terça-feira, 24 de junho de 2025

Edifício Arte Contínua - Memória


Desenho de Eduardo Salavisa

Há cinco anos, abruptamente, o sonho terminou.


Em 3 de Outubro de 2019, três semanas antes de deixar o cargo, a Secretária de Estado da Defesa Nacional do XXI governo de António Costa e do Ministro da Defesa Nacional João Gomes Cravinho, assinou um protocolo entre o Ministério da Defesa Nacional (MDN) e o Município de Oeiras (CMO) que previa a futura cedência pelo primeiro ao segundo do edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, junto à praia de Santo Amaro de Oeiras, para instalação de um “Centro de Interpretação da Barra” cujo director seria “nomeado pelo Ministério da Defesa Nacional, o qual asseguraria a respetiva remuneração.” Nesse protocolo, que foi celebrado pelo prazo de um ano, prorrogável por iguais períodos, o Município de Oeiras comprometeu-se a assegurar desde logo a segurança, conservação e manutenção do edifício.


Na prática, depois da assinatura do protocolo com o MDN e do convite público ao Dr. Boiça para coordenar o "Centro de Interpretação dos Fortes de Defesa da Linha de Costa Aqui de Lisboa, no dito Forte do Areeiro, que não é forte...", em 19 de Outubro de 2019, a CMO comprometeu-se a manter o estado em que o edifício lhe foi entregue pela associação cultural “Colectivo a Postos” em Junho de 2020, depois da interrupção do projecto Edifício Arte Contínua que o Vice-Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, numa intervenção na sessão da Assembleia Municipal de Oeiras do dia 18 de Fevereiro de 2020, desvalorizou e caluniou.


Aquele senhor, de nome Emanuel Francisco dos Santos Rocha de Abreu Gonçalves, na intervenção na sessão da Assembleia Municipal difundida em directo para todo o mundo através da Internet, decidiu tecer considerações sobre o projecto Edifício Arte Contínua e sobre a associação cultural sem fins lucrativos “Colectivo a Postos”, de que fui membro fundador e cujos órgãos sociais integrei, que o dinamizou no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa.

O Vice-Presidente da CMO afirmou ou deu a entender:
  • Que a CMO só foi convidada a ter um papel activo na utilização e conservação do edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa depois do protocolo que assinou com o MDN em Outubro de 2019; 
  • Que desconhecia o papel dos serviços da CMO na concepção e arranque do projecto Edifício Arte Contínua em 2018; 
  • Que não teve conhecimento da intervenção realizada pelo “Colectivo a Postos” e pelos seus parceiros, na fase inicial com o apoio da CMO, para a recuperação do edifício e do espaço envolvente depois de uma década de abandono, saque, vandalismo e ocupação com práticas degradantes; 
  • Que não sabia que a CMO foi informada de todas as iniciativas e propostas para que o projecto Edifício Arte Contínua e as suas iniciativas tivessem a mais ampla participação de todas as entidades públicas, privadas, de solidariedade social e associativas do Concelho de Oeiras, incluindo a própria CMO; 
  • Que desconhecia que nada foi realizado no edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa sem conhecimento do proprietário e da CMO; 
  • Que ignorava que a direcção do “Colectivo a Postos”, depois de ter conhecimento, através das redes sociais, da assinatura do protocolo com o MDN, se reuniu com a presidência da CMO para discutir e definir o futuro do projecto Edifício Arte Contínua
  • Que desconhecia que o responsável pela cultura da CMO informou o “Colectivo a Postos” que o projecto Edifício Arte Contínua poderia permanecer no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa até Junho de 2020.
Apesar de tudo o que sabia, ou devia saber, o Vice-Presidente da CMO resolveu tecer publicamente considerações surpreendentes sobre o projecto Edifício Arte Contínua e a associação “Colectivo a Postos” que o dinamizava, considerações essas falsas ou caluniosas.

Depois de uma vida e de uma carreira profissional que procurei que fosse exemplar como cidadão, militar, democrata e homem de bem, foi preciso chegar aos setenta anos para que um político que tem idade para ser meu filho e não me conhecia de lado nenhum, ousasse insinuar publicamente, entre outros dislates, que não cumpri as regras e a lei; que fiz um “gato” ou baixada eléctrica da rede pública, que roubei água sabe-se lá de onde e que ocupei ilegalmente um edifício público, sem autorização do proprietário, no caso o Ministério da Defesa Nacional.
 
