórica desses eventos.

Na realidade, sabemos hoje que as nossas memórias pessoais são construídas pela interação com outros indivíduos, quase sempre no seio de grupos sociais particulares, e que cada um de nós não controla totalmente o processo de recuperação do passado mais distante. A memória pessoal é um produto da interação social, que molda as recordações individuais de acordo com os grupos a que pertencemos. Mesmo que acreditemos que a nossa memória é puramente pessoal, baseada em experiências únicas que vivemos ou testemunhamos, a verdade é que a memória individual se transforma em coletiva ao longo do tempo, devido aos acréscimos e esquecimentos que resultam das diversas interações sociais.

Cada pessoa percebe o mundo, e o passado, através de construções coletivas como a linguagem. Além disso, a seletividade da memória, reforçada pelas narrativas, faz com que os mesmos factos não sejam lembrados da mesma maneira em diferentes momentos. Tudo isso gera um equívoco persistente entre o conhecimento histórico e a memória e torna ilusório alguém pensar que a sua memória representa a verdade histórica sobre qualquer assunto.

A memória de cada um de nós, tenhamos ou não consciência disso, foi influenciada e afetada pelas interações sociais, ao longo dos anos. As recordações são de facto narrativas e, como tal, são inevitavelmente seletivas. Se não somos capazes de nos lembrar de tudo, somos ainda menos capazes de narrar tudo; a ideia de uma narrativa exaustiva é um absurdo.

Por isso, as atitudes de apropriação do passado histórico pelos que usam o argumento irrefutável de que “Eu estava lá!”, são muito prejudiciais. A ideologização da memória, e todas as formas de manipulação da mesma natureza, tornaram-se possíveis exactamente através da elaboração de narrativas que alimentam a memória coletiva.

E é difícil separar a responsabilidade pessoal dos actores individuais, da das pressões sociais que actuam subterraneamente na memória coletiva, seja ela sobre um combate naval da Primeira Guerra Mundial, seja sobre o que aconteceu antes e durante o 25 de Abril de 1974.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Lugares



Texto escrito e lido pela Catarina na despedida da Avó:

A árvore está enraizada no cimo de um monte perto de uma aldeia perdida no orgulho de quem por lá vive, caiando as casas, podando os pomares e canteiros, mantendo as ruas para que quem os visite, encontre um lugar acolhedor e belo.

Ao som dos sinos da pequena capelinha os netos sobem à vez para o baloiço artesanal pendurado na oficina da casa. O avô encontra em todos os objectos e pequenos seres uma forma de explicar a vida. A avó atarefa-se nos infindáveis afazeres domésticos, que dão ordem e paz ao dia-a-dia. Os netos vivem cada experiência como uma aventura inesquecível e percorrem os trilhos e montes, descobrindo infortunados sapos e frutos apetecíveis.

A casa tem uma adega, símbolo e memória de outros tempos, onde se pisavam as uvas de pés descalços e se cantavam músicas da terra para marcar compassos. Nas salas permanecem molduras imóveis com imagens imóveis de quem deixou marcas e foi marcado pela vida. Num corredor existe uma pequena porta com umas pequenas escadas até um pequeno sótão, onde de uma pequena janela surge, ao longe, a árvore enraizada no cimo do monte.

Quando a lua aparece e o sol se despede, os netos trepam o monte e sentam-se na copa da árvore. Ali encontram a serenidade do campo e o cheiro da terra. Partilham a descoberta da imensidão da paisagem visível a partir daquele lugar e sabem que, aquele é, apenas o início.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

A nossa força

 


Pela sua força interior, pela sua perseverança, pelo seu gosto de viver, pela sua entrega aos outros, foi sempre o nosso exemplo.

Alguém disse que tal como num conto, na vida não é a duração que importa, mas a sua qualidade. A minha mãe conseguiu juntar a qualidade à duração e isso fez dela um ser humano excepcional.

Viveu com o meu pai o mais belo romance de amor. Deu o melhor de si aos dois filhos. Inquietou-se com os seis netos e os doze bisnetos. Foi a amiga com que todos podiam contar.

Sentia-se feliz quando podia ser útil aos outros. Essa foi a força e a lição de vida da minha Mãe!

