Tenho para mim que se comete uma enorme injustiça histórica ao dizer que o 25 de Abril de 1974 foi o Dia da Liberdade. É certo que naquele dia o povo sentiu alguma diferença nas regras de comportamento em sociedade, mas o que foi isso comparado com a ocorrência de milhares e milhares de conversões milagrosas em todo o nosso Portugal?
Eu próprio, pouco ou nada crente em milagres, pude, nesse dia e em poucas horas, vivenciar uma boa mão cheia deles. Vivências que se repetiram de forma surpreendente nos dias seguintes, como se de repente um espírito sagrado tivesse iluminado a mente de muitos dos que até então me olhavam e tratavam com desconfiança. Os convertidos vinham até mim e manifestavam o seu apego à liberdade e à democracia, assim como o incondicional apoio ao movimento, como se estivessem diante de um sacerdote da nova religião. É claro que eu, fiel mas leigo não ordenado, limitava-me a indicar-lhes o nome de 2 ou 3 magistrados que certamente ficariam muitos satisfeitos com tais conversões.
Pensei contar algumas das vivências que bem podiam justificar a atribuição do epíteto de Dia dos Milagres ao dia 25 de Abril de 1974 mas desisti depois de ler um episódio muito mais inspirador narrado pelo Coronel Rosado da Luz, um militar de Abril, a quem coube desempenhar tarefas de coordenação e ligação pessoal entre o Posto de Comando do MFA e as unidades militares sublevadas que, em Lisboa, iam ocupando os vários objectivos que lhes tinham sido atribuídos.
O Rosado da Luz conta algumas das suas riquíssimas vivências do dia 25 de Abril de 1974 no livro “O Dia da Liberdade”, recentemente editado pela Verso da História com coordenação do Pedro Lauret. De entre os vários e deliciosos episódios, destaco o mais relevante para a demonstração da minha tese: “Uma Conversão Milagrosa.” Cá está, também a ele foi dado presenciar um milagre que bem justificaria a alteração da referência histórica!
Conta ele que a meio do dia 25 e apesar dos comunicados do MFA, um pacato cívico, a quem o chefe havia dado ordem para ir ao ensaio da récita que a PSP ia levar a cabo daí a dias e na qual era figurante, tinha abandonado a segurança da sua esquadra e tentado furar por entre a multidão que estava junto aos Armazéns do Chiado. É que o ensaio estava marcado para o Governo Civil para daí a alguns minutos e o agente da PSP entendia que não podia faltar senão seria castigado. Mas a multidão, ao ver o pobre do polícia, pressentiu o seu momento de glória e resolveu espancá-lo. Só a intervenção da guarnição de um carro de combate da EPC evitou que a história tivesse um final trágico.
O Rosado da Luz, chamado a intervir, deparou-se com “um típico agente da PSP daquela altura: gordinho, de meia-idade e ar provinciano, muito contundido, cheio de equimoses na cara, com o dólman meio despido, sem armas nem gravata nem botões na farda e na camisa.” Depois de ouvir as razões do pobre polícia, o Rosado da Luz tomou uma decisão que, melhor do que eu, ele sabe contar. Por isso, com a devida vénia, continuo a transcrever o seu testemunho no já citado livro.
“Bem, perante tão pesados argumentos, resolvi ir eu mesmo entregá-lo ao Governo Civil que ficava a menos de 100 metros dali. Segui pela Rua Anchieta, que desemboca mesmo no Governo Civil, e ainda tive que afastar alguns populares que queriam acariciar a cabeça do pobre guarda com uns tijolos de uma construção que ali havia. Quando chego ao Governo Civil, as suas enormes portas de madeira (que hoje são de vidro) estavam encerradas e eu com a coronha da G3 bati à porta que passado algum tempo se entreabriu. A cena que se passou ficou-me para sempre na memória.
O Governo Civil tem um enorme átrio que termina numa ampla escadaria que depois se bifurca em dois lanços, um para cada lado. Todo aquele átrio e escadaria estavam numa semiobscuridade, apinhados com largas dezenas de polícias e, à frente de todos, o celebérrimo capitão Maltês Soares, ex-comandante da Companhia Móvel da Polícia de Oeiras (a célebre «Polícia de Choque), responsável principal durante muitos anos, pela ferocíssima, desumana e violenta repressão sobre trabalhadores e estudantes que eu, aluno de Económicas, até tinha tido oportunidade de testemunhar pessoalmente em 1972. Era agora o comandante da 1ª Divisão da PSP. Eu não o conhecia pessoalmente, mas tal como acontece com os militares, também os polícias têm sempre o nome escrito na farda e assim soube de imediato quem era aquela bisca. Quando me vêem de G3 em punho meio fardado meio à paisana, com aqueles restos de um polícia, há um movimento generalizado de pânico e toda aquela gente recua pensando certamente: “é agora.” Entretanto, o Maltês Soares, à frente daquela gente toda, lê o meu nome na farda e diz-me: “ó Luz, a PSP está com a Revolução e com o MFA!” Não escondi um sorriso, lá lhes entreguei o polícia, lá lhes disse para se manterem por ali fechados e que nós nunca tínhamos duvidado do seu acrisolado amor pela democracia e regressei ao Carmo a dar ao Maia a novidade, daquela milagrosa conversão.”
O Governo Civil tem um enorme átrio que termina numa ampla escadaria que depois se bifurca em dois lanços, um para cada lado. Todo aquele átrio e escadaria estavam numa semiobscuridade, apinhados com largas dezenas de polícias e, à frente de todos, o celebérrimo capitão Maltês Soares, ex-comandante da Companhia Móvel da Polícia de Oeiras (a célebre «Polícia de Choque), responsável principal durante muitos anos, pela ferocíssima, desumana e violenta repressão sobre trabalhadores e estudantes que eu, aluno de Económicas, até tinha tido oportunidade de testemunhar pessoalmente em 1972. Era agora o comandante da 1ª Divisão da PSP. Eu não o conhecia pessoalmente, mas tal como acontece com os militares, também os polícias têm sempre o nome escrito na farda e assim soube de imediato quem era aquela bisca. Quando me vêem de G3 em punho meio fardado meio à paisana, com aqueles restos de um polícia, há um movimento generalizado de pânico e toda aquela gente recua pensando certamente: “é agora.” Entretanto, o Maltês Soares, à frente daquela gente toda, lê o meu nome na farda e diz-me: “ó Luz, a PSP está com a Revolução e com o MFA!” Não escondi um sorriso, lá lhes entreguei o polícia, lá lhes disse para se manterem por ali fechados e que nós nunca tínhamos duvidado do seu acrisolado amor pela democracia e regressei ao Carmo a dar ao Maia a novidade, daquela milagrosa conversão.”
Digam lá se o 25 de Abril de 1974 foi ou não foi o Dia dos Milagres?