E o problema é que as insinuações caluniosas do Vice-Presidente da CMO não atingiram só a mim. Atingiram, em especial, as minhas filhas, os meus amigos e os inúmeros cidadãos que comigo e, principalmente, com as minhas filhas, se esforçaram para, num acto singelo e desinteressado de cidadania, prestar um serviço à comunidade e contribuir para a construção de uma sociedade melhor.

Posteriormente, em Maio de 2021, ano de eleições autárquicas, a CMO promoveu a exposição 'Fortificações de Oeiras - Património do Tejo e do Mundo' no Centro Cultural no Centro Cultural Palácio do Egipto. Constatei então que a imagem do que antes era uma quase ruína e foi recuperado por iniciativa da associação “Colectivo a Postos”, serviu de cenário para uma operação de propaganda do executivo da CMO. Nela foi anunciado que o edifício seria o "núcleo central" de um futuro “Museu do Tejo”.


Mas malgrado os discursos dos responsáveis da CMO, hoje, mais de cinco anos depois da CMO assumir a guarda do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa e pôr fim ao projecto Edifício Arte Contínua, a realidade é bem diferente do prometido.

O edifício militar que foi primeiro Bateria e depois Posto de Vigilância durante o século XX, foi abandonado, vandalizado, saqueado e ocupado por marginais durante boa parte da segunda década do século XXI. Por iniciativa da associação “Colectivo a Postos” e na sequência de um acordo com o MDN, o edifício foi reabilitado com o projecto Edifício Arte Contínua

Dinamizado por cidadãos que voluntariamente, com sacrifício dos tempos livres e sem nenhuma contrapartida financeira ou de qualquer outra natureza, o projecto Edifício Arte Contínua recuperou o espaço e realizou uma série impressionante de eventos culturais com a participação de muitas centenas de jovens e menos jovens.



Em Outubro de 2019 estava caiado a amarelo por fora e a branco por dentro. Tinha 25 chaves de portas de espaços e salas limpas e recuperadas por miúdos e graúdos. Tinha nele mais História guardada.

Desenho de Eduardo Salavisa

Durante um ano foi uma "casa que não se quis margem, mas antes convergência, encontro e centro", vivenciados na recuperação, na preparação das iniciativas mensais, nas contribuições de todos aqueles que ali criaram e deram de coração. Permitiu que centenas de alunos encontrassem os poetas à beira-mar. Abriu as portas à fruição do teatro, da literatura, da pintura, da escultura, da ilustração, da música, da arte, por todos os que quiseram entrar. Sentiu o mar e ensinou a navegá-lo. Celebrou a liberdade, a cidadania e o 25 de Abril.

Com a assinatura do protocolo entre o MDN e a CMO, terminou o projecto Edifício Arte Contínua. E cinco anos depois do espaço ser entregue à guarda da CMO, voltou a estar abandonado, degradado e vandalizado. Desta vez ainda mais do que antes!

Vale a pena espreitar o edifício quase irreconhecível com janelas e portas emparedadas, junto à Marginal, a oeste da praia de Santo Amaro de Oeiras, entre o parque de estacionamento automóvel e o Forte de Santo Amaro ou do Areeiro. Terão oportunidade de constatar a degradação do património público que um dia foi motivo de orgulho dos muitos adultos, jovens e crianças que viveram o sonho do projecto Edifício Arte Contínua.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Emigrantes envergonhados

 


Na mais recente edição das conversas “Olhos nos Livros: Palavras de Costa a Costa” organizadas pelo meu amigo Diniz Borges e pelo Portuguese Beyond Borders Institute que dirige na Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno, participaram, para além do próprio Diniz Borges, o professor José Luís da Silva, na Califórnia, e a professora Manuela Marujo, que leccionou no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Toronto entre 1985 e 2017 e onde, actualmente, é Professora Associada Emérita.

Para além da habitual e sempre interessante resenha de livros sobre a experiência da emigração portuguesa na América do Norte, designadamente nos Estados Unidos e no Canadá, desta vez os participantes terminaram com uma reflexão sobre a forma como portugueses, no território nacional, encaram a emigração que continua a engrossar as comunidades de quatro milhões de portugueses e luso-descendentes espalhadas pelo mundo.
 