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Anamnese



Quando em Agosto de 1977 viajei para a Califórnia com a João e a Joana, mais precisamente para Monterey, sabia que seria uma mudança significativa na nossa vida. Profissionalmente, ia fazer uma pós-graduação de mais de dois anos e teria oportunidade de conhecer o que de mais avançado se investigava e realizava em engenharia. Familiarmente, era o desafio de vivermos um longo período num país muito diferente do nosso, numa sociedade que mal conhecíamos e afastados de tudo a que estávamos habituados. É certo que teríamos o conselho dos quatro camaradas que já lá estavam há um ano e o apoio do sistema social da Marinha dos EUA. Mas o desconhecido e os condicionalismos financeiros que a desvalorização do escudo tinham criado, faziam com que a mudança fosse uma aventura.

Fomos morar numa pequena moradia com relvado à volta no bairro de La Mesa, na periferia de Monterey, onde éramos conhecidos como os pais da Joana. Como não era possível viver na Califórnia sem carro, optámos por um velho e muito rodado VW 1600 Fastback adquirido com um empréstimo do banco local, em vez dos enormes consumidores de gasolina “made in USA”, símbolos de uma indústria que então já estava ferida de morte pelos choques petrolíferos. Passámos também a auferir dos múltiplos serviços de apoio à família militar – “Exchanges”, saúde, etc. – que caracterizam o sistema militar norte-americano e foi assim que, pouco mais de um ano depois, a Catarina nasceu no Silas B. Hays Army Hospital, em Fort Ord, “Home of the 7th Infantary Division”, a pouco mais de 9 milhas (15 km) da nossa casa.



Academicamente, passei a preocupar-me em aprender tudo o que fosse possível sobre a optimização das instalações motoras baseadas nos ciclos de Brayton, as para mim novidade turbinas a gás, e de Diesel, os já bem conhecidos motores de combustão interna que equipavam a esmagadora maioria dos navios militares portugueses. Tratava-se de preparar um futuro que se previa dominado por aquelas tecnologias, assim como pela electrónica dos sistemas de automação. Todo o meu quadro mental foi condicionado para exercer a profissão num mundo de motores de combustão interna de combustíveis fósseis, em que o principal objectivo era maximizar o rendimento, a segurança e a fiabilidade das instalações, com emissões ambientais mínimas.
 
Quando ainda antes dos graves acidentes de Three Mile Island e Chernobil já se contestava o nuclear (lembram-se de Ferrel?), os estudantes de engenharia eram preparados para um futuro dominado pelos combustíveis fósseis como fonte principal de energia. A central de produção de energia eléctrica de Moss Landing, a menos de 20 milhas de Monterey, com duas instalações de vapor de ciclo supercrítico, era apresentada nos livros de termodinâmica como um exemplo de inovação. E mesmo quando uns anos mais tarde foi modernizada, a opção foi instalar duas novas unidades de ciclo misto de turbinas a gás e melhorar o controlo de emissões, sem abandonar os hidrocarbonetos como fonte de energia.


Foi este o mundo para que me preparei. E foi nele que exerci a profissão de engenheiro mecânico durante mais de duas décadas e em que o cume terá sido o projecto e a construção das fragatas da Classe “Vasco da Gama”, com motores Diesel e turbinas a gás exemplarmente eficientes e fiáveis. Mesmo na vida privada e apesar das artimanhas electrónicas da VW para viciar os valores das emissões dos motores automóveis, habituei-me a confiar na fiabilidade e na resistência dos motores Diesel. Fiabilidade e resistência que os motores eléctricos, apesar de terem apenas 1% do número de peças móveis dos motores de combustão interna, ainda não atingiram.

Passado quase meio século, o mundo alterou-se profundamente. Os donos do mundo condenaram os motores de combustão interna, em especial os Diesel, a desaparecer nos automóveis e com eles toda a estrutura de abastecimento e reparação, com a inevitável eliminação de milhões de postos de trabalho. E determinaram que o futuro pertence aos veículos com motores eléctricos e, imaginem, ao nuclear, para fazer face à procura de energia eléctrica.
 
Estou certo de que em Monterey também muito se terá alterado relativamente ao que encontrámos em Agosto de 1977. Há alguns anos confirmei no local que a nossa casa já não existe. Sei também que o hospital de Fort Ord onde a Catarina nasceu, assim como a base do Exército norte-americano, foram encerrados. E sei que a central de Moss Landing é hoje uma enorme instalação de baterias de lítio da Tesla, ligada à rede eléctrica da Califórnia.

  
Da antiga central, sobram as duas chaminés que em 1977 já eram usadas pelos pescadores como pontos conspícuos em terra.