A professora Manuela Marujo, depois de lamentar a inexistência em Portugal de um centro de estudos da emigração onde fosse possível aos investigadores e aos jovens que fazem mestrados e licenciaturas sobre aquela temática, consultar os livros e ensaios publicados no seio das comunidades emigrantes e encontrar referências sobre os processos de integração social e de preservação da identidade cultural, da língua e cultura portuguesas, que essas comunidades asseguraram e asseguram, na esmagadora maioria dos casos sem qualquer apoio do governos em Portugal, procurou reflectir sobre as razões do desinteresse pelo estudo da emigração em Portugal.
 
A professora Manuela Marujo notou que, neste momento, todas as suas amigas em Portugal continental têm os filhos no estrangeiro, um na Holanda, outro na Itália, outro no Dubai. Mas apesar da emigração continuar, ninguém se considera emigrante. E quando esteve numa universidade da terceira idade e disse “sou emigrante há 40 anos,” as pessoas olharam para ela “assim um bocadinho incomodadas,” e perguntaram: “Quer dizer, a professora…, é professora, não é?” Emigrar e emigrante são palavras que as pessoas não querem usar. “Ninguém usa a palavra emigrada.”

De facto, hoje ninguém que sai de Portugal para ir trabalhar no estrangeiro, é emigrante. É “residente no estrangeiro” ou “expatriado”. Para os portugueses de hoje, possivelmente vítimas do complexo da “mala de cartão da Linda de Suza” ou das condições de vida degradantes que Gérald Bloncourt tão bem soube captar com a sua câmara fotográfica, emigrantes eram os portugueses incultos que a pobreza e a ditadura salazarista empurraram para fora de Portugal; residentes no estrangeiro ou expatriados são os portugueses que actualmente, com os níveis de educação superior que o regime democrático de Abril proporcionou, vão procurar no estrangeiro as oportunidades de trabalho e realização pessoal e profissional que não encontram em Portugal.

Ou será, como admitiu a professora Manuela Marujo, que a negação da condição de emigrante é uma desculpa para a forma como tratamos os imigrantes? Ao não nos assumirmos como um povo emigrante, tratamos os outros como se fossem diferentes de nós.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Populismo e democracia

 

Resultados globais das eleições no território nacional

A relação entre populismo e democracia é complexa e desafiante. O populismo do Chega, semelhante ao que teve sucesso nos EUA e noutros países, utiliza os mecanismos da democracia representativa para tentar conquistar o poder, enquanto põe em causa os princípios e valores democráticos. Divide a sociedade em dois grupos antagónicos — o “povo puro” e a “elite corrupta” — e reivindica representar a vontade do “povo puro”, simplificando questões complexas e promovendo soluções rápidas, simplistas e autoritárias. Através de um discurso fácil de entender, fomenta a concentração do poder, ataca a imprensa livre e desvaloriza a importância do poder judicial. O populismo corrói a confiança pública e polariza a sociedade.

Instituições democráticas sólidas são a espinha dorsal da democracia, sendo crucial garantir a eficácia e independência do poder judicial, a transparência nos processos legislativos, nas ações governamentais, nas finanças públicas e nas decisões políticas, bem como a responsabilização dos representantes eleitos. É urgente realizar reformas institucionais que promovam o exercício da cidadania democrática. Uma cidadania bem informada é essencial para a democracia. Investir na educação cívica, ensinando os valores democráticos, os direitos e deveres dos cidadãos e a importância das instituições democráticas, pode criar uma população mais crítica e consciente. Além disso, a alfabetização mediática pode ajudar os indivíduos a reconhecer e resistir à desinformação e à propaganda populista.

Embora o populismo possa expor falhas e lacunas das democracias, é o seu maior inimigo. Por isso, é necessário defender o Estado de direito democrático consagrado na Constituição da República Portuguesa, o que exige um compromisso contínuo com o fortalecimento das instituições democráticas, a educação cívica, o diálogo pluralista e a transparência governamental. Infelizmente, este compromisso parece ainda não ter sido plenamente compreendido pelos partidos democráticos.

sábado, 17 de maio de 2025

Em dia de reflexão

 


A democracia é celebrada por muitos como o sistema político que melhor reflecte os desejos e necessidades dos cidadãos. No entanto, as suas complexidades e subtilezas são muito relevantes, especialmente quando se considera a participação e a representação no processo democrático.

A essência da democracia reside na soberania do povo, isto é, na ideia de que o poder emana dos cidadãos e deve ser exercido em seu benefício. Mas a democracia representativa consagrada na nossa Constituição não se limita apenas ao acto de votar. Ela inclui também a proteção dos direitos e liberdades individuais, a existência de um sistema judicial eficaz e independente e a garantia de que as decisões tomadas pelo governo, o são de maneira transparente e responsável.

Deste modo, a participação dos cidadãos é um dos pilares fundamentais da democracia. Envolve não apenas o direito de votar, mas também a possibilidade de os cidadãos expressarem suas opiniões, de se envolverem em debates públicos e influenciar as políticas governamentais. A participação activa dos cidadãos é essencial para garantir que o governo permanece responsivo e responsável. Sem uma participação efectiva dos cidadãos, a democracia corre o risco de se tornar uma mera formalidade, onde as eleições são realizadas, mas o verdadeiro poder permanece nas mãos de uma elite.

Por outro lado, a representação é um conceito central e é crucial para o funcionamento prático daquela democracia. Representar alguém ou “outrar”, exige uma relação próxima, consideração pelo outro e confiança. E compreende a "representação formal", que se refere ao sistema institucional pelo qual os representantes são escolhidos, e a "representação substantiva", que diz respeito à forma como os representantes realmente agem em nome dos representados.

Assim, a verdadeira representação política vai para além de simplesmente agir de acordo com a vontade dos eleitores. Inclui a capacidade de tomar decisões informadas e justas, mesmo que essas decisões não sejam populares no curto prazo. Este conceito é fundamental para entender a tensão entre a necessidade de os representantes darem resposta às exigências imediatas dos seus eleitores e a necessidade de tomar decisões que considerem o bem-estar a longo prazo da sociedade.

No entanto, a inter-relação entre democracia, participação e representação é complexa. A participação dos cidadãos é essencial para garantir que os representantes permaneçam identificados com as necessidades e desejos da população. Mas a representação também exige que os representantes tenham a liberdade de tomar decisões informadas, mesmo que essas decisões possam não ser imediatamente populares. Esse equilíbrio delicado é um dos principais desafios das democracias modernas.

Além disso, a exclusão de certos grupos da participação plena – seja por razões económicas, sociais ou culturais – pode minar a legitimidade e eficácia da democracia. Nunca é demais enfatizar a importância de garantir que todos os cidadãos tenham as mesmas oportunidades de participar e serem representados, de modo que a democracia possa realmente refletir a diversidade e complexidade da sociedade.

A democracia é um processo contínuo que exige a participação ativa e informada dos cidadãos, bem como uma representação responsável e justa. Somente através do equilíbrio entre esses elementos fundamentais podemos aspirar a uma sociedade verdadeiramente democrática e justa.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Carlos de Almada Contreiras



Este é o primeiro 25 de Abril em que não contamos com a tua presença física. Estávamos mal-habituados, porque sempre contámos contigo, mesmo antes do dia 25 de Abril de 1974.

Quando pela primeira vez discutiste os objectivos políticos do golpe militar com o Melo Antunes. Quando depois participaste na elaboração do Programa do MFA e assinaste a versão que julgavas final, mas que foi alterada por Spínola. Quando escolheste o sinal para o início das operações militares. Quando comandaste a intervenção da Marinha na sublevação e asseguraste a ocupação da DGS/PIDE e a libertação dos presos políticos.


Celebrar contigo o 25 de Abril era para nós tão natural como respirar. Por isso, Amigo e Camarada Carlos, sentimos muito a tua falta.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Mulheres mães, quase meninas



(Poema de Abril)

Parece um encontro marcado.

Às primeiras horas da manhã, no início do meu percurso, encontro na estação mulheres com filhos ao colo. Umas vão apanhar o comboio, outras desembarcaram e seguem as suas vidas.

São mulheres muito jovens, quase meninas. Pressinto que, como a Luísa do poema, saltaram da cama, sem alvorada, desembestadas; vestiram-se à pressa, pegaram nos filhos, saltaram para a rua; vão deixá-los e chegar ao trabalho, à hora marcada. Cumprem a rotina diária de muitas outras mulheres mães que só têm esta vida.

Sigo o meu percurso e encontro outras mulheres. Mulheres que são livres de andar, correr ou olhar o mar. Livres de fazer as suas escolhas, até mesmo a de não serem mães.

Mas a imagem das mulheres mães, quase meninas, acompanha-me no resto do meu percurso.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

O Paulo e a inclusão



Quando, há cerca de dois anos, entrei pela primeira vez nas modernas instalações daquela instituição de saúde, tudo me surpreendeu. A arquitetura do edifício, a decoração dos espaços, a simpatia dos assistentes que me receberam, a organização dos serviços, o rigoroso cumprimento do planeamento horário e o empenho dos profissionais de saúde que ali trabalhavam foram, para mim, uma experiência agradável.

Fiquei particularmente agradado com a forma como os serviços comunicavam comigo durante todo o processo de consultas, exames e tratamentos que lá passei a fazer. Quando chegava, era abordado por uma simpática assistente que, depois de confirmar o meu nome no tablet, entregava-me um telemóvel e dizia: "Faça favor de aguardar até ser contactado." Não havia senhas de espera, quadros de chamada ou nomes gritados como em outros serviços. Sentava-me onde queria até o telemóvel tocar e alguém me dizer para onde me devia dirigir. E o procedimento repetia-se até devolver o telemóvel no balcão de atendimento do último dos serviços por onde passava.

A rotina diária de tratamentos ao longo de várias semanas permitiu-me perceber o funcionamento do sistema. À medida que os telemóveis, levados pelos clientes, se dispersavam pelos diferentes serviços, era necessário recolhê-los e trazê-los para as entradas do edifício. Quem se encarregava dessa tarefa era um jovem adulto a que chamarei Paulo, para simplificar. De acordo com uma rotina pré-estabelecida, o Paulo percorria os corredores da instituição e recolhia, numa espécie de cabaz de plástico, as dezenas de telemóveis deixados nos balcões de atendimento dos serviços. Trajado a rigor, de fato e gravata, o Paulo caminhava rápido, compenetrado da sua função. Os sinais característicos da síndrome de Down não impediam que se pressentisse na sua face a satisfação com o trabalho que executava.

Quando as minhas idas à instituição se tornaram mais curtas e espaçadas e o que lá ia fazer passou a ser diferente, uma coisa permaneceu constante: a recepção do telemóvel à entrada e a observação do Paulo, concentrado e impecavelmente trajado, com o seu cabaz de recolha dos aparelhos. Até que, há dois dias, ao entrar, fui atendido por uma simpática assistente que me pediu o número do telefone e disse: "Faça favor de aguardar, ligarão para o seu telefone." Perguntei se já não entregavam telemóveis e a resposta foi: "Em caso de necessidade, sim, mas agora a regra é ligar para o seu número."

Correu tudo bem com a chamada para as análises, assim como correu bem ontem, com as chamadas para a consulta e o tratamento. O que estranhei foi não ter visto o Paulo, apesar de ter permanecido quase três horas em diferentes locais do edifício.

Desconfiado, fui assaltado pelo receio de que o Paulo tivesse sido vítima de uma qualquer manifestação da extrema-direita libertária contra os programas DEI (diversity, equity, and inclusion). É certo que estamos em Portugal, mas o contágio das teorias de Ludwig von Mises e das práticas da oligarquia tecnocrática, por elas influenciada, que assumiu o poder nos EUA, não pode ser menosprezado.

Por isso, ontem à tarde, em conversa com uma das simpáticas assistentes, tentei saber do Paulo. "Foi dispensado com a mudança da política de telemóveis?", perguntei. Respondeu que não, que está ocupado com outras tarefas, embora tenha reagido à diminuição do número de telemóveis que recolhia.

É provável que, no caso do Paulo, a alteração das suas funções tenha sido gerida com humanidade. Mas não pude deixar de pensar nos milhares de Paulos que, nos EUA e em outros países governados pela extrema-direita libertária, estão a sentir os efeitos do poder dogeano.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

A lição de Trump

 

Ilustração de João Fazenda na The New Yorker

Como português, não estou particularmente preocupado com a eleição de Trump, nem com a torrente de decretos controversos que traduzem a política de “choque e pavor” da extrema-direita nos EUA. Apesar de abominar o carácter primário, autoritário, nativista e xenófobo do populismo de Trump e da sua corte, entendo que é, acima de tudo, um problema dos EUA e dos quase 350 milhões de cidadãos norte-americanos e de residentes no seu território. Caberá a eles arcar com as consequências do voto em Trump de cerca de 77 milhões de cidadãos eleitores e aceitar, ou contrariar, as decisões daqueles a quem foi concedido o poder de governar nos EUA nos próximos anos.

Quanto à política externa da nova administração norte-americana e aos seus efeitos na Europa e no resto do mundo, duvido que haja um desvio relativamente ao que os EUA há muito definiram como estratégia de imposição e defesa dos seus interesses e de enfraquecimento das potências rivais, nomeadamente da Rússia e da China. Apesar do folclore comunicacional trumpista, se há algo que seja comum a todas as administrações americanas é a política externa e a obediência aos princípios definidos por gente que não se comove com os devaneios dos sucessivos presidentes. As intervenções na Ucrânia, no Cáucaso ou no Médio-Oriente, para citar três peças do que foi designado por “overextend and unbalance Russia”, há muito que foram estudadas e planeadas pelos estrategistas norte-americanos. Biden cumpriu rigorosamente a estratégia por eles definida e Trump decerto continuará a cumprir. E sendo a OTAN um componente fundamental dessa estratégia na Europa, não me parece que seja de levar a sério as ameaças/manobras do novo inquilino da Casa Branca para transferir custos para os aliados europeus.

No entanto, a ascensão e vitória eleitoral de Trump pode ser uma lição para os democratas, em particular para os que não gostariam de ver o efeito Trump alastrar e a extrema-direita conquistar o poder no seu país. Parafraseando o famoso slogan da campanha de Clinton de 1992, “is the economy, stupid”, depois do sucesso eleitoral de Trump apetece-me escrever: é o descontentamento, estúpido! O mesmo descontentamento que faz com que a democracia esteja em perigo na Europa e que os partidos democráticos europeus pareçam esgotados, política e ideologicamente, e a precisar de repensar a sua missão e propósito. Vivemos uma época em que esses partidos, por erros próprios, alienaram os eleitores que outrora constituíram a sua base de apoio e parecem impotentes para contrariar o crescimento eleitoral da extrema-direita antidemocrática.

Sob a capa da paz e prosperidade dos anos 1990 e da crença de que o capitalismo democrático tinha triunfado com a queda do Muro de Berlim, a implosão da União Soviética e o fim da Guerra Fria, foram plantadas as sementes do descontentamento. O discurso neoliberal, que pregava que o Estado era o problema e a fé nos mercados a solução, tornou-se a filosofia dominante de governo. Desde Reagan e Thatcher, os líderes políticos norte-americanos e europeus, mesmo os de centro-esquerda, seguiram o dogma de que os mecanismos de mercado eram os instrumentos adequados para definir e alcançar o bem comum. Incentivaram e instituíram a livre circulação de capitais sem regulação através das fronteiras nacionais, tudo em nome da globalização. De uma versão muito particular de globalização, apresentada como inevitável, como uma força da natureza capaz de criar riqueza que, alegadamente, iria beneficiar todos; que abriu as fronteiras aos fluxos desordenados de imigração que melhor serviam os negócios cujos lucros atravessavam livremente essas fronteiras, sem respeito pela aspiração das pessoas de cada país se sentirem num espaço em que a cidadania fosse valorizada e condicionasse o relacionamento e as obrigações de uns para com os outros.
 
É certo que a globalização da era neoliberal produziu crescimento económico. O mal é que quase toda a riqueza gerada por esse crescimento foi para os 10% mais ricos da população, enquanto a maioria dos restantes 90%, em particular os mais pobres, viram os seus salários reais diminuir ou estagnar durante quatro décadas. Os ganhos não foram distribuídos de forma justa e quando a desregulamentação levou à crise do sistema financeiro, foram esses 90% que suportaram os custos. É, pois, compreensível que os cidadãos comuns estejam zangados e se sintam menosprezados pelas elites políticas dos partidos tradicionais, muito deles social-democratas e socialistas, que governaram durante este período e apoiaram entusiasmados aquela versão de globalização e desregulamentação.
 
Não surpreende, portanto, que o descontentamento, a raiva e o ressentimento gerados pela versão neoliberal ou orientada para o mercado de uma globalização que aumentou as desigualdades e aprofundou a divisão entre vencedores e vencidos nas últimas décadas, que desvalorizou as comunidades nacionais e enfraqueceu os Estados-nação, na prática o principal veículo para que os cidadãos sintam segurança e liberdade para fazer ouvir a sua voz, se manifeste em primeiro lugar contra os partidos tradicionais e contra a democracia liberal representativa que esses partidos instrumentalizaram e fragilizaram. Os partidos que apoiaram e incentivaram a versão neoliberal da globalização passaram a ser vistos como as elites, os “eles”, responsáveis pela concentração da riqueza numa minoria de privilegiados com que muitas vezes se confundiam. Passaram a ser vistos como as elites responsáveis pela degradação do tecido moral da comunidade, da família ao bairro, à nação, e pelo desprezo pelo cidadão comum que não tinha poder nem era considerado na governação do país e das instituições supranacionais (excepto, claro, nos períodos eleitorais).

O que surpreende, contudo, é que o ressentimento contra as elites não abrange as dos negócios, na realidade as que mais lucraram com a globalização neoliberal nas últimas décadas e que constituem o núcleo duro dos 10% mais ricos. Aparentemente essas elites descobriram a forma de lidar e até tirar partido daquela raiva e descontentamento e a eleição de Trump para um segundo mandato, com mais poder autocrático e apoiado pelos mais ricos dos EUA, é a demonstração da sua eficácia no aproveitamento da raiva e do descontentamento dos cidadãos comuns norte-americanos.

Perante este quadro, o que podem os democratas fazer para contrariar o avanço do populismo autoritário que agrava ainda mais as desigualdades e as injustiças sociais?
 
Desde logo há que aprofundar o conceito de liberdade. A liberdade é normalmente entendida de forma demasiado restrita, demasiado individualista, como a liberdade de escolha de cada um. Mas há uma conceção mais ampla de liberdade e essa é a liberdade de que desfrutamos quando deliberamos juntos, como concidadãos, sobre o governo na comunidade em que estamos inseridos e sobre os propósitos e fins apropriados para essa comunidade. A esta liberdade chamarei, cívica.
 
Reconheço que décadas de regimes democráticos contruídos de cima para baixo e baseados quase exclusivamente na representação política por partidos, tornam difícil concretizar uma concepção cívica mais forte de liberdade, ligada à partilha, à comunidade e ao autogoverno. De facto, nos debates sobre a liberdade, perdemos quase sempre essa dimensão. Mas mais do que nunca parece necessário mudar não só a retórica política, como também o projecto político. É necessário mudar os termos da argumentação política tendo a preocupação de honrar e renovar a dignidade do trabalho, honrar e reconhecer todos aqueles que contribuem para o bem comum, através do trabalho que fazem, das famílias que criam, das comunidades que servem, tenham ou não credenciais académicas ou de outro tipo. Esse seria o ponto de partida.
 
Mas penso também que temos de refazer a sociedade civil. Um dos efeitos mais corrosivos do aprofundamento das desigualdades foi o vivermos vidas cada vez mais separadas, numa espécie de segregação de classes. O exercício da democracia não requer a igualdade perfeita. Mas requer que pessoas de diferentes esferas da vida, diferentes origens de classe, diferentes origens étnicas, se encontrem no curso normal de cada dia, porque é assim que aprendemos a negociar e a respeitar as nossas diferenças. E é assim que passamos a cuidar do bem comum.
 
Precisamos de reconstruir as instituições de mistura de classes, os lugares públicos e espaços comuns que nos unem, mesmo que inadvertidamente. Reconstruir a infraestrutura cívica para um modo de vida democrático compartilhado, pode ser um passo concreto para começar a atenuar as divisões, a raiva e o descontentamento e permitir, de vez em quando, pelo menos, conversar uns com os outros.

sábado, 25 de janeiro de 2025

A lei de Hitler

 


No artigo "How Hitler Dismantled a Democracy in 53 Days" que publicou no passado dia 8 na revista “The Atlantic”, o historiador Timothy W. Ryback descreve o modo como Adolf Hitler, em menos de dois meses, desmantelou a estrutura democrática da República de Weimar.

Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha em 30 de janeiro de 1933 e, com a ajuda do seu advogado Hans Frank e o apoio financeiro dos empresários mais ricos, explorou as fragilidades da Constituição para consolidar o poder. Mais tarde, quando aguardava a execução em Nuremberga pela sua cumplicidade nas atrocidades nazis, Frank salientou a habilidade de Hitler para identificar e explorar as fraquezas das leis e bloquear os processos democráticos por meios constitucionais.

Após o fracasso do Putsch da Cervejaria em 1923, Hitler abandonou a ideia de derrubar a República de Weimar pela força, mas manteve o objetivo de destruir o sistema democrático. Em 1930, reafirmou o seu compromisso com a legalidade perante o Tribunal Constitucional, e citou a Constituição de Weimar para anunciar que, uma vez no poder, moldaria o governo como desejasse. Quando questionado se o faria por meios constitucionais, Hitler respondeu afirmativamente com o famoso “Jawohl!” que Chaplin consagrou no Grande Ditador.

Uma das iniciativas imediatas do chanceler Hitler foi propor uma lei que permitiria governar por decreto e cumprir as promessas de campanha de reanimar a economia, reduzir o desemprego, aumentar os gastos militares, evitar as obrigações dos tratados internacionais e expurgar o país de estrangeiros que, segundo ele, "envenenavam" o sangue da nação. Mas a aprovação de tal lei – que desmantelaria a separação de poderes, concederia ao poder executivo de Hitler a autoridade para fazer leis sem aprovação parlamentar e permitiria que Hitler ignorasse as instituições democráticas e a Constituição – exigia o apoio de uma maioria de dois terços no conturbado Reichstag.

Como primeiro passo para conseguir tal maioria, Hitler baniu o Partido Comunista e intimidou a oposição. O incêndio do Reichstag em 27 de fevereiro de 1933 foi o pretexto para Hitler promulgar um decreto de emergência que suspendeu as liberdades cívicas e permitiu a prisão de opositores políticos. Nas eleições de março de 1933, os nazis não conseguiram a maioria absoluta, mas formaram uma coligação que lhes deu a maioria de dois terços necessária para aprovar a lei.

Em 23 de março de 1933, a lei com apenas cinco artigos em uma página e meia (Gesetz zur Behebung der Not von Volk und Reich) foi aprovada, eliminando efetivamente quase todas as restrições constitucionais ao governo de Hitler. Este evento marcou o fim da democracia na Alemanha e o início do regime totalitário nazi.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

"Com fúria e raiva"


 


"Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra"

Como é actual este poema que Sophia de Mello Breyner Andresen publicou em "O Nome das Coisas"!

Voltei a ele depois de assistir à assinatura dos decretos presidenciais por Trump, no dia em que tomou posse como presidente dos EUA. Assisti com “fúria e raiva”, ao elogio de nazis, ao espezinhar do primado da lei, ao desprezo pelos direitos humanos, a tudo o que caracteriza um ditador.

Ao contrário do que pode parecer, Trump não é apenas um populista espertalhão criado no mundo da especulação imobiliária ou dos reality shows, é acima de tudo a face visível da implantação nos EUA do capitalismo autoritário que põe em causa os valores da democracia liberal, arrasa o que resta do Estado social e assegura a concentração do poder e da riqueza nos oligarcas mais ricos.

Os receios que manifestei há cerca de oito anos sobre o que me parecia uma evolução perigosa para o capitalismo autoritário no mundo, confirmaram-se plenamente e ele aí está em todo o seu esplendor no país mais poderoso desse mundo.

E como então referi, continuamos a ser incapazes de nos opor de forma credível e eficaz ao avanço do autoritarismo e à destruição do Estado de Direito Democrático consagrado na nossa Constituição.

Nós portugueses, assim como todos os europeus.